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Entrevista: Vladimir Passos, ex-secretário de Justiça

Na véspera do último natal e ignorando grande parte das sugestões feitas por Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública, o presidente Jair Bolsonaro sancionou, com vetos a 25 itens, a chamada lei “anticrime” (Lei 13. 964/19). 

Uma medida em especial desagradou a equipe de Moro: a criação do juiz das garantias. Com a inclusão da nova figura, que não fazia parte da proposta original, um magistrado atua no processo preliminar de investigação e outro no julgamento. A implantação acabou suspensa por seis meses pelo ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal. 

Para o desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas, que foi secretário de Justiça e assessor para assuntos legislativos na pasta de Moro, o Brasil não tem a menor possibilidade de fazer com que o juiz das garantias funcione adequadamente. Ex- presidente do TRF-4, Passos também é colunista da ConJur.

“É um modismo importado da Espanha e não vejo como poderia ser adaptado aqui, inclusive porque seria necessário nomear muitíssimos juízes e o Brasil é um país que ainda não se compenetrou que é pobre. Agora, com a Covid-19, a ficha está caindo e nós estamos vendo que somos um país carente. Não temos a quantidade de juízes para criar mais uma instância. Nós já temos quatro, agora teríamos cinco instâncias”, afirmou Passos em entrevista concedida à ConJur por telefone.

Exonerado duas semanas depois de Moro pedir demissão, o desembargador aposentado acredita que o ex-juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba fez uma boa gestão, apesar das dificuldades.

“A gestão do Moro se concentrou mais nos aspectos relacionados à segurança pública do que nos voltados à Justiça. Na parte da Justiça, o Brasil, ao contrário de outros países, tem seus temas decididos pelos tribunais e pelo Conselho Nacional de Justiça, não pelo Ministério da Justiça”, diz.

Confira a entrevista na íntegra:

ConJur — A lei “anticrime” foi sancionada com muitas alterações. Que avaliação faz da proposta tal como foi assinada?

Vladimir Passos —
Eu diria que ela foi sancionada com um aproveitamento de cerca de 35%. Não é o ideal. Mas o presidente da República não teria muita legitimidade para vetar o que o Legislativo fez. Até poderia ficar pior se vetasse tudo. Um dos pontos que não foram vetados — e eu lamento muito por isso  — foi o juiz das garantias. Essa sim é uma iniciativa que não estava no pacote e veio do Congresso. Ela poderia ter sido vetada e não foi. Acabou sendo suspensa pelo Supremo. 

ConJur — Mas ao que tudo indica será implantada em breve. Por que lamenta a introdução do juiz das garantias? 

Vladimir Passos —
Eu não vejo a necessidade disso no Brasil. Não existe isso em países mais desenvolvidos. É uma criação que nasceu na Espanha e se desenvolveu pouco na maioria dos países. Só existe em alguns países da América Latina e são países muito diferentes do nosso. O Brasil tem uma extensão territorial imensa. Não temos a quantidade de juízes para criar mais uma instância. Nós já temos quatro, agora teríamos cinco instâncias. É um modismo importado da Espanha e não vejo como poderia ser adaptado aqui, inclusive porque seria necessário nomear muitíssimos juízes e o Brasil é um país que ainda não se compenetrou que é pobre. Agora, com a Covid-19, a ficha está caindo e nós estamos vendo que somos um país carente, pobre, que os recursos públicos não são infinitos e que não há como uma lei ou uma liminar criar recursos públicos. Agora estamos chegando à realidade. 

ConJur — Muitos especialistas com quem conversamos na ConJur disseram que não haveria gastos extras, já que poderia ser feito um intercâmbio entre as varas. Em artigo recente, o senhor afirmou que o coronavírus está demonstrando que o Judiciário é cada vez mais digital e que essa é uma tendência que irá perdurar. Isso não pesa a favor da implantação do juiz das garantias?

Vladimir Passos —
Vejo muita gente falar que é possível implantar, mas poucos conhecem o Brasil. Eu conheço a realidade de quase todos os tribunais e da Justiça do país, porque eu estudo e visito. A substituição de um juiz por outro é uma ilusão. Primeiro porque no momento em que ele está substituindo o outro, ele deixa de fazer o serviço da vara dele. Segundo, porque existe, por exemplo, o juiz que é da comarca cível, outro da criminal. Daí um vai começar a decidir sobre facções criminosas, lavagem de dinheiro, tráfico e coisas desse tipo, sem entender nada de crime. A internet, sim, ela ajuda. Muitos estados, no entanto, têm dificuldade de internet. Tudo isso é relativo. O que não é relativo é que se gastaria, sim, dinheiro. 

ConJur — Outra alteração significativa veio com a lei contra abuso de autoridade. O que achou dela? 

Vladimir Passos —
Eu sou favorável ao controle. Todos devem ser controlados. Nenhuma autoridade tem o poder absoluto. Portanto, em princípio, uma lei que regule abusos é boa. A lei tem pontos positivos, como por exemplo regular o pedido de vista nos tribunais, já que um pedido de vistas às vezes segura uma ação por anos, sem que se possa fazer nada. A lei também foi cautelosa quando disse que é preciso o magistrado agir com dolo para ser punido. Até aí, nada tem de errado. Mas como ela tem tipos penais muito abertos, cerceia a atividade do juiz. Por exemplo, quando ela diz que é crime decretar medidas de privação de liberdade em desconformidade com as hipóteses legais, está intimidando o juiz. Na dúvida, o juiz não fará. Se ele não faz, não se arrisca. Pode-se dizer que só há crime se o magistrado agir dolosamente. Mas o juiz pode responder a uma ação penal que irá durar muitos anos. O perigo dessa lei é intimidar a polícia, o Ministério Público e os juízes. Criaremos uma legião de burocratas que não arrisca nada, não melhora nada. 

