Categorias
Notícias

MPF quer saber motivo de exclusão de dados da Covid-19

O Ministério Público Federal vai apurar os motivos que levaram o Ministério da Saúde a excluir do painel de informações da Covid-19 o número acumulado de mortes decorrentes da doença. A alteração dos dados divulgados diariamente pela pasta foi oficializada neste sábado (6/5), após o sistema ficar fora do ar por quase 20 horas.

 Painel sobre covid-19 ficou fora do ar por quase 20 horas
Geraldo Magela/Agência Senado

O  procedimento extrajudicial foi instaurado pela Câmara de Direitos Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral do Ministério Público Federal, que também oficiou o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, para que forneça informações detalhadas sobre o tema, no prazo de 72 horas.

Dentre as informações e documentos solicitados à pasta estão: a cópia do ato administrativo que determinou a retirada do número acumulado de mortes do painel e o inteiro teor do procedimento administrativo que resultou na adoção desse ato.

O ministro também deverá esclarecer se houve e — em caso positivo —, quais foram outras modificações e supressões de dados públicos relativos à epidemia, especificando os fundamentos técnicos que embasaram essa decisão.

O MPF também pediu esclarecimentos sobre a urgência que determinou a alteração e eventuais outras modificações que tenham implicado restrição à publicidade de dados.

“Na hipótese de ser verdadeira a informação de que há pretensão do Governo Federal de rever quaisquer dados já divulgados, atinentes à pandemia, informar qual é a razão pela qual essa eventual correção não poderia ser efetuada, independentemente da supressão prévia de informações”, detalha um dos trechos do documento. Nesse caso, conforme o despacho, a resposta do ministro deve incluir a cópia dos documentos que fundamentam, do ponto de vista técnico, a necessidade de tal revisão.

Medida autoritária

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, usou as redes sociais para criticar o apagão dos dados, no que caracterizou, segundo ele, uma manobra típica de regime autoritário.

“A manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários. Tenta-se ocultar os números da #COVID19 para reduzir o controle social das políticas de saúde. O truque não vai isentar a responsabilidade pelo eventual genocídio. #CensuraNao #DitaduraNuncaMais”, twittou. Com informações da Assessoria do MPF.

Clique aqui para ler a portaria

Categorias
Notícias

Pierre Moreau: Dez ensinamentos para um jovem advogado

Os estudantes de Direito devem se preparar para enfrentar um mercado profissional cada vez mais competitivo, automatizado, globalizado e abalado por crises econômicas e sanitárias como a da Covid-19. Tive a oportunidade de compartilhar as experiências da minha trajetória — de advogado, professor e árbitro — em um almoço com jovens advogados antes da pandemia.  Confesso que minha primeira reação ao convite foi de um leve desconforto. Afinal, sabendo do difícil trajeto que os jovens lá presentes teriam a desbravar, não queria iludi-los ou decepcioná-los.

Como advogado no dia a dia e empresário nas minhas horas vagas, ressalto que jovens profissionais transitam bem na área do Direito Empresarial, sobretudo pelas ideias inovadoras e pela energia empregada no seu cotidiano de trabalho.

No ancien régime, do qual faço parte, o advogado era consultado quando um problema já estava em curso e alguma medida legal precisava ser tomada. Nos dias atuais, jovens advogados atuam exponencialmente de forma preventiva, já que os empresários têm entendido que vale mais estruturar seus negócios também na esfera jurídica, para que problemas futuros sejam evitados.

Nesse sentido, é exigido do advogado, mesmo que tenha recém-ingressado em sua carreira jurídica, uma antecipação de condutas e a capacidade de adotar uma postura ostensiva para orientar seus clientes além das consequências jurídicas tradicionais de uma operação. Esse novo e desafiador universo jurídico exige que o jovem advogado busque integrar ao seu conhecimento alguma expertise de áreas correlatas.

Nas entrevistas do livro “Grandes Advogados”, das quais tive a honra de participar, há uma ideia clara de que o sucesso profissional no Direito é um processo complexo, que resulta de fatores muito distintos. Além de existir dedicação aos estudos, rapidez na atualização, habilidade na arte da palavra e do conhecimento, empenho na competição profissional ou o acaso de estar na hora e no local certo, há também um componente comum em todos os casos: a paixão pela ciência do Direito.

Sob uma ótica positiva, a paixão impulsiona o estudante e o profissional na busca do crescimento pessoal. É essencial mesmo, a nutrição desta paixão desde a faculdade. Seu entusiasmo irradia-se e gera reflexos que ele, geralmente jovem e pouco experiente, nem tem condições de avaliar. Uma vez formado o profissional, a paixão alavancará sua carreira.

Naturalmente, surge a grande questão na cabeça dos jovens advogados acerca de como se inserir nesse mercado e de que forma agir para ganhar espaço e reconhecimento pelo trabalho e esforço despendidos.

Em síntese, destaco dez pontos que julgo serem os mais relevantes para revisão frequente de jovens advogados, a saber: 

1) Dedicação à educação continuada: buscar uma área de expansão com foco na sua área de atuação, com objetivo não só de aprender, mas também de se preparar para desafios imprevisíveis que possam surgir no caminho. Deve-se entender a necessidade de capacitação como um processo contínuo. Sem dúvida, a especialização é um fator de destaque num cenário cada vez mais competitivo;

2) Cercar-se de bons líderes: o primeiro passo para o sucesso no mercado de trabalho, especialmente no mundo corporativo, é cercar-se de bons líderes. A escolha de um mentor capaz de desenvolver suas habilidades e lhe instruir dentro da área que o jovem advogado tem mais afeição é deveras importante. Vale lembrar que os líderes de hoje já foram mentorados pelos líderes de ontem.

