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Tribunais superiores relatam redução de despesas durante epidemia

A epidemia do coronavírus levou para os tribunais de todo o país a preocupação com o contágio e a necessidade de adotar medidas para enfrentar a calamidade. Nos tribunais superiores, para além das sessões virtuais e videoconferências, uma das consequências do respeito ao isolamento social foi a diminuição de despesas.

Tribunais superiores passaram a adotar julgamentos virtuais e videoconferências para garantir prestação jurisdicional

Sem deixar de lado a prestação jurisdicional e podendo ser visto até mesmo um aumento de produtividade em função do home office, os tribunais de Brasília já contam com projeções de redução de gastos. A situação em cada um deles é distinta: alguns rescindiram contratos, outros os adequaram, e outros não tiveram racionamentos de água e energia elétrica.

O impulsionador da maioria das medidas, inclusive da suspensão de atividades presenciais nas instalações do Judiciário, foi o Conselho Nacional de Justiça. Desde março, o conselho vem editando resoluções e atos normativos para balizar como deve ser a atuação dos tribunais.

A partir da entrada em vigor da Resolução 313, por exemplo, os avanços puderam ser vistos em números. Foram produzidas 4.930.897 sentenças e acórdãos, incluídas sentenças de primeiro grau, decisões terminativas e acórdãos de segundo grau nos tribunais.

Além disso, segundo o CNJ, foram expedidos 12,5 milhões despachos e 7,7 milhões de decisões tomadas em processos em curso.

Mas não só. Entre 16 de março e 31 de maio, o Judiciário destinou mais de R$ 340 milhões ao combate à epidemia da Covid-19. Em Brasília, os  tribunais superiores conseguiram também, direta ou indiretamente, reduzir os gastos nas instalações. 

Veja abaixo o que fez cada tribunal:

STF

O Supremo Tribunal Federal suspendeu suas atividades presenciais em março. Dentre as mudanças adotadas, a corte ampliou as hipóteses de julgamento em sessão virtual, inclusive para permitir sustentações orais no ambiente eletrônico e julgamentos de recursos com repercussão geral. Fica a cargo do relator ou ministro vistor a submissão dos casos em listas de processo em ambiente presencial ou eletrônico.

Ministro Gilmar Mendes no Plenário físico do STF em sessão por videoconferência
Rosinei Coutinho/SCO/STF

A praxe desde então é que apenas o presidente, ministro Dias Toffoli, e alguns assistentes estejam no Plenário físico. Os demais ministros participam da sessão de seus respectivos gabinetes e escritórios. Como exceção, o ministro Gilmar Mendes também foi ao físico em algumas sessões. Em breve momento à frente da corte por motivo de licença médica de Toffoli, o ministro Luiz Fux, vice-presidente, seguiu o costume e também esteve em Brasília para os julgamentos.

O tribunal informou ter disponibilizado as condições necessárias para que os funcionários façam trabalho remoto. Os contratos com serviços essenciais estão sendo feitos presencialmente, em alguns casos com revezamento. O STF também está apresentando proposta para antecipação de férias para casos em que houver impossibilidade de trabalho à distância, para os funcionários que se enquadram no grupo de risco e aos que estão fazendo revezamento.

Além disso, são várias as projeções de redução de despesas administrativas neste ano com diárias nacionais e internacionais; passagens aéreas; água e esgoto; energia elétrica e serviços postais.

STJ

Inicialmente o Superior Tribunal de Justiça cancelou as sessões presenciais e suspendeu os prazos. Em março, o Plenário da corte fez uma alteração no regimento interno para ampliar a realização das sessões virtuais

Até então, o regimento previa o uso desta tecnologia para os colegiados que julgam matéria de Direito Público (1ª Seção, 1ª e 2ª Turmas) e Direito Privado (2ª Seção, 3ª e 4ª Turmas), além da Corte Especial. Com a ampliação, os colegiados que decidem matéria criminal também passaram a ter a possibilidade (3ª Seção, 5ª e 6ª Turmas). 

STJNo STJ, não houve rescisão contratual ou racionamentos de água e energia

Outra mudança significativa foi a possibilidade de ministros poderem se opor à videoconferência. Um exemplo é a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que decidiu retirar de pauta sete temas em recursos repetitivos. 

