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Lewandowski: Agente público não deve ter carta branca

*Artigo originalmente publicado na edição deste domingo (17/5) do jornal O Globo.

Ian Fleming (1908-1964), soldado, jornalista e escritor inglês, imortalizou-se pela criação do personagem James Bond, membro do serviço secreto britânico, codinome 007, protagonista de vários romances e filmes que alcançaram grande sucesso de público e crítica.

De acordo com seu idealizador, Bond integrava um seletíssimo grupo de espiões, dotados de licença para matar, que os desobrigava de qualquer explicação caso tirassem a vida de algum inimigo da Coroa. Assim protegido, 007 executou inúmeros antagonistas, não raro com requintada crueldade e sem perder o indefectível ar blasé.

Ocorre que essa imunidade não existe no mundo real. Nenhuma nação conhecida, seja ela democrática, autoritária ou despótica, concede uma carta branca a seus agentes para eliminar adversários. Nem mesmo na guerra os beligerantes podem agir sem limitações, pois sua conduta é regida por tratados e convenções de natureza humanitária. Restabelecida a paz, os abusos são julgados e punidos por tribunais domésticos ou internacionais.

Não obstante, de uns tempos para cá, pretende-se introduzir no ordenamento jurídico pátrio uma singular excludente de ilicitude para os integrantes das corporações armadas. Uma primeira tentativa, abrigada no chamado “pacote anticrime”, que instituía o perdão para crimes cometidos sob influência de medo, surpresa ou violenta emoção ou, ainda, em face de virtual agressão, foi resolutamente rechaçada pelo Congresso Nacional.

No ano passado, enviou-se ao Parlamento outra propositura assemelhada. Dela consta que o militar ou policial, participante de uma operação para a garantia da lei e da ordem, age em legítima defesa presumida quando repele injusta agressão, presente ou potencial, definida como tentar ou praticar as seguintes condutas: terrorismo; morte ou lesão corporal; restrição à liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça; porte ou utilização ostensiva de arma de fogo.

Consta ainda que o autor só é responsabilizado criminalmente se agir com excesso doloso. Mesmo assim, a pena poderá ser atenuada pelo juiz. A prisão em flagrante passa a ser proibida e a preventiva apenas será decretada em circunstâncias excepcionais. Em todas as situações, a Advocacia-Geral da União fará a defesa dos acusados.

Ora, o Código Penal vigente há várias décadas já contempla, em seu artigo 23, a exclusão de ilicitude. Segundo o dispositivo, inexiste crime quando alguém pratica o fato em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. O artigo 25, por sua vez, esclarece que age em legítima defesa quem, fazendo uso moderado dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem.

Esse arcabouço legal, replicado nos artigos 42 e 44 do Código Penal Militar, sempre foi suficiente para que as autoridades incumbidas da segurança pública dessem conta de sua delicada missão, com prudência e serenidade, sem colocar em risco a vida ou integridade física dos cidadãos para cuja proteção foram instituídas.

Há poucos dias, seguindo a mesma lógica das iniciativas precedentes, editou-se uma medida provisória, desta feita para isentar de responsabilidade, nas esferas civil e administrativa, os agentes estatais que praticarem atos relacionados ao enfrentamento dos efeitos sanitários, econômicos ou sociais decorrentes da pandemia desencadeada pela Covid-19, salvo se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro.

Nossos parlamentares certamente saberão avaliar com o esperado discernimento a conveniência e oportunidade de aprovar tais inovações legislativas, atentos não apenas ao delicado momento pelo qual passa o país, mas sobretudo ao dever de salvaguardar os direitos e garantias fundamentais de sua majestade o povo brasileiro.

 é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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A biblioteca nacionalista de Policarpo Quaresma

O escritor Lima Barreto é um injustiçado. Um triste visionário, na percepção de recente biografia lançada pela historiadora e antropóloga Lilia Maria Schwartz. Que livro! Lima Barreto era um homem do trópico com alguma coisa de russo dos gelos em sua vocação para escrever romances ao mesmo tempo sociais e introspectivos, na alusão de Gilberto Freyre, um insuspeito, para esse tipo de assunto. Lima Barreto viveu em contexto de frustração, de falta de reconhecimento, de preconceito racial, situações existenciais que talvez o induziram ao alcoolismo, que o levou à morte, no mesmo hospital onde seu pai estava internado, pela mesma razão, morrendo os dois — pai e filho — com a distância de alguns dias. Na verdade, pode-se pensar no triste fim de Lima Barreto. Muito triste.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma é provavelmente seu livro mais conhecido. Penso que o Policarpo é um Dom Quixote nacional. O Policarpo era um idealista, acreditava no país. Porém, não se dava conta de que tudo e de que todos desdenhavam qualquer projeto nacional sério e genuíno. Era um nacionalista diferente de alguns que há hoje, e que por vezes assumem um nacionalismo de intimidação e de desconsideração para com a ciência e para com qualquer pensamento mais sério.

