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A humanidade não consegue respirar quando vidas negras não importam

Não será apenas o coronavírus com a sua síndrome de insuficiência respiratória. A humanidade não consegue respirar, na asfixia mecânica de George Floyd, sufocada por racismos históricos e por ódios doentios. O mundo enfermo assistiu a barbárie e o martírio.

Vidas negras importam (“black lives matter“); não são vidas menores ou vidas inúteis, malgrado os infortúnios da indiferença social, desprezos, preconceitos ou falta de oportunidades. São famílias que precisam existir dignamente sob a confiança de uma sociedade mais justa. A melhor explicação sempre esteve na lapidar frase do poeta russo Evgeny Evtuchenko (1932-2017): “A humanidade é dividida entre homens bons e homens maus” [1]. Somente essa divisão deve separar o mundo e a primeira porção terá de ser muito predominante.

O episódio de Mineápolis, no Minnesota, norte dos Estados Unidos, em 25.05.20, revela essa terrível verdade de problemas sociais sistêmicos. Ele serve de lição e de advertência, um chamado de consciência de nossas precárias percepções de compromisso social com as diferenças. Um chefe de família afro-americano, de 46 anos, morreu por conta da “desigualdade estrutural” de sua cor.

Seu maior “crime”, por certo, foi o de ser negro, quando o uso desmedido de força policial para tê-lo sob controle — algemado, já não opunha resistência alguma — o levou inevitavelmente à morte. Ele disse continuadamente: “Não consigo respirar”, sufocado pela pressão constante do joelho do policial branco sobre seu pescoço; repetindo durante 8m46s. o mesmo apelo de Eric Garner, outro negro que morreu ao ser preso em Nova York (2014), pedindo também para não morrer.

O vídeo de cerca de dez minutos não precisa de legendas. É o documento de uma humanidade em crise, que não consegue respirar, sufocada diante do mal banalizado. Ele não gritou em sua morte, mas ela constitui agora um grito de paz para uma mudança cultural impostergável. Uma cultura ácida e discriminatória contra os negros está na contramão do processo civilizatório. Por isso o crime, por suas causas e efeitos, tem de ser combatido a partir da própria lei, com penas severas e sanções civis dissuasórias [2].

A insensibilidade moral no uso da força policial torna-se, outrossim, mais um problema de direitos humanos, para além das atitudes racistas. Movimentos sociais como o “Black lives matter” e o “SayHerName” denunciam a brutalidade policial que vitimiza pessoas inocentes e defendem limites e controle das intervenções policiais.

Essa falta de limites do controle policial é tamanha que governos estaduais nos EUA realizam seguros de responsabilidade civil para as eventuais ocorrências lesivas. O “Police professional liability insurance” (Seguro de Responsabilidade Profissional da Polícia) — oferece cobertura de responsabilidade para policiais e departamentos de polícia, em conjunto com atos, erros e omissões no desempenho de suas funções profissionais. As políticas públicas cobrem riscos como detenções falsas e violações de direitos civis.

No plano nacional, a decisão do ministro Edson Fachin (STF), de sexta-feira passada (5/6), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, impondo restrições, durante a pandemia, às operações policiais em comunidades pobres (que colocam em risco as populações vulneráveis), apresenta-se paradigmática e delas subtrai a aparente chancela prévia de indenidade. Em 22 de maio passado, o menor negro João Pedro Mattos Pinto, morreu dentro de casa, durante operação policial, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ).

O ministro Edson Fachin enfatizou, na liminar: “(…) nada justifica que uma criança de 14 anos seja alvejada mais de 70 vezes. O fato é indicativo, por si só, que mantido o atual quadro normativo, nada será feito para diminuir a letalidade policial, um estado de coisas que em nada respeita Constituição.” Determinou, então, que referidas operações sejam somente realizadas “em hipóteses absolutamente excepcionais”, com justificativas escritas e comunicações ao Ministério Público [3].

Certo é que o abuso da força policial, com suas responsabilizações cíveis e penais, está a exigir um tratamento normativo circunstanciado, em sua tipologia, com uma dogmatização apropriada. A mencionada decisão é um necessário e eloquente começo.

Pois bem. A morte de George Floyd que abalou o mundo, a de João Pedro e as muitas outras vidas interrompidas, conduz-nos, em seus fortes simbolismos, à questão social das famílias negras, como um elemento de permanente interesse jurídico e o Direito de Família(s) lhes deve reservar análises urgentes, em vanguarda de tratamentos protetivos.

Vejamos, a conferir:

(i) Desigualdade de rendas — Torna-se induvidoso que “a principal fonte de evidência sobre desigualdade de renda é a pesquisa das famílias” [4]. Em nosso país, a questão imediata situa-se em desigualdades evidenciadas no mercado de trabalho. As discrepâncias salariais afetam as famílias negras, onde um trabalhador recebe em média, 46% menos que um branco, em mesma função, não obstante tenham ambos a mesma formação técnica e estejam em uma mesma determinada classe social [5]. A propósito, em 2018, os negros já eram a maior parte da força de trabalho no Brasil — 54,9% [6].

Noutro giro, observa-se que as ocupações laborais exercidas não são igualitárias, envolvendo-se as famílias negras em atividades profissionais menos rentáveis ou mais desfavorecidas. A consequência da desigualdade de rendas impõe um menor poder aquisitivo, obrigando-lhes remetidas às comunidades periféricas, com habitações precárias e sem as infraestruturas básicas. Diante dos salários tipicamente desqualificados, a economia de desigualdade, torna-se mais contundente.

Quando o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-IBRE) divulgou (em 20/5) que a crise da atual pandemia da Covid-19 já afeta o trabalho de 53,5% das famílias brasileiras, retenha-se, de logo, que as famílias mais afetadas foram as de menor renda e que nesse contingente estão a maioria das famílias negras.