A oposição ao julgamento virtual também pode partir das partes: se qualquer das partes se opõe ao julgamento por videoconferência, cabe ao colegiado do Superior Tribunal de Justiça automaticamente remeter o caso para julgamento em sessão presencial, quando elas voltarem a ocorrer. A medida, no entanto, não é válida em caso de voto-vista.

Já em relação ao orçamento, o tribunal informou que não houve rescisão contratual ou racionamentos de água e energia. “Como a parcela mais significativa da força de trabalho desta corte está executando suas atividades de forma remota, as reduções de despesas com esses itens decorrem da minimização da população fixa e flutuante das dependências do Tribunal.”

TST

O Tribunal Superior do Trabalho adotou o trabalho à distância para a maioria dos servidores, mantendo apenas o mínimo indispensável nas instalações para cumprir as atividades essenciais. Ficaram suspensos também o acesso aos fóruns e tribunais.

Até o momento, a economia de recursos orçamentários está estimada da seguinte forma:

  • De pessoal: redução de despesas com adicional e auxílios — Valor mensal de R$ 84 mil;
  • De custeio em geral: R$ 350 mil mensal com água e energia elétrica e R$ 500 mil mensal com despesas com contratos de terceirização de serviços.

Com a suspensão do contrato de alguns dos estagiários, que não tinham condições de fazer o teletrabalho, houve economia de R$ 65,5 mil.

Depois do agravamento da epidemia, a corte trabalhista também rescindiu contrato com uma empresa terceirizada que prestava serviços de berçário, diante da “impossibilidade de continuar os serviços”. Neste caso, também foi considerada a falta de previsão para retornar as atividades, “dada a característica especialíssima do objeto em questão, que é o cuidado com bebês de 6 a 18 meses”, informou o TST.

Já os prestadores de serviço presenciais puderam tirar férias, fizeram acordos de compensação de jornada, banco de horas e escalas de rodízio.

TST prevê economia com gastos de pessoal, além de água, energia elétrica e rescisão de contratos com terceirizados 
Divulgação TST

O TST também editou diversos atos para regulamentar as atividades administrativas e judiciárias, contemplando as formas de prestação dos serviços remotas e presenciais. Houve ainda  investimento em tecnologia para manter os julgamentos e o trabalho à distância. 

Dentre as medidas do contingenciamento do tribunal foi definido um cronograma para a retomada das audiências telepresenciais, de forma a garantir que juízes e servidores busquem se familiarizar com as ferramentas eletrônicas. Também foi recomendado que os centros de conciliação continuem as atividades com uso da tecnologia e passem a admitir a mediação pré-processual para conflitos individuais. 

TSE

Na Justiça Eleitoral os ministros também fazem as sessões de julgamento à distância, com presença no Plenário físico apenas do presidente. Grande exemplo foi a posse do ministro Luís Roberto Barroso como presidente do tribunal em cerimônia virtual, que contou com a participação de diversas autoridades. 

No TSE, alguns servidores optaram por remarcar as férias para aguardar período sem isolamento social
Roberto Jayme/Ascom/TSE

De acordo com o tribunal, houve diminuição do pagamento do auxílio transporte com a realização de trabalho remoto. E também a diminuição do pagamento de indenização de férias, considerando casos de servidores que decidiram remarcá-las. 

Ainda não há uma avaliação exata do impacto financeiro, mas o TSE informou que “há uma redução de despesas, tais como com água, energia elétrica, ar condicionado, materiais de limpeza, entre outras”.

Também foi editada a Resolução 23.615/2020, que estabeleceu o regime de plantão extraordinário para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários com objetivo de prevenir o contágio pelo coronavírus e garantir o acesso à justiça.

No início do plantão, o TSE observou que houve interrupção temporária de pedidos de reembolsos, pela necessidade de adaptação dos órgãos aos efeitos do trabalho remoto. “No entanto, tais situações em geral rapidamente voltaram a normalidade, podendo existir, no entanto, orientações específicas determinadas pelas Administrações dos Tribunais Eleitorais durante esse período”, informou a corte.

Outro ponto destacado na Justiça Eleitoral foi a diminuição de procura por serviços médicos em hospitais, devido ao risco de contágio, e a consequente redução das demandas por reembolsos ou similares.