O nacionalismo era um traço da personalidade do Policarpo, enquanto muitos hoje se dizem nacionalistas, em vários lugares do mundo, justamente por uma completa ausência de resquícios de personalidade. É um nacionalismo tampão. Um nacionalismo bovino, ao qual o Policarpo opunha um nacionalismo de ação e de esperança, ainda que muitas vezes exagerado, a exemplo do esforço para que o tupi fosse a língua nacional, em substituição ao português falado no Brasil.

O nacionalismo do Policarpo era honesto, por vezes ingênuo, mas sempre comprometido com a busca de soluções factíveis e razoáveis para o enfrentamento de nossos problemas. Era um nacionalismo marcado pelo afeto e pela esperança. Não pregava a violência, e nem propagava a ignorância. Pelo contrário, indignava-se com a guerra interna. E estudou com afinco, sempre, alternativas para saúvas, péssimas colheitas, fome e miséria. O Policarpo lia, e lia muito, e entendia o que lia. O problema é que não havia como transformar tanta leitura em realidade. É o eterno problema dos quixotes.

Lima Barreto opôs com o Policarpo as propostas formalistas e europeizantes da época, centradas em autores como Gustavo Barroso, Alberto Torres e Coelho Neto. Queriam fazer do Brasil um apêndice da Europa. É a velha imagem do índio de Alencar, para quem um índio poderia ser um europeu de tacape e sunga. Nacionalismo, patriotismo, eleições a bico de pena, loucura, bacharelismo, preconceito, burocracia e injustiça são os temas centrais do Triste fim de Policarpo Quaresma.

Segundo Lima Barreto, a biblioteca do Policarpo assentava-se em estantes de ferro, perto de 10, com quatro prateleiras. Havia também pequenas prateleiras, para os livros menores. Era mais do que uma coleção de livros. Era uma homenagem ao país no qual acreditava. Na sessão de livros de ficção e de poesia o Policarpo reunia apenas autores nacionais ou reconhecidamente brasileiros: Bento Teixeira (Prosopopeia), Gregório de Matos, Basílio da Gama, Santa Rita Durão, Joaquim Manoel de Macedo, Gonçalves Dias.

O Policarpo tinha todos os livros do José de Alencar, que foi quem nos explicou o Brasil, do índio ao gaúcho, no singular mesmo. Quem entende do José de Alencar é o Lira Neto, seu grande biógrafo contemporâneo (O Inimigo do Rei). Na biblioteca do Policarpo tinha-se o cânone bem comportado de uma literatura bem comportada que descrevia o Brasil bem comportadamente, com exceção do Gregório de Matos, o boca do inferno, talvez. Quem entende do Gregório de Matos é Ana Miranda, que nos deixou um delicioso romance histórico centrado nessa figura que misturava o diabólico com o serafínico, se possível essa conformação. Não havia livros do Padre Vieira na biblioteca do Policarpo. Quem entende do Padre Vieira é o Alcir Pécora (Teatro do Sacramento), um estudo essencial sobre a unidade teológico-retórico-política do grande sermonista.

A sessão de História do Brasil era completa. Havia todos os cronistas que de algum modo explicaram as singularidades de nossa terra. Estavam todos: Gabriel Soares, Pero de Magalhães Gandavo, Frei Vicente do Salvador, Armitage, o Padre Manoel Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (um alemão que escreveu nossa história, Geschichte von Brasilien), Melo Morais, Capistrano de Abreu (o cearense não poderia faltar), Southey, Varnhagen. O Policarpo lia em línguas estrangeiras também.

O Policarpo também colecionou (e leu) os viajantes que descreveram o Brasil. Havia nessa sessão o Hans Staden (o alemão que quase foi engolido pelos índios), o Jean de Léry, o Saint-Hilaire, o Martius, o Príncipe de Neuwied, o John Mawe, o von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães. E havia ainda Darwin (que esteve no Brasil e que se horrorizou com a escravidão), Freycinet, Cook e Bougainville. Lima Barreto nos conta que o Policarpo também tinha o livro de Pigafetta, um cronista que narrou a viagem de Fernão de Magalhães.

O Policarpo de igual modo possuía dicionários, manuais, enciclopédias e compêndios, em vários idiomas. Livros que chamamos de referência e que Lima Barreto a eles se refere como livros subsidiários. Não havia livros de Direito, talvez poque copiávamos o que europeus escreviam. Bibliotecas (reais ou imaginárias) compõem de forma definitiva uma biografia de seu proprietário, ou de seu utente. É o que se percebe na descrição que Lima Barreto fez da biblioteca do Policarpo Quaresma. Descreva-me tua biblioteca, e direi quem és.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.