ConJur — O senhor disse que os juízes, na dúvida, podem acabar não fazendo nada. Mas na dúvida não seria justamente melhor não fazer nada?

Vladimir Passos —
Não. Na dúvida se é certo ou errado é melhor não fazer nada. Mas na dúvida se tem risco ou não tem risco, o melhor é fazer, porque quem não arrisca não muda nada, não melhora nada. Quem assume funções sabe que muitas vezes há uma zona cinzenta em que é preciso agir e, se não age, as coisas ficam como estão. 

ConJur — Se a lei “anticrime” e a lei contra abuso de autoridade estivessem em curso desde 2013, a “lava jato” em Curitiba teria ocorrido de forma diferente? As condutas de Moro em Curitiba e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região poderiam ter sido consideradas abusivas?

Vladimir Passos —
Eu não considero que houve abuso, porque já houve julgamentos na segunda instância e no STJ, com sentenças confirmadas. Eu não conheço os processos, nunca li o processo A ou B, porque eu não tenho tempo de ler 30 mil folhas. Mas eu sei que muitos juízes julgaram diversos casos e tenho a presunção de que não houve abusos. Agora, se isto tudo já existisse como legislação, é difícil dizer como os juízes reagiriam. Eu não sei dizer. Talvez um juiz tivesse medo da lei de abuso de autoridade e o outro não. 

ConJur — Como foi a experiência no Ministério da Justiça?

Vladimir Passos —
Riquíssima e totalmente diferente da experiência do Judiciário. O executivo exige muitas reuniões — primeiro, dentro do Ministério da Justiça; depois, com outros ministérios; por fim, com o Poder Legislativo. Tudo isso força a ser desenvolvida uma habilidade de negociação, coisa que no Judiciário não existe. A pessoa faz concurso para promotor ou juiz e é acostumada mais a decidir, a mandar, do que realmente a negociar. Foi uma experiência muito rica, porque eu pude conhecer o outro lado da moeda, com todas as suas dificuldades — que são muitas — e com todas as suas coisas boas e ruins. 

ConJur — Quais seriam as dificuldades e o lado bom e ruim?

Vladimir Passos —
O bom é que nenhum projeto sai do Executivo ou passa por lá sem que haja um exame muito grande, uma discussão mais aprofundada, minuciosa e com detalhes. O lado ruim é que há burocracia. Nos projetos de lei que vêm do Legislativo, os interesses são mais corporativos ou pessoais do que propriamente de interesse público. É preciso saber lidar com isso; administrar, discutir, para que se chegue ao melhor resultado. 

ConJur — Dentro dessas dificuldades, quais foram os sucessos e insucessos da gestão Moro?

Vladimir Passos —
 A gestão do Moro se concentrou mais nos aspectos relacionados à segurança pública do que nos voltados à Justiça. Na parte da Justiça, o Brasil, ao contrário de outros países, tem seus temas decididos pelos tribunais e pelo Conselho Nacional de Justiça, não pelo Ministério da Justiça. Esse ministério tem uma importância maior na área da Justiça em outros países. Na parte da segurança pública, foram muitos os avanços. Por exemplo, a criação de um processo ágil de venda de bens apreendidos, principalmente do tráfico, propiciou ao Brasil uma recuperação de milhões de reais. Só neste ano foram R$ 3,6 milhões em venda de bens apreendidos. Também tem a criação do Fusion Center [Centro Integrado de Operações de Fronteira (CIOF)]. Nunca o Brasil teve uma segurança unificada. Essa é uma ideia norte-americana, mas que existe em países como a Argentina. Todos os órgãos nacionais das polícias estaduais, da Polícia Federal, da Receita e AGU trabalham em conjunto num prédio só. 

O Fusion Center já foi implantado em Foz do Iguaçu (Paraná) e os resultados já estão se fazendo sentir, são muito bons. Esse órgão também trata de uma política internacional. Houve uma aproximação muito grande com os países vizinhos, por meio de atos que desburocratizaram a forma de agir da segurança pública de países que são separados por um rio, por uma rua, e que têm muito em comum. Entre os sucessos, eu coloco também a remoção de 22 presos do PCC, em uma verdadeira operação de guerra. Essa era uma demanda que todos diziam ser impossível de cumprir. Os membros da organização estavam em um presídio paulista em que tinham todas as regalias e a possibilidade de enviar ordens para fora. Uma vez transferidos para um presídio federal, isso desaparece, já que o número de presos é menor e as condições são de um rigor extremo. Não há celular, não há nada.  

ConJur — Mas essa ação não é muito mais uma obra do Ministério Público de São Paulo, que foi quem pediu as transferências? O governador de São Paulo, João Doria, também disputa a autoria da operação. Não seria um sucesso mais do governo estadual do que propriamente do Ministério da Justiça?