STM determinou uso obrigatório de máscaras e álcool em gelDivulgação

STM

Na Corte militar não houve rescisão de contratos. Os contratos vigentes foram mantidos com ajustes dos custos, “adequando às alterações recentes da legislação, em função da epidemia”.

Dentre as medidas de proteção e contenção de propagação do coronavírus, o presidente do STM tornou obrigatório o uso de máscaras e álcool em gel nas dependências do tribunal e das auditorias. Além disso, estabeleceu o trabalho remoto para o maior número de servidores e colaboradores possível. 

O STM informou que só foram mantidos em atividade presencial os servidores envolvidos diretamente no enfrentamento da epidemia e na manutenção dos serviços considerados essenciais. Também não houve racionamento de água e de energia, mas foi registrada a redução no consumo dos dois.

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Wellington Santos: Sobre crimes de racismo na internet

Por motivos de economia de caracteres, racismo e injúria racial neste artigo serão tratados como se a mesma coisa fossem. Mesmo reconhecendo que há uma definição distinta para cada um, ambos possuem a mesma natureza e motivação: a ideia de superioridade racial. Dizer que o racismo é uma eterna pedra no sapato da sociedade brasileira seria subestimar a complexidade e extensão de um problema que traz conflitos sociais desde o período colonial. Na verdade, o racismo para nós está mais próximo de um grande elefante vivendo na sala.

Dados e estatísticas nos mostram como ainda estamos longe de uma resolução do problema, mesmo após a promulgação da Constituição Cidadã. Ainda que devidamente reconhecendo que a legislação brasileira, ao longo dos anos, tentou tratar do racismo e da tutela de vidas negras, produzindo leis históricas como a do Ventre Livre (1871), a Lei Áurea (1888), a Lei 7.716/1989 (ou Lei Caó, que definiu os crimes de raça ou cor), assim como também os artigos da própria Constituição que objetivam a promoção da igualdade racial (artigo 3º, IV). Mas ainda há de ser criada uma norma própria para o racismo praticado na internet.

Quando falamos sobre racismo, a ideia principal que vem à mente é a do crime com discurso de ódio, ofensas pessoais e agressões físicas, em que um indivíduo (ou grupo) grita, vocifera e esbraveja diante de um ou mais ofendidos. Ou, por definição legislativa (artigo 140, § 3º, do Código Penal), um indivíduo tem sua dignidade ou decoro ofendidos devido a uma ofensa baseada em sua cor, raça, etnia, religião ou condição física. Independentemente da definição, motivação ou ambiente em que o crime é consumado, a ideia permanente na consciência coletiva é a de que o racismo acontece pessoalmente, com ofensor e ofendido se encarando, frente a frente. Porém, com o advento da tecnologia e sua onisciência em todas as camadas de nossas vidas (em que 79,9% da população brasileira têm acesso à internet [1]), ela se tornou o campo de atuação perfeito para que o crime ocorra. O racismo praticado na internet (e por internet entende-se todo ambiente online onde exista interação entre pessoas, incluindo jogos, fóruns, redes sociais ou blogs) é algo que pode ser testemunhado por qualquer pessoa hoje em dia, quando observamos como a ideia de superioridade racial atravessa barreiras e se consuma em apenas um clique.

Para ilustrar o elefante na sala, somente no ano de 2019 a Safernet Brasil recebeu 8.337 denúncias de racismo na internet [2]. O dado sozinho pode não demonstrar a amplitude e extensão dos crimes de ódio que ocorrem em ambientes virtuais, mas nos dá uma boa ideia do quão presente o racismo é na internet, pois 8.337 denúncias são aproximadamente 23 denúncias por dia, quase uma por hora, o que significa que existem mais crimes de racismo online do que tráfico de pessoas (509 denúncias), intolerância religiosa (1.084 denúncias), maus tratos contra animais (1.142 denúncias) e neonazismo (4.244) somados. E, para pintar de branco este grande elefante, em relação a 2018,os crimes de racismo na internet tiveram um aumento de 37,71% [3].

Ao nos depararmos com esses dados surgem as perguntas preliminares: por que e como esse tipo de crime se propaga em ambientes virtuais? Por que continuamos assistindo a um aumento significativo dessa prática, inclusive após a promulgação do Marco Civil da Internet, em 2014?