Em tais circunstâncias, impende lembrar Anthony B. Atkison, em sua obra Inequality: What can be done?, quando afirma: “a desigualdade de renda em dinheiro é menos preocupante onde o Estado fornece serviços como educação e assistência à saúde gratuitas para todos e onde a moradia e o transporte são subsidiados”.

De fato. Para reduzir, substancialmente, a extensão da desigualdade, ele expõe quinze propostas de medidas, como as de renovações da seguridade social e, v.g., a de um “benefício de proteção social infantil”, para crianças de famílias de baixa renda, com a introdução de um capital mensal, em regime de poupança.

(ii) A ordem jurídica — Há um importante viés jurídico-histórico que remonta, no país, ao antigo processo abolicionista, em formação da liberdade das famílias negras que não lograram uma inclusão social imediata.

Na origem, a “Lei do Ventre Livre” ou “Lei Rio Branco” (Lei nº 2.040, de 28.09.1871), declarando livres os filhos de mulher escrava nascidos no Brasil, a partir da data da aprovação da lei, pode representar o marco histórico libertador das famílias afrodescendentes no país, durante o Império, com a alforria de gênese. Depois lhe seguiu a “Lei dos Sexagenários” (Lei nº 3.270, de 28.09.1885 – “Lei Saraiva-Cotegipe”), precursora das atuais leis de proteção ao idoso.

No presente, a Lei nº 12.288/10, de 20/7/2010, instituiu o Estatuto da Igualdade Racial [7], “destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” (art. 1º). Segue-se o Decreto nº 8,136, de 5/11/2013, regulamentando o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) com a participação da sociedade civil [8].

Com o Estatuto, começou em nosso país uma política pública de ações afirmativas, tal como sucedeu, no Estados Unidos, por meio do “Civil Rights Act“, de 1964, com fórmulas de garantia de igualdade formal em direitos civis a confirmar, na prática, o princípio de igualdade da 14ª Emenda de 1868. Mais precisamente, uma cláusula de igual proteção pela igualdade.

No entanto, cumpre em direito de família observar as famílias negras, configuradas como novos sujeitos de direitos, a partir de sua natureza de entidade, onde a promoção da diversidade constitua efetivamente uma democracia racial. Ou seja, a não depender necessariamente de políticas afirmativas pontuais, há de obter-se a permanência natural da identidade racial como algo mais democrático possível. Na aproximação dos dez anos do Estatuto, o tema suscita sua maior atualidade e novas incursões normativas igualitárias para uma nova ordem jurídica dignificante.

(iii) Famílias majoritárias — Mais da metade da população brasileira é formada por famílias negras, conforme dados e critérios do IBGE, em percentual de 56,10%. Dos atuais 209,2 milhões de habitantes do país, 19,2 milhões brasileiros se assumem como pretos, enquanto 89,7 milhões se reconhecem pardos, servindo o somatório para indicar a maioria populacional, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE.

Esse contingente predominante deve ser observado com políticas públicas de inserção social em todos os níveis de diálogo com a sociedade aberta e plural.

(iii) Vitimização negra — A vitimização das famílias negras registra dados impressionantes. Demonstrou-se em uma década (2007-2017), a maior potencialidade de morte para negros do que para não negros. Enquanto isso, a taxa de homicídios de pessoas negras elevou-se em 31,1% no mesmo período.

Dados do Atlas da Violência (2019), apontam que 75,5% das pessoas assassinadas no país, em 2017, eram pretas ou pardas, implicando o quantitativo de 49.524 vítimas. Ou seja, a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, enquanto a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Assim, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos. Noutra perspectiva, objetivamente tem-se que “a chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é de 2,7 vezes maior do que a um jovem branco”.

Lado outro, o atual contexto da pandemia da Covid-19 também tem revelado as desigualdades estruturais com as famílias negras, quando o nosso tempo de epidemia, tem vitimizado as populações mais vulneráveis. Induvidosamente a desigualdade social tem sido um fator a mais de exposição ao vírus, com maior número de contágios e de letalidade.

Os impactos do coronacrise têm mobilizado medidas antevendo a realidade futura, tornando-se imperativo um plano de ação a minimizar as sérias consequências sociais advenientes.

O governo espanhol, na sexta passada (29/5), aprovou a criação de uma “renda social mínima” para as famílias, com as seguintes destinações:

a) “família single” (adultos que morem sozinhos): 462 euros (U$515) o equivalente a R$2.700,00;

b) Núcleos familiares: ao valor da renda mínima de uma pessoa sózinha, serão acrescidos 139 euros (U$155), por mês, para cada pessoa adicional da família (adulto ou criança), até o máximo de 1.015 euros (U$ 1.130), por família.

Essa política social da Espanha vem permitir que essa nova renda mínima compatibilizada com as demais rendas, apresente a solução adequada aos trabalhos mal remunerados, assegurando uma renda média anual garantida de 10.070 euros (U$ 11.220), e beneficiando 850 mil famílias. Alcança cerca de 2,3 milhões de pessoas, onde 30% das quais são menores.

Cuide-se pensar em soluções assemelhadas, designadamente com medidas de longo alcance (não emergenciais), a exemplo das famílias endividadas, que formarão, na pós-pandemia, um dos problemas sociais mais agudos.

(iv) Reformas estruturais Os avanços dos direitos civis não podem ser restritos apenas a um ordenamento jurídico programático. As reformas estruturais para a proteção das famílias negras demandam o implemento efetivo e pleno do princípio da paridade, nos âmbitos do trabalho privado, segurança, saúde, educação e em todos os demais segmentos sociais. As evidências da pessoa não estão na pele, se acham no interior dela.

Pode-se pensar, daí, que outro tipo de escravidão social continua, silenciosa, quase invisível, iludindo uma alegada ausência de preconceito, quando as famílias negras são inexoravelmente conduzidas a uma outra classe social e econômica.

Esses fatos já não se acham ou podem ser mais calados. Há uma travessia a ser feita, em cidadania responsável de toda a sociedade.