Vladimir Passos —
O governo de São Paulo colaborou de uma forma excelente. Não houve vazamentos de espécie alguma e houve colaboração total. Isso é verdade. Mas sem o apoio da Secretaria Operacional do Ministério da Justiça, que unifica a operação entre todas as polícias do Brasil, isso jamais seria possível. A Secretaria conseguiu o apoio também da Aeronáutica. Isso é muito difícil. Esse tipo de trabalho é impossível de ser feito por um órgão só. É preciso haver coordenação e, no caso, houve. A participação de São Paulo foi fantástica, sim. Mas houve uma participação essencial do Ministério da Justiça. 

ConJur — Outra disputa entre governadores e a gestão Moro diz respeito à queda no número de homicídios, que já vinha sendo uma tendência nos últimos anos.

Vladimir Passos —
Não creio que isso seja uma tendência que vinha forte nos últimos anos. É impossível saber exatamente onde houve uma interferência maior ou menor, porque nós temos 26 estados e um distrito federal. Pode ser que no estado “x” haja queda nos homicídios por causa da adoção de determinada política pública e no estado “y”, não. Mas, de qualquer forma, o papel do governo federal é propiciar legislações eficientes e dar apoio nas ações, inclusive na cooperação. Eu não tiraria mérito dos estados nem negaria que houve mérito do governo federal. O importante é saber que os homicídios diminuíram. Diminuiu? Então ótimo. Palmas. 

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Covid-19 traz lições históricas a tomar

Já se escreveu (Antonio Manuel Hespanha) que a história é um guarda-roupa no qual cabe qualquer fantasia. Tudo se exemplifica, se justifica, se explica. Para tudo há uma lembrança pronta. Eu sempre resisti à armadilha posta por aqueles que acham que a história traz lições e que se repete. É o pensamento de Cícero, o tribuno romano que acreditava que a história era a mestra da vida. Será? Pensava que não. Acho que chegou a hora de mudar de ideia. Penso agora que sim, que a história também ensina e ilustra. Em tempos de Covid-19 há lições históricas a tomar. Quais?

Além de ação (muita ação) o enfrentamento da Covid-19 sugere alguma (muita) reflexão. Há problemas historiográficos, comparativos, dramatúrgicos, políticos (principalmente), epistemológicos (de paradigmas científicos). A Covid-19 sugere também algumas leituras, isto é, para privilegiados que podemos substituir o deslocamento e o trânsito e a espera pela paz dos livros.

Há títulos disputadíssimos. De algum modo são livros que tratam de pestes e de mortes incontáveis. Nessa lista, “A Peste”, de Albert Camus, “O Decameron”, de Giovanni Boccaccio, “Morte em Veneza”, de Thomas Mann. Cristiano Paixão, competentíssimo professor de História do Direito, inclui ainda “O ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago. Nesse último livro há dois personagens que sobressaem: a mulher do médico e o cão das lágrimas. Simbolizam a solidariedade, a compreensão para com o outro e a disponibilidade permanente para ajudar. Precisamos imitar a mulher do médico e o cão das lágrimas. Necessitamos de solidariedade e de compreensão.

Quanto ao tema da história há semelhanças e paralelos com fatos passados que chamam a atenção, e que dão ao registro histórico uma autoridade inegável. Refiro-me ao problema da varíola e a revolta da vacina (1904), à gripe espanhola (1918) e ao surto de meningite (meados da década de 1970). Pode-se compreender nosso tempo e nossos horrores no contexto dessas experiências? Claro que sim. Tenho a impressão de que sempre houve negacionistas, ignorantes, brutamontes, aproveitadores da desgraça. Mas também há bem-intencionados. Identifiquemos e dialoguemos com essas figuras. Apoiemos essas últimas, repudiemos aquelas primeiras.

Em 1904 o então presidente Rodrigues Alves (que morreu de gripe espanhola 15 anos depois) contou com uma trinca imbatível: Pereira Passos (o prefeito do Rio, que havia estudado a reforma do Barão Haussmann em Paris), Lauro Müller (que coordenou a reforma do porto do Rio de Janeiro) e Oswaldo Cruz (diretor da saúde pública, o tirano da vacina, como seus críticos o definiam). No combate à varíola a vacinação tornou-se obrigatória.

Contra a ciência e a vacina estavam os positivistas, os florianistas, Lauro Sodré e o próprio Rui Barbosa. Quem diria, Rui, a (suposta) mente mais iluminada da época, condenava a vacina, não admitindo se envenenar, com a introdução, em seu corpo “de um vírus cuja influência existem [iam] os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”. Estava de olho nas eleições, que sempre perdeu. Já havia a necropolítica, bem antes da criação desse neologismo macabro. A má política já tinha a mania de negar a ciência.

O combate à febre amarela foi conspurcado com uma obstinada perseguição de pobres que habitavam o centro do Rio de Janeiro, o que justificou a revolta popular. Bondes incendiados, barricadas e muitas prisões. A necropolítica aproveitou o momento para negligenciar o pobre. Nenhuma novidade.

Sigo com a “influenza”. A censura em tempos de epidemia explica, inclusive, o batismo da gripe de 18-19 como “espanhola”. Era o tempo da primeira guerra mundial. Os países envolvidos no conflito não noticiavam as mortes pela gripe; era propaganda negativa. A Espanha, porque fora da guerra, não se submetia a essa regra. Os jornais espanhóis tratavam do assunto, o que resultou na identificação da gripe com o país. A gripe espanhola é, assim, mais um exemplo do odioso controle de informações, em desfavor da população. A gripe era um segredo de guerra. Matou mais do que os campos de batalha. A necropolítica política desinforma. Ilude.