Como uma das possíveis causas, temos o fato de que vivemos em uma sociedade em que racistas não se sentem inibidos para cometer seus atos online, tendo em vista que a falsa sensação de liberdade, somada ao medo das vítimas de denunciarem, surge como explicação para que esse comportamento continue sendo visto repetidas vezes na web. Devemos, também, levar em consideração que o racismo não escolhe classe social ou econômica, e que mesmo famosos e pessoas de grande alcance nacional sofrem com este tipo de ofensa.

Como exemplo disso, vimos o caso sofrido pelo ator carioca Bruno Gagliasso, que em 2017 foi forçado a buscar a Justiça para defender sua filha adotiva (nascida no Malawi, país do continente africano), que havia sido vítima de ofensas na internet pela escritora brasileira Day McCarthy [4]. Em vídeo, a escritora ofendeu sua aparência, falando sobre a cor de sua pele e sobre seu cabelo. Na época, a filha do ator tinha apenas quatro anos de idade. Em outro exemplo, vimos a jornalista da Rede Globo de Televisão Maria Julia Coutinho, em 2015, sofrer diversos ataques por meio de comentários na página oficial da emissora no Facebook, em que ridicularizaram a cor de sua pele, seus traços afrodescendentes e seus cabelos, com a ressalva de que, diferentemente do caso de Bruno Gagliasso, as ofensas não vieram de apenas uma pessoa, mas sim de várias [5].

A sensação de que a internet é terra de ninguém e que os atos não terão consequências motivam muitos comportamentos dessa natureza. Como outra possível causa, temos a dificuldade de provar que o crime foi cometido, já que mecanismos modernos (como programas que “escondem” o endereço de IP do computador utilizado) auxiliam na dificuldade de se identificar os perfis agressores. Nos dias de hoje, qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo pode ter em suas mãos as ferramentas necessárias para criar um perfil falso, anônimo ou de difícil detecção. O medo de se expor e a dificuldade de arcar com as custas de um possível processo também são demonstrativos de que a complexidade do problema não deve ser subestimada.

O problema é real, existe e está enraizado nas nossas estruturas sociais. A partir de onde será longe o bastante? Até quando justificaremos as lacunas legislativas que permitem este tipo de crime? Quando incluiremos artigos específicos que tratem de racismo e injúria racial na internet na Lei 12.965/2014?

O que se torna inadmissível é permanecermos inertes. Educar a população acerca de seus direitos (e deveres) na internet é outro ponto passível de discussão pertinente, capaz de diminuir o tamanho do problema. Ensinar em escolas, do ensino básico ao ensino médio, o que é correto e o que é crime em ambientes online (território em que crianças e adolescentes interagem cotidianamente) é questão de humanidade. Quando começarmos a tratar o problema por meio de suas especificidades e admitir que possui natureza própria, o Judiciário conterá formas e procedimentos para combatê-lo. Expandir e fortalecer delegacias especializadas em crimes virtuais também será de grande valia neste combate. 

Tratar do racismo na internet é tema íntimo dos direitos humanos e é dele que nasce a necessidade de estabelecer diretrizes que possam erradicar este tipo de comportamento nas relações interpessoais nos dias de hoje, construindo assim (esperamos, de maneira otimista) um futuro em que o elefante não esteja mais incomodando a passagem de nenhuma pessoa.

 

[1] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-35-7-dos-brasileiros-vive-sem-esgoto-mas-79-9-da-populacao-ja-tem-acesso-a-internet,70003077941. Acessado em 12/5/2020, às 15h37.

[2] https://canaltech.com.br/seguranca/brasil-registra-aumento-de-1600-em-denuncias-de-crimes-online-contra-mulheres-132103/. Acessado em 12/5/2020, às 15h38.

[3] [Idem]

[4] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/11/bruno-gagliasso-denuncia-ofensas-raciais-publicadas-contra-filha-titi.html. Acessado em 12/5/2020, às 15h43.

[5] http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/07/maria-julia-coutinho-maju-e-vitima-de-racismo-no-facebook.html?utm_source=blog&utm_campaign=rc_blogpost. Acessado em 12/5/2020, às 15h45.