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos. [9]

Como, de fato, somos um único povo em suas mais ricas diversidades, nessa travessia (não apenas interior), cumpre-nos construir uma mesma nação, a partir da construção da autonomia social e econômica das famílias negras. O impacto coletivo de muitas mortes étnicas sobre as nossas humanidades leva-nos a esse inadiável encontro.

A tanto, tenha-se presente a conclamação do jurista português Antônio Menezes Cordeiro [10]:

o direito não poderá ser mais condescendente com a maldade gratuita.


[1] Autor de “Uma Autobiografia Precoce”, esteve no Recife, declamando seus poemas na icônica livraria “Livro 7”, da rua Sete de Setembro, do livreiro Tarcísio Pereira.

[2] Na legislação norte-americana, diversos são os graus delitivos de um mesmo crime, importando a criminalização acertada para a devida aplicação da pena; anotando-se, no caso George Floyd, que os protestos sociais exigiram e obtiveram, a classificação cabível, do grau 1 para o 2.

[3] Web: https://www.conjur.com.br/dl/adpf-rio-fachin.pdf

[4] AMARO, Daniel. Desigualdade entre brancos e negros é evidenciada no mercado de trabalho Web: http://edicaodobrasil.com.br/2019/03/15/desigualdade-entre-brancos-e-negros-e-evidenciada-no-mercado-de-trabalho/

[5] ATKINSON, Anthony B. Desigualdade. O que pode ser feito? Trad. Elisa Câmara, São Paulo: LeYa, 2015, 432 p.; p. 73.

[6] IBGE. Desigualdades sociais por Cor ou Raça no Brasil. Web: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf

[7] Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm

[8] Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Decreto/D8136.htm

[9] ANDRADE, Fernando Teixeira (1946-2008). Poema; “A Concha”.

[10] MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e. Tratado de Direito Civil, vol. V. Coimbra: Almedina, 2017.

 é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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Por causa do coronavírus, juíza prorroga assembleia de condomínio

Medidas de Isolamento

Por causa do coronavírus, juíza da Paraíba prorroga mandato de síndico

Por causa das medidas de isolamento adotadas em todo o Brasil como forma de conter o avanço do novo coronavírus, promover assembleia geral para escolha de novo síndico é medida enviável. 

Por causa da epidemia, juíza prorrogou mandato de síndico
123RF

O entendimento é da juíza Gianne de Carvalho Teotonio Marinho, da 2ª Vara Cível da Capital do Poder Judiciário da Paraíba. A decisão, em caráter liminar, foi proferida nesta quarta-feira (3/6). 

“De fato, com a situação de calamidade pública, reconhecida através do Decreto Estadual 40.134/20, faz-se necessário a adoção de medidas para conter a disseminação do vírus, o que inclui evitar aglomeração de pessoas, distanciamento social, entre outros, o que prejudica a realização regular das assembleias de condomínios pelo meio presencial”, afirma a magistrada. 

Ainda segundo a decisão, “as obrigações do ente condominial não restaram suspensas durante a pandemia, sendo necessária a regular representação condominial para o cumprimento de pagamento de pessoal, realização de compras e outros deveres do condomínio”. 

A juíza frisa, no entanto, que nada impede que sejam promovidas assembleias virtuais. Assim, fixou o prazo de 15 de junho para que um novo síndico seja escolhido. A data de encerramento do mandato atual era 4 de abril. 

Clique aqui para ler a decisão

0830572-25.2020.8.15.2001

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Revista Consultor Jurídico, 7 de junho de 2020, 7h52

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Banco deve indenizar por gerente que extorquiu cliente

As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias. Com esse entendimento, baseado na Súmula 479 do Superior Tribunal de Justiça, a 7ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal manteve condenação do Banco do Brasil por danos causados por um gerente que extorquiu e enganou um funcionário.

Extorsão feita por gerente rendeu R$ 6 mil de indenização por danos morais 

Ao analisar os autos, a corte aplicou ainda o artigo 34 do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe “o fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos”.

No caso, um empresário foi procurado pelo gerente do banco para liberação de créditos pré-aprovados sob ameaça de que, se recusasse, teria bloqueadas todas as operações futuras para suas empresas. 

O gerente ainda exigiu a movimentação de quantias entre as contas de suas pessoas jurídicas e a entrega de dois cheques assinados em branco, que foram depois compensados no valor total do empréstimo tomado. O empresário foi ressarcido em pequena parte deste valor.

“Logo, inafastável a responsabilidade do réu pelos prejuízos causados por seu preposto, ainda mais porque, no caso, ficou provado que o autor contraiu os empréstimos e os quitou, conforme afirmado na exordial e admitido pelo réu em seu recurso”, concluiu desembargador Fábio Eduardo Marques, relator do caso.

O colegiado aumentou a indenização por danos morais para R$ 6 mil, mas reduziu a indenização por danos materiais para R$ 63 mil, baseado na diferença entre o empréstimo feito, o valor movimento, os juros pagos e o que a vítima teve restituída.

Processo 0701116-64.2019.8.07.0001

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Elvis Rosseti: Teoria da imprevisão não é panaceia jurídica

No atual momento de crise provocada por evento inédito e extraordinário como a pandemia da Covid-19, autoriza a lei civil a possibilidade de revisão dos contratos por força da chamada teoria da imprevisão. A teoria reconhece que um evento estranho e extraordinário ao negócio pode tornar uma relação tão onerosa para uma ou ambas partes que, para devolver o equilíbrio, só mesmo a sua revisão ou seu término.

Essa teoria, admitida no ordenamento jurídico, é que autoriza a revisão ou rescisão do contrato, conforme artigo 478 e seguintes do Código Civil. No entanto, não é cabível a todas as categorias de contrato como pode parecer, especialmente àquelas designadas no Código Civil como aleatórias, conforme disposto nos artigos 458 a 461. 