Nas primeiras páginas do recentemente lançado “Metrópole à beira-mar” o escritor Ruy Castro narra com precisão de pormenores a tragédia da gripe no Rio de Janeiro. Um contemporâneo da tragédia, Lima Barreto, não tratou da gripe espanhola em suas crônicas, talvez porque internado pelo alcoolismo. No entanto, em seu Diário, registrou a violência policial na revolta da vacina. Lê-se em outro contemporâneo, João do Rio, na “Alma encantadora das ruas”, uma crônica, “Sono calmo”, que descreve o ambiente dos cortiços, cujos proprietários alugavam esteiras para dormir. Os locatários foram sistematicamente dizimados pelas autoridades. Pedro Nava, o grande memorialista, conta que viu uma criança tentando mamar no seio da mãe, morta pela gripe, caída no chão. Gilberto Amado, intelectual e político sergipano que vivia no Rio, conta-nos que via defuntos jogados em caminhões.

A Biblioteca Nacional disponibiliza em sua hemeroteca digital os jornais da época. Sugiro a leitura dos classificados do Jornal do Brasil. Vendiam todos os tipos de remédios milagrosos. Pregava-se o uso do sal de quinino, que na verdade matava por intoxicação. Difundia-se o uso da aspirina, que em doses cavalares era letal. Tragédias se equivalem.

Há também uma dramaturgia que acompanha essas levas de mortes maciças. Parece-me a dramaturgia de toda tragédia. Nega-se o fato, resiste-se a um novo cotidiano, o que fundamental para a retomada da situação perdida. Essa negação se fazia por intermédio da divulgação de informações falsas, a exemplo de um reclame do sindicato dos trabalhadores do comércio no Rio, que afirmava que a gripe era benigna e que apenas atacava os mais fracos. Recomendavam um purgante como remédio certeiro.

No caso da meningite, e nesse caso meu registro é biográfico, e não bibliográfico, recordo-me que se confundia meningite com insolação, retomando-se um determinismo sanitário paliativo. Não se explicou o que houve. E também não se perguntava. Por quê?

Uma reflexão em torno dessas três epidemias (varíola, gripe espanhola e meningite) pode permitir o alcance de denominadores comuns de orientação para qualquer forma de ação no momento presente: informação e precaução. A boa informação (o que de imediato exclui a mensagem do zap do tio mala que todos temos ou somos) exige que nos preocupemos com as fontes. Quem disse? Quem escreveu? O que de fato foi dito? O que de fato foi escrito? Há provas ou outras referências? O uso malicioso de informações, nesse campo sanitário, é imperdoável. E se dúvidas há, a precaução é guia seguro para a ação segura.

No limite, a precaução justifica o medo. Filho de Ares e de Afrodite, o Medo era também uma figura mitológica que acompanhava o deus da guerra (Ares) nas batalhas. Apavorava os inimigos, que em desespero fugiam. O medo tem uma função estabilizadora de nossas defesas. Não se confunde com a covardia. A lição histórica que se tira dos fatos aqui narrados, parece-me, consiste em pensarmos que viver cautelosamente, e de par com a informação qualificada, pode ser, em momento crítico, um meio adequado para vivermos mais, e melhor, bem como para acudirmos quem precisa de ajuda nessa hora difícil. E também no limite, como a mulher do médico e como o cão das lágrimas, precisamos ser solidários.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

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Conselho profissional pode cobrar anuidade enquanto houver vínculo

Formalidade necessária

Anuidade de conselho profissional só será interrompida após cancelamento formal

Colegiado da 7ª turma do TRF-1 confirmou sentença favorável a conselho profissional
123RF

Cabe ao profissional formalizar o cancelamento de sua inscrição, perante o Conselho Profissional, quando deixar de exercer atividades relacionadas ao seu ramo profissional, sob pena de cobrança de anuidades.

Com esse entendimento, a 7ª turma do Tribunal Regional Federal da 1ª região confirmou sentença que considerou cabível a cobrança das anuidades de uma profissional da área de contabilidade por parte do CRC/BA Conselho Regional de Contabilidade do Estado da Bahia.

No recurso apresenta ao TRF-1, a parte autora alegou que não exerce mais e profissão e que, por isso, a cobrança de anuidades se mostra completamente indevida por parte do conselho profissional. A autora também alegou que o que gera a obrigação de pagamento é o efetivo exercício da profissão e não a inscrição no órgão de classe.

A apreciar o recurso, o relator, desembargador federal Hercules Fajoses, afirmou que “a obrigação de pagar a anuidade independe do exercício da profissão para a qual se inscreveu o embargante no Conselho de sua categoria. Ou seja, ainda que não exerça sua atividade profissional, lhe será cobrado o pagamento das anuidades enquanto permanecer formalmente vinculado ao órgão fiscalizador”.

O desembargador também pontuou que a autora não apresentou nenhum documento que comprove a existência de requerimento formal de cancelamento de registro. O voto do relator foi acompanhado e negou o recurso.

Clique aqui para ler o acórdão
1005252-69.2018.4.01.0000

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Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2020, 7h31

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Opinião: O julgamento privado de assuntos públicos

Já tivemos oportunidade, juntamente com João Pedro de Souza Mello [1], de tecer algumas reflexões demonstrando inconformismo com a radicalização dos julgamentos virtuais. Naquela oportunidade, debatíamos a inconstitucionalidade dos julgamentos secretos por ofensa à publicidade dos atos jurisdicionais.