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Superendividamento dos consumidores: Vacina é o PL 3.515 de 2015 (página 1 de 3)

A pandemia de Covid 19, além de acarretar o colapso nos sistemas de saúde de diversos países, tem trazido diversos efeitos colaterais derivados da crise econômica a ela associada. No Brasil, infelizmente, a situação não é distinta e já mergulhamos em recessão econômica, com o consequente incremento do já alto índice de desemprego[1].

O cenário tende, inexoravelmente, a deteriorar ou — em um número cada vez mais intenso de casos — inviabilizar a capacidade dos consumidores quitarem as suas dívidas em razão da perda de renda ocasionará por um evento absolutamente imprevisível. E se o consumo das famílias é responsável por 65% do PIB da economia brasileira[2] (algo em torno de 4,5 trilhões de reais!),[3] é preciso agir rápido para assegurar um mercado de consumo saudável no pós-pandemia causada pela Covid-19.[4]

A realidade é ainda mais dramática ao se verificar que o endividamento das famílias brasileiras já vinha experimentando uma efetiva ascensão e alcançou o recorde histórico ao atingir o percentual de 66,6% em abril de 2020, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), elaborada pela Confederação Nacional do Comércio. O nível de inadimplemento por seu turno alcançou o patamar de 25,9%, o mesmo de março do corrente ano, mas superior ao de abril de 2019, que foi de 23,3%.[5]  Antes da Pandemia causada pela Covid-19, o Idec estimava que destes, cerca de 30 milhões de pessoas seriam superendividados.[6]

Ademais há tendência de aumento do nível de endividamento, pois uma das medidas tomadas foi justamente o aumento da liquidez dos bancos para que fosse possível aumentar empréstimos e conceder suspensões temporárias de pagamentos de determinados contratos de mútuos[7]. Segundo o Instituto ‘Locomotiva’, 91 milhões de brasileiros deixaram de pagar pelo menos uma conta em abril de 2020.[8]

Os “acidentes de vida” mais comuns que motivam o superendividamento são doenças, redução de renda e desemprego[9]. A atual crise combina as duas causas e assim há a potencialização do risco de que haja um substancial aumento do superendividamento, principalmente tendo em vista que a crise econômica tende a ser mais duradoura do que a crise sanitária[10].

Portanto, o país tem que estar preparado para lidar com o aumento do superendividamento. E infelizmente não está, ao contrário do que ocorre com os Estados Unidos[11] e a Europa[12] – justamente as duas regiões mais afetadas pelo Coronavírus.

A necessidade de lidar com os efeitos do superendividamento não reverte exclusivamente em benefício do consumidor. Muito pelo contrário, os credores também são beneficiados se a lei for bem concebida. Sem a lei — e o consequente plano de pagamento dos débitos — há o sério risco de diversos credores (os com menores garantias) ou até mesmo a totalidade deles (tendo em vista que muitas vezes são credores sem garantia) nada receberem.

Ademais, restrições acessórias possuem um efeito devastador para a retomada da viabilidade econômica do consumidor. Pensemos na principal delas, a inscrição em cadastros de proteção ao crédito. A negativação importa em dificuldades efetivas para conseguir um emprego (já que normalmente as empresas consultam os cadastros antes da contratação e nada indica, muito pelo contrário, que deixarão de dar preferência a contratação de pessoas não negativadas.

A medida em que o consumidor não consegue o emprego, aumenta exponencialmente a dificuldade não apenas de quitação da dívida (o que se tornará absolutamente improvável), como de consumo até mesmo do mínimo existencial.

Assim o superendividamento afeta não apenas o consumidor e sua família, com fortes privações do mínimo existencial e abalos morais e psicológicos, mas também aos credores e a economia como um todo, pois o aumento do patamar de consumo é essencial para a retomada da economia, o que é impossível para o superendividado.

Há ainda o aspecto preventivo absolutamente essencial para os tempos atuais. O aumento de liquidez induz agressividade das instituições financeiras na oferta de novos empréstimos e novos produtos e, assim, a ampliação da educação para o consumo e de regras de vedação de publicidade e oferta enganosa são essenciais para evitar acesso insustentável ao crédito, que por ser concedido a quem não necessitaria ou não teria condições de adquirir novo crédito, acaba redundando em superendividamento[13].

Ainda que haja algumas normas esparsas, acórdãos de tribunais superiores[14] e iniciativas de programas de tratamento de superendividamento[15]  há intensa necessidade de uma norma sistematizadora, sendo a atualização do Código de Defesa do Consumidor, por intermédio do Projeto de Lei  nº 3515/2015 o veículo ideal para tal desiderato.