A palavra aleatória provém do latim alea, que significa sorte, perigo, azar, incerteza de fortuna. Desse modo, o contrato aleatório é aquele em que a prestação de uma ou de ambas as partes dependeriam de um risco futuro e incerto, não se podendo antecipar o seu montante.

Sendo o risco futuro e incerto objeto e natureza dessa modalidade de contrato, torna-se inaplicável a teoria da imprevisão, posto que não há previsibilidade a ser respeitada.

Como espécie de contratos aleatórios, temos, por exemplo, o contrato de seguro. Nessa modalidade, o evento danoso (sinistro) não é desejado pelo contratante e tampouco previsível. Só é vantajosa ao contratado (seguradora), conquanto o evento imprevisível (cobertura) não ocorra dentro do período de proteção, ou seja, a segurada lucro como risco alheio (daí a parcela paga pelo contratante ser denominada como “prêmio”).

Desta sorte, não faria nenhum sentido que a seguradora invocasse o fato extraordinário e imprevisível para deixar ressarcir o segurado. Afinal, ela recebeu um “prêmio” pelo risco assumido.

Outra modalidade de contrato aleatório é a dos contratos derivativos, próprios do mercado financeiro e de capitais. Chamam-se derivativos porque “derivam” a maior parte um ativo subjacente, taxa de referência ou índice, que poder ser físico (café, ouro etc.) ou financeiro (ações, taxas de juros etc.).

Os derivativos podem ser classificados em contratos a termo, contratos futuros, opções de compra e venda, operações de swaps, entre outros, cada qual com suas características. Em linhas gerais, visam a proteger o contratante acerca da instabilidade comum ao preço de cotação (ex: preço da ação, variação cambial, variação da saca de soja no mercado futuro etc.).

Por exemplo, temos o chamado hedge cambial, que seria uma forma de “seguro contra o risco de mercado, especificamente no que refere ao preço da moeda”. O hedge é a operação na qual se fixa antecipadamente o preço de uma mercadoria ou ativo financeiro de forma a neutralizar o impacto de mudanças no nível de preços.

Ora, veja-se que o contratante tem como vantagem a estabilização do preço da cotação, que está vinculada ao preço do contrato firmado em moeda estrangeira que vencerá em um momento futuro. Por outro lado, o contratado, assume o risco de obter lucro ou prejuízo, caso a cotação entabulada no hedge cambial seja maior ou menor quando ocorrer o pagamento do preço do contrato principal. 

Ora, sendo a flutuação cambial um risco assumido, a variação da cotação a patamares extremos não é uma escusa para aplicação da teoria da imprevisão. Inclusive, quanto ao tema em voga, os contratos derivativos, a jurisprudência é unânime quanto à inaplicabilidade da teoria da imprevisão. Nesse sentido, já se posicionou, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E BANCÁRIO. CONTRATOS DE DERIVATIVOS. SWAP CAMBIAL SEM ENTREGA FÍSICA. COBERTURA DE RISCOS (HEDGE). CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NÃO INCIDÊNCIA. CLÁUSULA LIMITATIVA DE RISCO. VALIDADE. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA. REVISÃO JUDICIAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nº 2 e 3/STJ). 2. Hipótese em que a parte autora, empresa fabricante de produtos de madeira para fins de exportação, busca a reparação de prejuízos que afirma ter sofrido na liquidação de contrato de swap cambial. Alegação de imprevisibilidade e inevitabilidade da crise mundial, da qual teria resultado a maxidesvalorização do real em relação ao dólar no segundo semestre de 2008. 3. Nos contratos de derivativos, é usual a liquidação com base apenas na diferença entre o valor do parâmetro de referência verificado na data da contratação e no vencimento, sem a anterior entrega física de numerário. 4. As normas protetivas do direito do consumidor não incidem nas relações jurídicas interempresariais envolvendo contratos de derivativos. 5. É válida a cláusula que prevê a rescisão antecipada do contrato de derivativo firmado com instituição financeira na eventualidade de ser alcançado limite previamente estabelecido de liquidação positiva para o cliente. 6. A exposição desigual das partes contratantes aos riscos do contrato não atenta contra o princípio da boa-fé, desde que haja, ao tempo da celebração da avença, plena conscientização dos riscos envolvidos na operação. 7. A aferição do dever de apresentar informações precisas e transparentes acerca dos riscos do negócio pode variar conforme a natureza da operação e a condição do operador, exigindo-se menor rigor se se fizerem presentes a notoriedade do risco e a reduzida vulnerabilidade do investidor. 8. Os contratos de derivativos são dotados de álea normal ilimitada, a afastar a aplicabilidade da teoria da imprevisão e impedir a sua revisão judicial por onerosidade excessiva. 9. Recurso especial não provido (RECURSO ESPECIAL Nº 1.689.225 – SP (2017/0120440-5.  Data de Julgamento: 21/5/2019)”.

Nesta mesma linha, com respeito a chamados a termo futuro:

“Civil. Recurso Especial. Ação revisional de contratos de compra e venda de safra futura de soja. Ocorrência de praga na lavoura, conhecida como ‘ferrugem asiática’. Onerosidade excessiva. Pedido formulado no sentido de se obter complementação do preço da saca de soja, de acordo com a cotação do produto em bolsa que se verificou no dia do vencimento dos contratos. Impossibilidade. Direito Agrário. Contrato de compra e venda de soja. Fechamento futuro do preço em data a ser escolhida pelo produtor rural. Ausência de abusividade. Emissão de Cédula de Produto Rural (CPR) em garantia da operação. Anulação do título, porquanto, o adiantamento do preço consubstanciaria requisito fundamental. Reforma da decisão. Reconhecimento da legalidade da CPR. Precedentes – Nos termos de precedentes do STJ,  a ocorrência de ‘ferrugem asiática’ não é fato extraordinário e imprevisível  conforme exigido pelo artigo 478 do CC/02. A Lei 8.929/94  não impõe, como requisito essencial para a emissão de uma Cédula do Produto Rural, o prévio pagamento pela aquisição dos produtos agrícolas nela representados. A emissão desse título pode se dar para financiamento da Safra, com o pagamento antecipado do preço, mas também pode ocorrer numa operação de ‘hedge’, no qual o agricultor, independente do recebimento do pagamento, pretende apenas se proteger contra os riscos de flutuação de preços no mercado futuro. Recurso Especial conhecido e provido. (STJ Resp: 858785 GO 2006/010 6587-4.  Relator Ministro Humberto Gomes de Barros. Data de Julgamento: 8/6/2010. T3 – Terceira Turma. Data de Publicação DJe. 3/8/2010)”.