Agora, na companhia de Marcelo Leal, trazemos à baila outra questão de relevo: os julgamentos em sessões por videoconferência. Desde já deixamos claro que, como não poderia deixar de ser, compreendemos e entendemos o momento excepcional pelo qual estamos passando a justificar medidas administrativas tendentes a viabilizar os trabalhos em todas as instâncias e, com o Poder judiciário, não poderia ser diferente.

O que nos chama a atenção é que essas providências são sempre construídas com esvaziamento ou dificuldades para que as partes, verdadeiras interessadas nos julgamentos, possam, de fato, influir na decisão que será tomada.

Talvez seja despiciendo dizer que, entre os princípios constitucionais/processuais, o da publicidade alcança relevo ímpar. Tanto que os membros da comissão responsáveis pela elaboração do atual Código de Processo Civil, na exposição de motivos, enalteceram que “prestigiando o princípio constitucional da publicidade das decisões, previu-se a regra inafastável de que à data de julgamento de todo recurso deve-se dar publicidade (todos os recursos devem constar em pauta), para que as partes tenham oportunidade de tomar providências que entendam necessárias ou, pura e simplesmente, possam assistir ao julgamento”.

Esse direito de que “pura e simplesmente, possam assistir ao julgamento” nos parece não ser condicionado a qualquer peticionamento ou requerimento. É adstrito, inclusive, ao dever de fiscalização de todo e qualquer ato praticado pelos agentes públicos, como decorrência lógica da democracia. No entanto, com o fechamento dos prédios públicos, em razão da quarentena pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 , medida necessária à proteção de todas e todos, não basta às partes, nos julgamentos de sessões por videoconferência, o simples acesso via YouTube.

O princípio da publicidade, por sua grandeza, requer outros estruturantes, inclusive para que a decisão proferida esteja de acordo com o escopo desenhado e garantido pela Constituição Federal. Sem os princípios da participação e da colaboração, por exemplo, a publicidade restringir-se-ia à mera possibilidade de, passivamente, assistir ao julgamento sem, contudo, a possibilidade de influir na construção da decisão, cuja consequência será, ante a tendência atual da adoção ao sistema precedentalista, imposto a todos os jurisdicionados [2]. “A colaboração no processo é um princípio Jurídico” [3] e, como tal, não pode sofrer mitigação justamente no ápice do procedimento materializado pelos julgamentos nos tribunais e “deve ser uma pauta constante na marcha procedimental, com influência significativa desde a propositura da demanda até a preclusão das vias recursais” [4].

Bem por isso, a regulamentação das sessões de julgamento por videoconferência não pode deixar as partes à deriva. Elas precisam de livre acesso à sala de julgamento via seus advogados, advogadas. Não se justifica ter esse direito apenas nos casos com sustentação oral. Alguns tribunais não permitem o acompanhamento pelos profissionais, devidamente nomeados pelas partes, nas sessões de julgamento de recursos nos quais não há previsão de defesa oral.

Em resumo, a parte fica sem assistência do profissional que contratou e outorgou poderes para lhe representar em todos os atos e termos do processo. Quem advoga, ainda que minimamente, nos julgamentos colegiados sabe que muitos pontos, denominados questões de fatos, podem ser dirimidos pelos procuradores no momento do julgamento. Ainda que o caso, à primeira vista, revele-se de simples solução, pode ocorrer, como não raramente ocorre, que seja necessário esclarecimento de fato relevantíssimo para o deslinde da causa. Nós mesmos já tivemos a oportunidade de explicar que denominado julgamento estava levando em consideração outra demanda, que nada dizia respeito à nossa e, com isso, evitou-se que o equívoco fosse convalidado em acórdão.

O acesso às sessões de julgamento por videoconferência deve ser conferido à parte interessada, de forma irrestrita e não somente como uma opção de, como mero espectador, assistir à cena, sem qualquer possibilidade de intervenção.

A questão toma maior gravidade quando se vê a amplitude de julgamentos virtuais que hoje admitem até que matéria de natureza penal seja julgada desta forma.

Pior do que isso é a possibilidade de que julgamentos que se iniciaram de maneira presencial sejam transformados em virtuais. É o que autoriza o artigo 5º-A da Resolução 642/19 do Supremo Tribunal Federal, alterada pela Resolução 669, de 19 de março de 2020, que dispõe: Artigo 5º — Os processos com pedidos de vista poderão, a critério do ministro vistor com a concordância do relator, ser devolvidos para prosseguimento do julgamento em ambiente virtual, oportunidade em que os votos já proferidos poderão ser modificados”.

Em outras palavras, a resolução permite que um julgamento iniciado presencialmente, mas interrompido por pedido de vista, retorne em mesa virtual, já sem o acompanhamento e participação do advogado, criando uma verdadeira quimera [5] jurídica.

Ainda que as sustentações orais já tenham sido realizadas, os advogados têm o direito de apresentar questões de fato, participando da construção da decisão, sob pena de tornar a advocacia numa atividade meramente cosmética.

Por isso, também não se coaduna com o processo justo a condicionante de que a parte só terá direito de acessar a sessão de julgamento por videoconferência se, com antecedência de 24 horas, realizar pedido de preferência, com indicação de que irá fazer um esclarecimento de fato. Isso porque, como já frisado, a restrição à publicidade do julgamento em virtude a pandemia não pode, em absoluto, impedir acesso “real” dos advogados(as) das partes cujo processo esteja pautado para ser julgado naquela sessão. O prévio pedido de esclarecimento de fato não pode ser o móvel condicionante a abrir as portas da “sala de julgamento por videoconferência”. Mesmo porque essa questão pode surgir, como de fato surge, somente no momento do julgamento, a exigir do profissional requerer o uso da palavra.

Por fim, é também altamente criticável o encaminhamento de sustentação oral por meio eletrônico. Retira-se da advocacia a única certeza de que os argumentos de defesa serão efetivamente considerados no julgamento, já que, pelo volume de trabalho dos tribunais, sabe-se que grande parte da demanda de um gabinete, ainda que sob a supervisão de ministro ou desembargador responsável, é desaguada pela massa de servidores e assessores.

Por isso, a sustentação oral ainda é o momento sagrado em que, finalmente, o advogado tem a certeza de que será ouvido pelos julgadores. Esta certeza se esmaece com o texto do artigo 5º A da Resolução 642/19 do STF, que assim dispõe:

Artigo 5º-A — Nas hipóteses de cabimento de sustentação oral previstas no regimento interno do tribunal, fica facultado à Procuradoria-Geral da República, à Advocacia-Geral da União, à Defensoria Pública da União, aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual.

§ 1º — O advogado e o procurador que desejarem realizar sustentação oral em processos submetidos a julgamento em ambiente eletrônico deverão enviar formulário preenchido e assinado digitalmente, juntamente com o respectivo arquivo de sustentação oral.

§ 2º — O link para preenchimento do formulário e envio do arquivo eletrônico estará disponível na página principal do site do STF.

§ 3º — O arquivo eletrônico de sustentação oral poderá ser áudio ou vídeo, devendo observar o tempo regimental de sustentação e as especificações técnicas de formato, resolução e tamanho, definidos em ato da Secretaria Geral da Presidência, sob pena de ser desconsiderado”.

Se “há coisas, na democracia, que o constrangimento público impede” [6], por certo somente a possibilidade de participação efetiva das partes no julgamento garantirá, ao menos, que o julgamento se dê de acordo com “os fatos” postos sob o crivo do tribunal.

 é advogado, professor da Faculdade de Direito da UnB e pós-doutor pela Universidad Complutense del Madrid. Compôs a comissão de juristas responsável pela elaboração e acompanhamento do anteprojeto do novo CPC no Senado.

 é advogado criminalista no escritório Marcelo Leal Advogados Associados e mestre em Direito.

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Fischinger e Oliveira: O julgamento colegiado e o Pacote Anticrime

Entre as várias alterações na sistemática processual trazidas pela Lei 13.964/2019 está a implementação das varas criminais colegiadas para o processamento, em primeiro grau, dos delitos: 1) de pertinência a organização criminosa armada (artigo 2º, § 2º, da Lei 12.850/13), ou que tenham “armas à disposição”; 2) de milícia privada (artigo 288-A); e 3) conexos a tais figuras delitivas.

Essa novidade foi implementada com a inserção do artigo 1º-A na Lei 12.694/12, diploma de tímida ou nenhuma efetividade desde sua promulgação, mas que, na época, ficou conhecido como Lei do Juiz Sem Rosto e se apresentou com o objetivo de resguardar a integridade física dos magistrados que julgam organizações criminosas e crimes por estas praticados.

O artigo 1º da Lei 12.694/12 o qual não foi revogado ou alterado pelo denominado Pacote Anticrime prevê a possibilidade de formação de colegiado, convocado facultativamente pelo juiz da causa, para a prática de qualquer ato processual, em especial nas situações previstas nos incisos do mesmo dispositivo, quais sejam: decretação de prisão ou de medidas assecuratórias, concessão de liberdade provisória ou revogação de prisão, sentença, progressão ou regressão de regime de cumprimento de pena, concessão de liberdade condicional, transferência de preso para estabelecimento prisional de segurança máxima e sua inclusão no regime disciplinar diferenciado.

No regime anterior, a única exigência para a convocação do colegiado era a de que o magistrado indicasse os motivos e as circunstâncias ensejadoras de risco à sua integridade.

A lei de 2012 prevê, ainda, que o colegiado seja formado pelo juiz competente para o processo e dois outros juízes que seriam escolhidos, por meio de sorteio eletrônico, entre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição, limitando-se a competência do colegiado para aquele ato a que fora convocado.

No entanto, a Lei 13.964/2019, denominada de Pacote Anticrime, ao acrescentar à Lei 12.694/12 o artigo 1º-A faculta aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais a criação de varas criminais colegiadas, isto é, especializadas, estabelecendo com maior detalhamento a competência de tais órgãos jurisdicionais (julgamento dos crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou “que tenham armas à disposição”, de constituição de milícia privada e das infrações penais conexas a essas infrações).

Depreende-se da leitura dos dispositivos que a nova lei acresce dinâmica de processamento aos crimes referidos, sem retirar a previamente existente.

Com efeito, o procedimento previsto no artigo 1º tem por objeto crimes de organização criminosa em geral isto é, armada ou desarmada, com ou sem “armas à disposição” , inclusive crimes conexos, pois, a despeito de o legislador não prever expressamente os crimes conexos (como faz agora o artigo 1º-A), vale-se da expressão “crimes praticados por organização criminosa”, sendo evidente que ilícitos dessa natureza são conexos ao próprio crime de organização criminosa.