Podemos dividir em três âmbitos a proteção efetivada no âmbito do Projeto de Lei nº 3515/2015: normas de natureza preventiva, repressiva e de tratamento. Assim são vacina (prevenção) e tratamento/remédio (repressiva e de cura) do superendividamento do consumidor pessoa física, excluídos das possibilidades da falência e recuperação extrajudicial. As normas do PL 3515,2015 forma inspiradas no modelo francês de conciliação em bloco do consumidor com todos seus credores e a elaboração de um plano de pagamento, não havendo no caso brasileiro, perdão de dívidas, mas sim um plano compulsório para os que não conciliarem.[16]

No âmbito preventivo destacamos as normas do PL 3515,2015 que ampliam a educação para o consumo consciente e que aprofundam a exemplificação a informação a ser prestada pelas instituições para a concessão de crédito responsável, sempre pautados pela preservação do mínimo existencial. [17]

Destacamos, inclusive a expressa previsão da obediência ao princípio da boa-fé no conceito de superendividamento, que, seguindo exemplos de direito comparado[18] e adaptando-os à realidade nacional, é definido da seguinte forma pelo Projeto de Lei nº 3515/2015: “a impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação (art. 54-A,  § 1º)”. [19]

 é professora titular de Direito Internacional Privado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). É presidente do Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores e da International Law Association (Londres). Ex-presidente do Brasilcon e da Asadip (Paraguai).

Roberto Castellanos Pfeiffer é professor da USP, procurador do Estado de São Paulo e ex-Presidente do Brasilcon — Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasília)

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Faccini Neto: A pandemia e o Direito Penal

1. Estamos vivendo um tempo completamente inusitado. Há, em curso, uma pandemia e praticamente todos nós estamos experimentando um período de reclusão difícil. Os sentimentos se apresentam de uma maneira completamente distinta daquela que normalmente acontece, na medida em que estamos oprimidos por uma realidade que nunca vivenciamos. Somam-se ao medo, o tédio, a angústia, na medida em que a nossa própria liberdade de trânsito é, com amplas justificativas, comprimida.

Numa situação complexa como essa, é importante discutir algumas questões jurídicas, mormente no campo do Direito Penal. Isto porque há alguns tipos penais que sobressaem, que tem sua incidência, por assim dizer, mais pertinentes a esse momento, e, além disso, há corolários em termos de dogmática, ou de teoria do Direito Penal, que se revelam importantes. De maneira que a ideia deste texto é tratar das figuras típicas correlacionadas com esse momento.

2. De início, porém, realizarei uma abordagem geral, e, depois, pretenderei ir especificando os termos dessa discussão, para, finalmente, ingressar na temática mais particular dos tipos penais que se poderiam revelar numa situação de pandemia.

A primeira vertente dessa abordagem mais ampliada revela o seguinte: que neste período de pandemia, pelo menos três categorias do Direito Penal, muitas vezes rechaçadas por alguma doutrina, adquirem novo significado e mostram a importância que têm.

A primeira delas alude à temática dos bens jurídicos coletivos.

Sabemos que a trajetória da teoria do bem jurídico começa no século 19, com a perspectiva de que o bem jurídico haveria de ser considerado em termos de lesões aos interesses das pessoas. Isto tinha uma dimensão importante, já era uma espécie de densificação teórica do conceito, mas não respondia, sobretudo, a um questionamento pertinente àquela época, e que dizia respeito aos crimes contra os sentimentos religiosos. Muito em função disso, a evolução da ideia de bem jurídico passou a abarcar as lesões coletivas e, até o presente, vimos assistindo a uma espécie de reforço muito consistente na temática da criminalização de condutas que afrontem interesses não individualizáveis. Os exemplos são vários, como o meio ambiente, o sistema financeiro, o patrimônio público, para ficar apenas nisso.