Por isso, ainda que seja tentadora, a teoria da imprevisão não é uma panaceia jurídica. Afinal, a sua aplicabilidade não é ilimitada.

 é advogado no escritório Diamantino Advogados Associados, especializado em Contract Law: from trust to promise to contract pela Universidade de Harvard e pós-graduado em Direito Empresarial e Direito de Empresa pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

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Franco e Armelin: A Covid-19 e os contratos de infraestrutura

O mais pessimista dos homens jamais poderia imaginar o desenrolar dos acontecimentos no corrente ano, em que fomos surpreendidos com uma pandemia que se espalhou por todos os continentes em uma velocidade avassaladora, abalando a economia mundial e as relações humanas.

Ainda que inúmeras notícias com testes de vacinas surjam a todo momento, por mais que sejamos otimistas, é preciso reconhecer: o mundo não é mais o mesmo e não voltará a ser tão cedo. Os acontecimentos vivenciados transformaram e continuarão transformando profundamente as relações humanas, não só no âmbito privado, como também as desenvolvidas no âmbito negocial.

Entre essas relações, chamam especialmente a atenção os reflexos observados no âmbito dos contratos de serviços públicos, que, por se tratar de contratos de longa duração, estão mais sujeitos a interferências imprevisíveis. Estas, no entanto, não autorizam a interrupção da prestação do serviço delegado (artigo 6º, §1º, da Lei 8987/1995) mesmo diante das dificuldades impostas. As notícias confirmam que muitos desses serviços foram severamente afetados por determinações legais, administrativas ou judiciais voltadas ao combate da pandemia que alteraram a forma de execução do contrato.

A impossibilidade de abertura de estabelecimentos não essenciais e a instituição de home office na maioria das empresas, por exemplo, ocasionou enorme queda no número de passageiros no transporte público urbano. Na mesma linha, observou-se uma mudança no padrão de comportamento dos que utilizam o serviço público, como: I) a diminuição da demanda das atividades portuárias em razão da queda na importação e exportação de mercadorias; II) a redução do fluxo de veículos nas rodovias; e III) a queda do número de usuários do transporte aéreo (já estimada em 80%) — essas últimas decorrentes diretamente da política de isolamento instituída em âmbito nacional — impacta os contratos de arrendamento portuário e de concessão rodoviária e aeroportuária, respectivamente.

É certo que os efeitos dessa pandemia poderão resultar em descumprimento das mais diversas obrigações contratuais (como, por exemplo, alcance de metas, pagamento de outorgas, cumprimento de cronograma contratuais, inclusive de investimentos etc.), sujeitando o parceiro privado ao pagamento de multas e a imposições de outras sanções regulatórias. Poderá, ainda, resultar no desequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

É inegável que as dificuldades enfrentadas decorrem de um fato imprevisível e de consequências incalculáveis, que impedem a regular execução contratual nas condições anteriormente pactuadas, onerando excessivamente as duas pontas da relação contratual. Assim, no que toca aos descumprimentos contratuais, a pandemia, já classificada pela Advocacia Geral da União como caso fortuito ou força maior [1], dá azo à aplicação da excludente de responsabilidade prevista no artigo 393 do Código Civil, a afastar a penalização do concessionário.

Além disso, essa nova realidade que se impõe conduz os contratantes à busca de uma solução imediata, mediante a repactuação das condições contratuais. Essa repactuação seria uma espécie de customização do contrato de concessão para aquela nova realidade, em que se permitirá rediscutir metas, adiar prazos de obras previstas para ocorrer neste momento mas que precisaram ser paralisadas, ajustar condições de pagamento etc. Para adoção desta solução, poderá ocorrer, por exemplo:

I — A revisão do cronograma físico-financeiro do contrato de concessão, com a readequação de obras e investimentos, como autorizam o artigo 57, II, §1º, e o artigo 79, §5º, da Lei nº 8.666/93, aplicáveis às concessões de serviço público em decorrência do artigo 124 da mesma lei;

II — A suspensão temporária de determinadas obrigações contratuais; e

III — A revisão dos indicadores de desempenho.

É óbvio que não existe nenhuma receita de bolo que possa ser aplicável a todas as situações. A única certeza já existente é que a solução, para todos os casos, deve ser rápida e demandará uma postura consensual e mais flexível, tanto da Administração Pública, quanto dos particulares contratados, como forma de garantir a continuidade da prestação do serviço até que os contratos possam ser reequilibrados.

Especificamente sobre o reequilíbrio, solução mediata, vale esclarecer que cada contrato exigirá a análise mitigada da sua matriz de riscos e a demonstração das dificuldades enfrentadas por conta da pandemia e como sua ocorrência afetou a equação econômico-financeira, de forma direta ou indireta [2].

Oportuno ter em mente que, mesmo nas hipóteses em que o risco da ocorrência de caso fortuito ou força maior esteja alocado a uma das partes, essa previsão não deverá ter aplicabilidade para o evento pandemia, uma vez que se trata de caso fortuito ou força maior extraordinário, que não pode ser compreendido como disciplinado na matriz de risco original, pensada para condições normais, à época da contratação. Como dito, estamos vivenciando uma situação absolutamente inimaginável e extrema, a qual, justamente por esse motivo, impede aplicação da matriz de risco “automaticamente”, sem que se faça uma avaliação mais detalhista do caso concreto, sob pena de desvirtuar o próprio objetivo da alocação de riscos nos contratos.

Nesse sentido, o artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) auxilia ao trazer a possibilidade de celebração de ajustes que buscarão uma “solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais” (§1º, I), os quais, ao mesmo tempo em que não implicarão “desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito”, permitirão “prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento”.

Na mesma linha, o Projeto de Lei nº 2139/2020 propõe que ao contratado seja permitido “apresentar plano de contingência para assegurar a continuidade da execução contratual e a preservação do seu objeto essencial”, plano este que poderá conter “a revisão ou a suspensão temporária de obrigações, a postergação de investimentos, quando for o caso, ou a alteração da metodologia de execução contratual”, garantindo, caso aprovado, mais um fundamento normativo para as repactuações já autorizadas pela LINDB [3].

Portanto, é consenso que, seja pela aplicação da LINDB, seja pela aprovação do aludido projeto de lei, a adoção dessa solução exigirá uma resposta administrativa rápida e organizada, permitindo que as partes possam chegar a um acordo no menor tempo possível, que garanta a sobrevida da concessão até que se promova o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, impedindo a geração de passivos que ao final tornem a execução do contrato impossível.

Por parte do concessionário, faz-se importante documentar e colocar o poder público a par de cada uma das ocorrências e de quais obrigações contratuais não poderão ser cumpridas no prazo previamente estabelecido, informando, inclusive, quais medidas foram adotadas para tentar solucionar a questão. A abertura de canal de comunicação direto e claro com o ente contratante é imprescindível e deve ocorrer com a maior brevidade possível.

Dado que a pandemia se trata de um evento horizontal, atingindo tanto contratante quanto contratado, a onerosidade excessiva decorrente do evento atinge a ambos e, por esta razão, é importante transmutar a mentalidade combativa e abandonar a visão retrógrada de que a outra ponta da relação contratual é adversária aos interesses defendidos. As palavras de ordem neste momento devem ser colaboração e flexibilidade, tanto por parte dos concessionários quanto do poder público, para que juntos possam encontrar o melhor denominador para a continuidade da prestação do serviço.

É importante que ambas as partes compreendam que os impactos experimentados neste momento perdurarão por muito tempo. Nessa senda, a solução imediata deve garantir a adoção de medidas que deverão ser desenhadas em conjunto para permitir a retomada da prestação dos serviços em condições normais — dentro dos limites possíveis —, preservando-se os contratos até que se promova o seu reequilíbrio.

 

[1] PARECER n. 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU, aprovado em 16/4/2020, sobre a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão no setor de infraestrutura de transportes.

[2] Conforme prevê o parecer da AGU: “c) A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) pode ser classificada como evento de ‘força maior’ ou ‘caso fortuito’, caracterizando ‘álea extraordinária’ para fins de aplicação da teoria da imprevisão a justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes, com as ressalvas indicadas no parágrafo 73 deste parecer”.

[3] Esse mesmo projeto propõe a celebração de aditivos para prever a possibilidade de adoção de mecanismos alternativos para solução de conflitos, como a arbitragem e a mediação, previstos expressamente na Lei nº 9.307/96, soluções estas mais adequadas para a resolução de conflitos complexos

Heloísa M. Armelin é advogada no escritório Tojal Renault Advogados Associados, especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pós-graduanda em Direito Administrativo pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Danielle S. Franco é advogada no escritório Tojal Renault Advogados Associados e especialista
em Direito Constitucional, Administrativo e Contratual pela Escola Paulista de Direito (EPD-SP).

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Mercadante: A venda de veículo sem comunicação

São numerosas as demandas propostas em face de Estados envolvendo vendas de veículos sem comunicação ao órgão de trânsito. Nesses processos, em regra, duas situações se apresentam: numa, a parte autora sabe para quem vendeu o veículo; na outra, não se recorda.

Em ambas, a operação de venda não foi comunicada, permanecendo o veículo registrado em nome do alienante, a quem será imputada, por consequência, a responsabilidade pelo pagamento de tributos e das multas de trânsito.

Nos casos em que o adquirente é indicado no polo passivo da ação, o ente federado sustentará a sua ilegítima passiva o que encontra respaldo na jurisprudência do STJ (REsp 938.553/DF) , pois ao novo proprietário competirá providenciar junto ao órgão de trânsito a transferência do veículo.

O que interessa para este artigo é quando não há indicação de comprador pelo alienante.

Nessas demandas, o autor busca tutela que declare que ele não é mais proprietário do veículo, havendo também, em regra, pedidos para declaração da inexistência de sua responsabilidade pelo pagamento de tributos e das multas de trânsito desde a data de venda indicada na petição inicial.

A questão deve ser enfrentada nos seguintes termos:

Os entes federativos, em regra, não exercem qualquer ingerência sobre a decisão do particular de vender seus veículos, o que retrata observância ao direito à propriedade, inclusive na sua extensão de não ser proprietário.

Contudo, no exercício do seu poder de polícia, impõem determinadas restrições e condicionamentos para a prática dessa atividade em prol do interesse coletivo.

Busca-se com isso padronizar procedimentos e conferir segurança a todos os partícipes das operações de compra e venda de veículos, inclusive à própria pessoa política, que por decorrência legal foi alçada a titular das sanções de trânsito por ela aplicadas e por comando constitucional aos tributos devidos sob o manto de sua competência.

Porém, conforme dispõe a CF/88 em seu artigo 22, XI, a competência privativa para legislar sobre trânsito pertence à União, que foi exercida em especial com a edição do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97).

Constam do referido diploma, em seu artigo 21, as competências que serão desempenhadas pelos órgãos executivos de trânsito estaduais e distritais, no âmbito de suas circunscrições, dentre elas “cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito das suas respectivas atribuições”.

Entre os enunciados legais que devem ser observados pelos agentes administrativos, está o constante do artigo 134 do CTB:

“Artigo 134  No caso de transferência de propriedade, o proprietário antigo deverá encaminhar ao órgão executivo de trânsito do Estado dentro de um prazo de trinta dias, cópia autenticada do comprovante de transferência de propriedade, devidamente assinado e datado, sob pena de ter que se responsabilizar solidariamente pelas penalidades impostas e suas reincidências até a data da comunicação”.

Portanto, sem que ocorra referida comunicação, ou determinação judicial, não haverá alteração quanto à propriedade do veículo nos registros públicos, permanecendo o vendedor como titular do bem, pois não se submeteu ao procedimento específico a qual devem se submeter todos aqueles que vendem seus veículos.

A esta altura, é importante destacar que apesar de o Código Civil, em seu artigo 1.275, II, prever a perda da propriedade pela renúncia, defende-se aqui, e existem posições contrárias, que o CTB lei especial  não adotou esse instituto pelas particularidades que circundam o bem veículo, em especial, pelos efeitos da sua propriedade nas esferas civil, penal e tributária.

Isso porque o CTB, em seu artigo 120, exige que todo veículo seja registrado, não se podendo, em observância aos princípios da legalidade e da isonomia, conferir trato diverso para quem juridicamente não justifique esse discriminem.

Efetuado o registro do registro, será expedido, nos termos do artigo 121 do CTB, o Certificado de Registro de Veículo (CRV), apenas se admitindo a expedição de novo certificado nas hipóteses (artigo 123, CTB) de transferência de propriedade, mudança do município de domicílio/residência do proprietário, alteração de característica do veículo e mudança de categoria.

A leitura não apenas do diploma principal, mas também a dos demais normativos e aqui a presunção é segura , revela que não há previsão de renúncia, mas, sim, de registro com vínculo ao proprietário ou de baixa nas hipóteses legais.

Assim sendo, apesar de o Código Civil prever a figura da renúncia, esta não foi incorporada pelas legislações de trânsito como solução extrajudicial para ausência de registro.

Está-se diante de duas leis nacionais, face às suas abrangências federativas, podendo-se apontar, para afastar a possibilidade de renúncia, uma antinomia resolvida pelo critério hermenêutico da especialidade.

Anote-se a existência, no âmbito de alguns órgão de trânsito estaduais, da previsão de registro sem indicação de proprietário  não obviamente o primeiro  como providência administrativa criada para atender a determinações judiciais nas hipóteses em que a tradição do veículo é reconhecida por sentença, porém se desconhece o adquirente para inserir seu nome no sistema. Em Minas Gerais, por exemplo, o procedimento adotado pelo órgão de trânsito é denominado de “destituição de propriedade”.

Portanto, a resistência estatal imposta nessas demandas justifica-se pelo fato de o alienante não ter observado o procedimento legal de transferência, sendo que os atos a serem praticados pelos agentes públicos competentes para essas operações são regidos, no que se refere à liberdade de atuação, pela vinculação, pois os atos normativos regentes do tema não lhe conferiram margem para atuação pautada em oportunidade ou conveniência.

No que se refere à responsabilidade pelo pagamento de tributos e de multas de trânsito, uma interpretação equivocada do enunciado da súmula do STJ nº 585 tem amparado pedidos judiciais de declaração de ausência de responsabilidade do alienante:

A responsabilidade solidária do ex-proprietário, prevista no artigo 134 do Código de Trânsito Brasileiro, não abrange o IPVA incidente sobre o veículo automotor no que se refere ao período posterior à sua alienação.

Quanto às multas de trânsito, o dispositivo legal é expresso ao preceituar que o antigo proprietário será responsável solidário pelas penalidades impostas se não proceder à comunicação de venda no prazo legal.

Portanto, por aplicação da norma extraída do artigo 134 do CTB, não procede a tese de ausência de responsabilidade do alienante pelas sanções administrativas.

Está-se diante de uma construção argumentativa em que premissa e conclusão estão muito próximas, além de ser simples a dedução indicada.

Quanto à responsabilidade tributária, a solução também reside na legislação, porém não da forma direta como na responsabilidade por multas de trânsito, mas se exigindo trilhar por mais de um caminho, inclusive jurisprudência e hermenêutica.

O primeiro ponto a ser fixado com a ajuda do critério hermenêutico literal é o de que o artigo 134 do CTB não trata de responsabilidade tributária.

Uma das técnicas de redação legislativa diz respeito à obtenção de precisão, indicando a LC 95/98, para tanto, em seu artigo 11, II, que se deve articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma”.

Relativamente ao artigo 134 do CTB, o legislador desincumbiu-se dessa tarefa, pois a redação é clara, sendo a única conclusão a de que a responsabilização solidária prevista naquele dispositivo diz respeito à obrigação pelo pagamento de penalidades administrativas.

Assim sendo, partindo-se da expressão “penalidade”, muda-se o foco para o Código Tributário Nacional, invocando-se nesse momento o critério de interpretação sistemático para a leitura do conceito de tributo, expresso no artigo 3º:

Artigo 3º — Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

Considerando-se que tributo não é penalidade e que o artigo 134 do CTB trata expressamente de penalidades para fins de responsabilização solidária, a adoção de silogismo leva à conclusão de que referido dispositivo legal não aborda tributos.

Essa conclusão foi retratada no enunciado da súmula 585 do STJ, já reproduzido neste artigo, que vem sendo objeto de interpretações equivocadas.

Diante de seu texto, houve quem sustentasse que o alienante de veículo não seria responsável tributário pelo IPVA não recolhido em período posterior à alienação não comunicada aos órgãos de trânsito.

Definitivamente não é o que está escrito na referida súmula.

Pode-se ir além da interpretação literal e convocar o critério hermenêutico sistemático para se chegar à conclusão adotada pelo STJ ao pacificar o tema, decidindo que diante da falta de comunicação da transferência do veículo pelo alienante ao órgão de trânsito, será solidária a sua responsabilidade tributária pelo pagamento do IPVA, desde que haja previsão em lei estadual (REsp nº 1.775.668).

A referência ao critério sistemático justifica-se pelo fato de a norma extraída do artigo 124 do Código Tributário Nacional auxiliar na solução dessa questão:

Artigo 124  São solidariamente obrigadas:

I as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;

II as pessoas expressamente designadas por lei.

Inclusive, no julgamento do REsp 1640978/SP, o STJ fez referência expressa a esse dispositivo:

 (…) Nos termos do artigo 124 do CTN, somente por lei específica pode ser instituída a solidariedade quanto à responsabilidade pelo pagamento de tributos, de modo que a atribuição da responsabilidade solidária, por débitos de IPVA, ao ex-proprietário do veículo é condicionada à previsão da lei estadual” (1ª T., j. 06/04/17).

Em outros recentes julgados um da 1ª Turma e outro da 2ª , com partes das ementas abaixo reproduzidas, o STJ demonstra estar pacificada na Casa a matéria:

(…) A recente jurisprudência do STJ é de que, na falta de comunicação ao órgão de trânsito da transferência de veículo automotor pelo alienante, será solidária a sua responsabilidade tributária pelo pagamento do IPVA, desde que haja previsão em lei estadual (AgInt no AgRg no AREsp 791.680/SP, 1ª T., j. 9/3/20)

(…) A recente jurisprudência do STJ é de que, “na falta de comunicação ao órgão de trânsito da transferência de veículo automotor pelo alienante, será solidária a sua responsabilidade tributária pelo pagamento do IPVA, desde que haja previsão em lei estadual” (AgInt no REsp 1777596/SP, 2ª T., j. 5/12/19)”.

No Estado de Minas Gerais, por exemplo, a jurisprudência do Tribunal de Justiça é no mesmo sentido:

“I Em face do revogado artigo 13 da LE n.º 12.735/1997 e do vigente artigo 13 da LE n.º 14.937/2003, tem-se que a legislação mineira, com lastro no artigo 155, III, da CF/88 (redação dada pela EC n.º 3/1993), estabelece, ao menos desde 1997, ser o anterior proprietário do veículo solidariamente responsável pelo pagamento do IPVA até o momento em que comunicada de forma inequívoca a transferência de sua propriedade ou venda ao órgão de trânsito estadual (DETRAN/MG), o que reforçado com o advento da LE n.º 19.988/2011, que introduziu o inciso IV ao artigo 5º da LE n.º 14.937/2003″ (…) (AC 1.0000.19.157486-2/001, 7ª CC, j. 03/03/20).

 Portanto, para concluir o raciocínio desenvolvido, resta reproduzir, em que pese já referida no julgado acima, a legislação mineira Lei 14.937/03 , que viabiliza a incidência da jurisprudência do STJ nas demandas envolvendo o Estado de Minas Gerais, servindo de referência para análise que envolva outros Estados:

Artigo 5º — Respondem solidariamente com o proprietário pelo pagamento do IPVA e dos acréscimos legais devidos:

(…)

IV o alienante que não comunicar ao órgão de registro a venda do veículo, em relação aos fatos geradores ocorridos entre o momento da alienação e o momento do conhecimento da alienação pela autoridade responsável”.

Com a reprodução desse texto normativo, forma-se um cenário no qual o alienante informa no processo judicial ter vendido um veículo sem proceder à comunicação, enquadrando-se no artigo 134 do CTB e, por consequência, no enunciado da súmula do STJ nº 585, atraindo assim a aplicação da jurisprudência do STJ caso se concretize a seguinte condicionante: existência de lei regional prevendo a solidariedade tributária.

Por fim, não se deve ignorar que há previsão expressa de multa para o alienante que deixa de comunicar no prazo legal a venda de veículo (artigo 233, CTB).

Por isso, no processo judicial, é preciso fixar o termo inicial para a contagem do prazo decadencial para aplicação da sanção de polícia, que não pode ser o indicado pelo alienante como o da venda, pois não houve a adoção do procedimento administrativo de transferência, conforme regulamentado pelos órgãos normativos de trânsito, não permitindo à autoridade administrativa proceder ao controle de legalidade do negócio praticado.

Com a inauguração da demanda judicial, aquele procedimento é saltado, além de descaracterizado, pois as obrigações exigidas não são transportadas para essa fase, como, por exemplo, indicação e assinatura do adquirente.

Nessa linha, defende-se e em pesquisa preliminar não se identificou tese semelhante , que se deve considerar como data de comunicação inequívoca de venda, para fixação exclusivamente do termo inicial de decadência, a da intimação do ente público acerca da última decisão de mérito proferida no processo, favorável ao alienante, pois será o ato que trará segurança jurídica de que houve a tradição, ainda que seja o adquirente desconhecido.

No momento em que a pessoa política toma conhecimento com a certeza que o ato exige — de que o alienante deixou de comunicar no prazo legal uma operação de transferência de veículo, deverá a autoridade de trânsito dar início às medidas sancionatórias (artigo 233, CTB). Antes disso, atuará com base em presunção.

Diferentemente será considerar a data da citação, em caso de procedência da demanda, como data-limite da responsabilidade solidária do alienante.

Essa servirá como termo para limitar a obrigação pecuniária. Já a data da intimação da última decisão servirá como termo para início do prazo decadencial para aplicação da sanção de polícia.

Após todas essas considerações, chega-se ao final deste artigo indicando como conclusões, já antecipadas ao longo do texto, que o alienante que não comunica a venda de veículo no prazo legal é responsável solidário tanto pelo pagamento das multas de trânsito como pelos tributos devidos até a data de citação do ente público.