Entretanto, ao contrário do que ocorre com a nova disposição do artigo 1º-A, o regramento antigo se limitou a aventar a convocação temporária de um colegiado para a prática de atos determinados, sendo que os juízes não precisam sequer pertencer à mesma comarca, bastando que atuem em primeiro grau de jurisdição e em varas criminais. O § 5º do artigo 1º, aliás, dispõe que os juízes convocados (que serão escolhidos por meio de sorteio) de comarcas diversas do magistrado da causa poderão participar de reuniões por meio de videoconferência.

O artigo 1º-A, por sua vez, integra ao ordenamento prescrições mais complexas, porquanto prevê a criação de órgão especializado e, ainda, diferentemente do artigo 1º, limitado a organizações criminosas armadas ou que possuam “armas à disposição”.

Esse parece ser o aspecto mais relevante da nova disposição: a lei faculta a criação da vara especializada, e, caso esta seja criada, é obrigatório que esses crimes sejam processados em tal juízo, à medida que criado um novo critério de competência material.

Dito isso, verifica-se, de plano, que a lei não esclarece o conceito de organização criminosa não armada, mas “com armas à disposição”, criando, como consequência, uma perigosa lacuna interpretativa.

Sendo assim, compreender o que significam “armas à disposição” poderá ter estreita correlação com a garantia do juiz natural, pois, caso se trate de organização criminosa “sem armas à disposição”, a vara colegiada, acaso instituída por leis de organização judiciária, não atrairá competência.

O artigo 1º-A, instituído pelo Pacote Anticrime, dispõe ainda diferentemente do que diz o artigo 1º, que as varas criminais colegiadas terão competência para todos os atos jurisdicionais no decorrer da investigação, da ação penal e, ainda, da execução penal relativa aos delitos, e não para atos específicos, até porque, aqui, não haverá convocação.

Assim, uma segunda questão que desde logo se levanta em relação à competência das varas especializadas para os atos que ocorrem durante toda a persecução criminal é a harmonização dessa previsão com o juiz de garantias, também introduzido pelo Pacote Anticrime.

É bem verdade que as regras sobre o juiz de garantias se encontram com eficácia suspensa, por decisão do ministro Luiz Fux, até o julgamento das ADINs 6298, 6299 e 6300, as quais analisarão a constitucionalidade dos dispositivos; entretanto, caso seja declarada a constitucionalidade do juiz de garantias é o que se espera , não se sabe como o instituto se aplicará à hipótese prevista no artigo 1º-A, tendo em vista a competência múltipla da vara, e a concomitante (e conflitante) exigência de que o juiz de garantias não seja o mesmo da instrução.

Trata-se de perigoso silêncio da lei, pois não parece lógico que uma regra geral de preservação da garantia orgânica da imparcialidade o juiz de garantias tenha sido relativizada, deliberadamente, quando se trata da apuração de delitos de organização criminosa e correlatos.

Uma alternativa ao alcance do Judiciário mas sempre com a prefalada ressalva aos tribunais de exceção estaria em que, nos atos relativos à investigação, em que radica a competência do juiz de garantias, fosse a este facultada a convocação de colegiado para as decisões em sede de investigação, assegurando-se, assim, a louvável imparcialidade preconizada pela recente reforma e, ao mesmo tempo, resguardando-se a integridade dos julgadores, ratio essendi da Lei nº 12.694/12.

Para tanto, parece impositivo, primeiro, realçar a preservação da competência do juiz de garantias inclusive no plano da Lei nº 12.694/12, acrescendo-se regras de convocação de magistrados por essa mesma autoridade judiciária, a fim de evitar casuísmos e conferir trânsito a tribunais de exceção.

Em suma, a Lei 12.694/12 passa a prever dois tipos de julgamento colegiado: o primeiro, disposto no artigo 1º, em que o juiz competente convoca dois outros magistrados para a realização de um ato específico, e que tem competência para qualquer delito de organização criminosa e quaisquer delitos conexos; e o segundo, previsto no artigo 1º-A, em que varas especializadas julgarão exclusivamente os crimes de organização criminosa armada ou “com armas à disposição” e de milícia privada, além dos delitos que lhes forem conexos.

Importa destacar ainda que, assim como se dá no caso de convocação de colegiado pelo magistrado competente (hipótese do artigo 1º), a nova lei faculta, não obriga, a criação de varas especializadas pelos tribunais (hipótese do artigo 1º-A). Poderá haver discrepância entre os Estados da federação no tratamento dos crimes aqui abordados.

Por outra medida, ainda que se entenda que a nova lei trouxe melhorias no sentido de se criar uma vara colegiada especializada para o processamento dos crimes que prevê, o legislador não foi capaz de corrigir as críticas ao artigo 1º, em especial no que diz respeito à violação do principio do juiz natural.

Isso porque a convocação posterior de um colegiado abre inevitável espaço à objeção do tribunal de exceção, o que viola o princípio do juiz natural, que determina que todo acusado tem o direito de saber previamente qual órgão conduzirá seu processo, bem como quem é o juiz competente.

A controvérsia estaria superada se o legislador tivesse eliminado a convocação posterior de colegiado, fixando previamente, para todos os crimes que envolvessem organizações criminosas e os conexos, a competência das varas criminais colegiadas especializadas, sem surpresas no curso da instrução processual.

Dessa forma, estariam resguardados tanto o direito do acusado como a integridade dos magistrados que atuam nessas varas.

Vanessa Vitória Oliveira é advogada.

José Francisco Fischinger é advogado e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS.

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Júlia Mezzomo: O teletrabalho é fundamental na pandemia

O isolamento social é a única (quase) certeza que nós temos nestes tempos de absoluta indefinição, insegurança e oscilação trazidos pelo coronavírus. Até mesmo aqueles que vivenciaram na pele duas Guerras Mundiais, apartheid, ditadura militar, guerra fria, impeachment, inflação descontrolada, torres gêmeas caindo, economia mundial em crise, presidente preso… Até mesmo esses testemunham: vivenciar a pandemia no Brasil tem sido muito pior.

Não bastasse a crise emergencial de saúde pública, a mais alta cúpula do Estado parece fazer tudo ao seu alcance para não impedir a propagação do vírus. Por convicções injustificáveis, indo na contramão de todas as recomendações de autoridades internacionais, o governo federal prepara todos os seus servidores para retornarem ao trabalho presencial imediato.

O governo ignora o fato de que as funções exercidas pela expressiva maioria desses servidores podem ser perfeitamente desempenhadas à distância. Basta um computador e acesso à internet, hoje considerados itens básicos nos lares de, arrisco-me a dizer, todos os integrantes dessa classe média brasileira.

Se não há prejuízo ao trabalho, por que exigir o deslocamento dos 12 milhões de servidores públicos hoje em atividade no Brasil, que ficarão confinados em um ambiente servido pelo mesmo sistema de ar condicionado, separados por pequenas baias, utilizando os mesmos banheiros e compartilhando, por meio do mesmo ar que respiram, a possibilidade de transmissão de um vírus altamente letal?

E é importante lembrar que a transmissão não para nesses inúmeros brasileiros. Ela se propaga para os filhos, companheiros, pais e avós. Considerando-se uma família média de quatro pessoas, 50 milhões de brasileiros passariam a correr mais riscos e, por sua vez, a expor outro sem número de pessoas à mesma ameaça.

O retorno ao trabalho presencial sequer deveria ser considerado na atual fase da pandemia. A curva de contágio ainda não está achatada, momento em que os especialistas recomendam a retomada das atividades normais, de forma gradual. No Brasil, ela permanece em constante ascensão.

Em 19 de maio, ultrapassamos a marca de 1.000 mortos por dia. Já são mais de 470 mil casos confirmados, 28 mil mortes, isso sem mencionar os casos que não são registrados. Além da ineficácia do país em realizar testagens em massa, há diversos e fortes indícios de que haja subnotificação da quantidade real de casos existentes. O sistema de saúde não está preparado para receber tamanha quantidade de pacientes em um curto período de tempo, então, por ora, a melhor solução de contenção continua sendo o distanciamento.

É certo que a economia do país não pode ser congelada, que os serviços públicos devem continuar sendo prestados, que as necessidades básicas dos cidadãos devem ser atendidas. Mas há uma maneira muito simples de se compatibilizar todas essas necessidades com as recomendações sanitárias de isolamento social: estabelecer o teletrabalho como regra em todas as esferas, entes e estados da federação.

O teletrabalho não é apenas mais eficaz para o servidor, que não perde mais horas do seu dia em um congestionamento. Também é mais eficiente para o Estado, que diminui os custos de manutenção das repartições públicas, cortando gastos com energia, água, produtos de limpeza, etc.

O teletrabalho é, além disso, a medida que apresenta menor ingerência possível de risco à saúde e à integridade física dos servidores, direitos tutelados pelo nosso texto constitucional (artigos 6º, 7º, XXII, e 39, § 3º, da CF).

Então, por que o Estado insiste em lutar contra os seus próprios funcionários? E, pior, por que o Estado tem de lutar contra ele próprio?

Temos acompanhado o Ministério Público, a OAB, os partidos políticos e as entidades representativas do funcionalismo indo à Justiça requerer o teletrabalho como regra para todos os servidores, exceto quando as funções não possam ser exercidas à distância.

Ainda temos visto juízes praticamente legislando em prol da segurança da população durante a pandemia, como em decisão recente da Justiça Federal do Distrito Federal sobre a reabertura do comércio.

Nossas três esferas estatais Judiciário, Legislativo e Executivo estão respeitando ao pé da letra a “separação dos Poderes”, pois demonstram que sequer estão alinhadas quanto às medidas a serem adotadas para enfrentamento da pandemia.

Pense, agora, na lógica de uma empresa. Inúmeras experiências modernas demonstram que o sucesso da equipe advém da satisfação pessoal, do sentimento de união, da motivação por um propósito comum. Então, em um momento de crise, a melhor ferramenta é manter seus melhores e fiéis empregados unidos pela missão de resolver a situação.

E o Brasil, há de se reconhecer, é uma grande empresa, que emprega milhões de pessoas, no âmbito de suas três esferas de poder. Não há lógica alguma em exigir que os seus funcionários se exponham a riscos absolutamente desnecessários e facilmente evitáveis, quando há uma simples ferramenta que garante a segurança e o bem-estar psicológico desses cidadãos, atendendo às orientações internacionais de isolamento: o teletrabalho.

O mais sensato, e até estratégico, seria utilizar o mal comum para encontrar o bem comum. Estimular todo o funcionalismo a propor soluções, estudar novos fármacos e vacinas, construir novos leitos de UTI e criar mecanismos para reerguer a economia, em casa. Aquele velho bordão cabe perfeitamente aqui, “a união faz a força”. E enquanto estivermos divididos, o Estado contra o povo, e o povo contra ele mesmo, jamais sairemos vencedores dessa luta.

 é sócia do escritório Torreão Braz Advogados, graduada em Direito pela Universidade de Brasília e pós-graduanda em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.