Quando se vive um período como este, de pandemia, aqueles que são críticos à criminalização de condutas que violam interesses coletivos têm o ônus de explicar de que maneira se poderia cuidar desse tipo de situação. Há autores muito relevantes que defendem a ideia de que o Direito Penal deveria seguir aferrado ao seu chamado padrão clássico, ou seja, aquele Direito Penal cuja tutela estivesse concentrada na propriedade, no patrimônio, e, consequentemente, que aludisse exclusivamente à proteção dos interesses individuais. Se essa é uma visão aparentemente elitista, na medida em que retira do Direito Penal exatamente aquelas condutas praticadas pelas classes sociais mais abastadas, e relega o Direito Penal unicamente para que tenha sua incidência naqueles casos de delitos praticados pelas pessoas mais pobres, além disso, a verdade é que, quando se fala de proteção da saúde pública, ou seja, da incidência criminal na proteção deste interesse coletivo, máxime em tempos de pandemia, efetivamente estamos a reconhecer a importância dessa categoria, qual seja, a dos bens jurídicos coletivos.

De maneira que quem recusa a ideia dos bens jurídicos coletivos acaba deixando a saúde pública e, consequentemente, os interesses mais expressivos das pessoas, desprotegidos numa situação como essa.

A segunda categoria que é resgatada, neste momento de pandemia, é a dos chamados crimes de perigo. Tais crimes, como cediço, são alvo de diversos ataques doutrinários, no sentido da sua ilegitimidade, porquanto o Direito Penal haveria de incidir somente quando houvesse dano, ou seja, resultado lesivo ao bem jurídico. A questão, entretanto, é que vivemos numa época em que a dimensão do risco, ou seja, da probabilidade de dano, é significativamente importante, e, muitas vezes, evitável. Atualmente, é possível prevermos situações que, em ocorrendo, terão uma gravidade brutal, de consequências tremendas. Quando isso sucede, é natural que se antecipe a tutela penal, de modo que, antes mesmo de que a lesão ocorra, e com o desiderato de inibi-la, o Direito Penal já atua para tutelar e proteger o bem jurídico.

A terceira categoria que se afigura importante neste quadro é a das chamadas normas penais em branco. Não é necessário ingressar em sua classificação, que alguma doutrina realiza, sobre serem as normas penais em branco lato sensu ou stricto sensu. A nomenclatura não se revela importante, pois o certo é que as normas penais em branco, que são aquelas cujo conteúdo carece de complemento e, sobretudo, cujo conteúdo carece de um complemento não legislativo, mormente em termos de atos administrativos, afeiçoam-se com o princípio da legalidade, visto que o conteúdo da proibição já vem expresso pela lei. Sucede que determinadas situações carecem de uma espécie de velocidade normativa que o parlamento não é capaz de dar, seja no sentido do preenchimento do conteúdo, seja no sentido de alterações que, eventualmente, se afigurem necessárias. Quer dizer, os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo, por seus diversos órgãos, como o Ministério da Saúde, têm a possibilidade de regular muito mais adequadamente os meios de combate e os efeitos da pandemia.

Para além disso, embora não seja exatamente um tópico de Direito Penal, parece importante referir que o momento atual também nos faz pensar a respeito do chamado confronto entre o interesse público e o interesse particular. O Direito Constitucional e o Direito Administrativo de outrora consagraram a parêmia cediça da preponderância do interesse público sobre o interesse particular, mas, como se sabe, isso foi sendo alterado ao longo do tempo, principalmente por algumas decisões judiciais. A situação que vivenciamos mostra, contudo, que a Carta Constitucional não é formada somente de direitos, visto que também estabelece deveres. Isso significa que o interesse público, sobretudo em situações dramáticas de crise, fala mais alto do que o interesse particular, e, portanto, devemos nos submeter às variadas determinações que, no fim das contas, têm muito menos um sentido paternalista, de proteger o indivíduo de si próprio, e mais de proteger a coletividade. Noutras palavras, isso quer dizer que quando somos tolhidos da possibilidade de sair às ruas do modo como fazíamos há alguns meses, isto não é, exclusivamente, para garantir que não nos contaminemos, mas, sim, para evitar que nos tornemos um vetor de contaminação de outras pessoas, em especial daquelas pessoas mais frágeis e situadas em grupos de risco. Ou seja, busca-se evitar que nos tornemos uma “fonte de perigo”, uma espécie de bomba relógio, e que vai levar o vírus e as suas consequências a uma infinidade de outros indivíduos.

Clique aqui para ler o artigo na íntegra

 é juiz de Direito, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul.