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Luiz Augusto D’Urso: Sobre o PL das Fake News

Opinião

Adiamento da votação do PL das Fake News não pode servir para procrastinação

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O Projeto de Lei nº 2.630/2020, que trata das fake news, seria votado na última terça-feira (2/6) no Senado Federal, todavia foi retirado de pauta. Esse adiamento se deu a pedido do próprio autor do PL, senador Alessandro Vieira, juntamente com outros senadores, que justificaram que o relatório não havia sido apresentado, sendo que tal documento seria indispensável para a votação desta proposta legislativa.

Diante do extraordinário crescimento do número de fake news na internet, integrantes do Legislativo apresentaram diversos projetos de lei para regulamentar a matéria.

Nesse cenário, o PL nº 2.630/20 tornou-se protagonista, sendo objeto de debate sobre sua oportunidade, necessidade e importância, uma vez que, mesmo o tema sendo controverso, trata-se de uma realidade que precisamos enfrentar.

Em razão desse projeto, também se ampliou o debate sobre o papel das redes sociais, se estas podem apagar postagens realizadas pelos seus usuários, quando tais postagens forem classificadas como nocivas, fake news ou desinformação.

As razões que levaram à retirada de pauta do PL nº 2.630/20 são louváveis, desde que fundadas na complexidade do tema e na dificuldade para se regulamentar questões de Direito Digital, sendo indispensável maior aprofundamento e debate.

Não se pode legislar apressadamente, suprimindo uma ampla colaboração dos especialistas, das empresas de tecnologia e da sociedade civil, isso porque, se a lei não for extremamente precisa, poderá conter lacunas que resultarão em mais problemas do que soluções, ou pior, ela poderá suprimir direitos e garantias fundamentais.

Embora favorável à cautela do adiamento, este não pode servir para procrastinar a apresentação do texto final, que seguirá para votação, pois o combate às fake news é urgente e necessário.

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Flávio Filizzola D’Urso é advogado criminalista, mestrando em Direito Penal na USP, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal), com especialização pela Universidade de Castilla-La Mancha (ESP), integrou o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2018) e foi conselheiro estadual da OAB/SP (2016-2018).

Revista Consultor Jurídico, 9 de junho de 2020, 7h09

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Wellington Santos: Sobre crimes de racismo na internet

Por motivos de economia de caracteres, racismo e injúria racial neste artigo serão tratados como se a mesma coisa fossem. Mesmo reconhecendo que há uma definição distinta para cada um, ambos possuem a mesma natureza e motivação: a ideia de superioridade racial. Dizer que o racismo é uma eterna pedra no sapato da sociedade brasileira seria subestimar a complexidade e extensão de um problema que traz conflitos sociais desde o período colonial. Na verdade, o racismo para nós está mais próximo de um grande elefante vivendo na sala.

Dados e estatísticas nos mostram como ainda estamos longe de uma resolução do problema, mesmo após a promulgação da Constituição Cidadã. Ainda que devidamente reconhecendo que a legislação brasileira, ao longo dos anos, tentou tratar do racismo e da tutela de vidas negras, produzindo leis históricas como a do Ventre Livre (1871), a Lei Áurea (1888), a Lei 7.716/1989 (ou Lei Caó, que definiu os crimes de raça ou cor), assim como também os artigos da própria Constituição que objetivam a promoção da igualdade racial (artigo 3º, IV). Mas ainda há de ser criada uma norma própria para o racismo praticado na internet.

Quando falamos sobre racismo, a ideia principal que vem à mente é a do crime com discurso de ódio, ofensas pessoais e agressões físicas, em que um indivíduo (ou grupo) grita, vocifera e esbraveja diante de um ou mais ofendidos. Ou, por definição legislativa (artigo 140, § 3º, do Código Penal), um indivíduo tem sua dignidade ou decoro ofendidos devido a uma ofensa baseada em sua cor, raça, etnia, religião ou condição física. Independentemente da definição, motivação ou ambiente em que o crime é consumado, a ideia permanente na consciência coletiva é a de que o racismo acontece pessoalmente, com ofensor e ofendido se encarando, frente a frente. Porém, com o advento da tecnologia e sua onisciência em todas as camadas de nossas vidas (em que 79,9% da população brasileira têm acesso à internet [1]), ela se tornou o campo de atuação perfeito para que o crime ocorra. O racismo praticado na internet (e por internet entende-se todo ambiente online onde exista interação entre pessoas, incluindo jogos, fóruns, redes sociais ou blogs) é algo que pode ser testemunhado por qualquer pessoa hoje em dia, quando observamos como a ideia de superioridade racial atravessa barreiras e se consuma em apenas um clique.

Para ilustrar o elefante na sala, somente no ano de 2019 a Safernet Brasil recebeu 8.337 denúncias de racismo na internet [2]. O dado sozinho pode não demonstrar a amplitude e extensão dos crimes de ódio que ocorrem em ambientes virtuais, mas nos dá uma boa ideia do quão presente o racismo é na internet, pois 8.337 denúncias são aproximadamente 23 denúncias por dia, quase uma por hora, o que significa que existem mais crimes de racismo online do que tráfico de pessoas (509 denúncias), intolerância religiosa (1.084 denúncias), maus tratos contra animais (1.142 denúncias) e neonazismo (4.244) somados. E, para pintar de branco este grande elefante, em relação a 2018,os crimes de racismo na internet tiveram um aumento de 37,71% [3].

Ao nos depararmos com esses dados surgem as perguntas preliminares: por que e como esse tipo de crime se propaga em ambientes virtuais? Por que continuamos assistindo a um aumento significativo dessa prática, inclusive após a promulgação do Marco Civil da Internet, em 2014?

Como uma das possíveis causas, temos o fato de que vivemos em uma sociedade em que racistas não se sentem inibidos para cometer seus atos online, tendo em vista que a falsa sensação de liberdade, somada ao medo das vítimas de denunciarem, surge como explicação para que esse comportamento continue sendo visto repetidas vezes na web. Devemos, também, levar em consideração que o racismo não escolhe classe social ou econômica, e que mesmo famosos e pessoas de grande alcance nacional sofrem com este tipo de ofensa.

Como exemplo disso, vimos o caso sofrido pelo ator carioca Bruno Gagliasso, que em 2017 foi forçado a buscar a Justiça para defender sua filha adotiva (nascida no Malawi, país do continente africano), que havia sido vítima de ofensas na internet pela escritora brasileira Day McCarthy [4]. Em vídeo, a escritora ofendeu sua aparência, falando sobre a cor de sua pele e sobre seu cabelo. Na época, a filha do ator tinha apenas quatro anos de idade. Em outro exemplo, vimos a jornalista da Rede Globo de Televisão Maria Julia Coutinho, em 2015, sofrer diversos ataques por meio de comentários na página oficial da emissora no Facebook, em que ridicularizaram a cor de sua pele, seus traços afrodescendentes e seus cabelos, com a ressalva de que, diferentemente do caso de Bruno Gagliasso, as ofensas não vieram de apenas uma pessoa, mas sim de várias [5].

A sensação de que a internet é terra de ninguém e que os atos não terão consequências motivam muitos comportamentos dessa natureza. Como outra possível causa, temos a dificuldade de provar que o crime foi cometido, já que mecanismos modernos (como programas que “escondem” o endereço de IP do computador utilizado) auxiliam na dificuldade de se identificar os perfis agressores. Nos dias de hoje, qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo pode ter em suas mãos as ferramentas necessárias para criar um perfil falso, anônimo ou de difícil detecção. O medo de se expor e a dificuldade de arcar com as custas de um possível processo também são demonstrativos de que a complexidade do problema não deve ser subestimada.

O problema é real, existe e está enraizado nas nossas estruturas sociais. A partir de onde será longe o bastante? Até quando justificaremos as lacunas legislativas que permitem este tipo de crime? Quando incluiremos artigos específicos que tratem de racismo e injúria racial na internet na Lei 12.965/2014?

O que se torna inadmissível é permanecermos inertes. Educar a população acerca de seus direitos (e deveres) na internet é outro ponto passível de discussão pertinente, capaz de diminuir o tamanho do problema. Ensinar em escolas, do ensino básico ao ensino médio, o que é correto e o que é crime em ambientes online (território em que crianças e adolescentes interagem cotidianamente) é questão de humanidade. Quando começarmos a tratar o problema por meio de suas especificidades e admitir que possui natureza própria, o Judiciário conterá formas e procedimentos para combatê-lo. Expandir e fortalecer delegacias especializadas em crimes virtuais também será de grande valia neste combate. 

Tratar do racismo na internet é tema íntimo dos direitos humanos e é dele que nasce a necessidade de estabelecer diretrizes que possam erradicar este tipo de comportamento nas relações interpessoais nos dias de hoje, construindo assim (esperamos, de maneira otimista) um futuro em que o elefante não esteja mais incomodando a passagem de nenhuma pessoa.

 

[1] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-35-7-dos-brasileiros-vive-sem-esgoto-mas-79-9-da-populacao-ja-tem-acesso-a-internet,70003077941. Acessado em 12/5/2020, às 15h37.

[2] https://canaltech.com.br/seguranca/brasil-registra-aumento-de-1600-em-denuncias-de-crimes-online-contra-mulheres-132103/. Acessado em 12/5/2020, às 15h38.

[3] [Idem]

[4] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/11/bruno-gagliasso-denuncia-ofensas-raciais-publicadas-contra-filha-titi.html. Acessado em 12/5/2020, às 15h43.

[5] http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/07/maria-julia-coutinho-maju-e-vitima-de-racismo-no-facebook.html?utm_source=blog&utm_campaign=rc_blogpost. Acessado em 12/5/2020, às 15h45.