3) Networking: estar inserido em hubs e nos lugares certos. Estabelecer novas conexões e amizades que irão expandir suas relações, de modo que, de uma boa conversa, além de um bom aprendizado, possa surgir uma grande oportunidade no mercado de trabalho;

4) Boa comunicação: ao lidar com clientes, boa parte do trabalho de um advogado é aconselhar e negociar.  Por isso, a comunicação clara e objetiva é indispensável, devendo ser sempre enriquecida através de boas leituras e conversas com pessoas qualificadas. Um bom comunicador sempre atrai a confiança das pessoas que o rodeiam;

5) Gestão de tempo: A gestão do tempo é um dos grandes desafios para advocacia, como em outras áreas. Elaborar uma atenta e criteriosa lista de tarefas e compromissos de acordo com a importância e urgência de cada um. Devendo-se evitar ao máximo a procrastinação, mas sempre atento que cada coisa tem seu tempo e hora para ser realizada;

6) Disciplina financeira: planeje seus gastos de acordo com o que você ganha. Poucas pessoas economizam mais do que gastam. Entender melhor sobre como poupar, investir e ter sucesso irá gerar um impacto positivo na sua autoestima. No livro “Fora da Curva”, que tive o prazer de organizar junto a profissionais renomados, contamos histórias de alguns investidores brasileiros em que se pode aprender através de relatos pessoais e honestos surpreendentes como construir trajetórias sólidas e de sucesso;

7) Planejar suas ações: planejar é conhecer o próximo passo e estar ciente dos riscos envolvidos no trajeto. Um bom advogado estuda e mede as consequências de cada novo passo, a fim de minimizar eventuais riscos e aumentar a chance de êxito na tomada de decisões;

8) Esperar o momento certo: o imediatismo é uma questão da geração atual, como uma promoção, um aumento de salário e cargos de liderança. A tendência é querer pular etapas. Chegar ao final sem passar por todo o processo: o começo, os desafios, os obstáculos. Costumo dizer que a vida é uma maratona, não uma corrida de cem metros rasos. É preciso ter calma e resiliência para atingir seus objetivos, viver as experiências, fechar os ciclos e, assim, com elas aprender;

9) Flexibilidade e adequação: estar sempre atento às novas áreas do Direito. Perceber as oportunidades que surgem e ter flexibilidade de se ajustar em uma determinada direção. Adequar sua formação e seu conhecimento profissional para onde as oportunidades estão surgindo. Conforme a metáfora de velejador, “posicionar seu barco para o lado que o vento está soprando”;

10) Gestão de imagem:  Conquistar a confiança dos potenciais clientes, esta despertada em razão da expectativa de competência jurídica, compromisso e disponibilidade de contato com o advogado. Construa uma rotina de hábitos que associem sua imagem a estas características, seja por seu comportamento, postura, pelo contato frequente com clientes, seu escritório.

As dez diretrizes sugeridas acima devem ser entendidas como conceitos básicos a serem aplicados por todos os jovens advogados no exercício de sua atividade profissional. Oportunidade em que os tópicos supracitados podem ser de grande valia, desde que aplicados com parcimônia e de maneira correta. Em um mercado cada vez mais competitivo, quanto maior for o diferencial do jovem advogado, maior sua chance de êxito no início da caminhada

É claro que o papel individual de um jovem advogado não é algo evidente no início de sua carreira profissional. No entanto, a perseverança de garantir diariamente uma atuação integra será sempre bem reconhecida e é nela que se encontra a felicidade.

 é advogado, árbitro, professor do Insper e professor visitante na St.Gallen University, na Suíça.

Categorias
Notícias

Pedido de refúgio de estrangeiro não suspende processo de extradição

O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados, celebrada em 1951, conhecida como Convenção de Genebra de 1951, e, subsequentemente, editou a Lei nº 9.474, de 1997, que trata da matéria, que permite aos imigrantes que procuram abrigo em nosso país a possibilidade de formular solicitação de reconhecimento da condição de refugiado.

Para tanto, nos termos do art. 1º, o pedido deve ser feito em razão de fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país, inclusive por ele encontrar-se em situação de grave e generalizada violação de direitos humanos.

A extradição, que nada tem a ver com o refúgio, pode ser definida como uma “medida de cooperação internacional entre o Estado brasileiro e outro Estado pela qual se concede ou solicita a entrega de pessoa sobre quem recaia condenação criminal definitiva ou para fins de instrução de processo penal em curso” e está prevista nos artigos 81 e seguintes da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. A extradição é analisada e decidida pelo Supremo Tribunal Federal, conforme art.102, I, alínea “g”, da Constituição Federal.

Na Lei de Refúgio, o legislador brasileiro adotou o princípio da não devolução, consagrado no Direito Internacional, através do qual, segundo Susen Leite, “os países estão proibidos de expulsar uma pessoa para um território onde possa estar exposta à perseguição.i

O artigo 34 da Lei nº 9.474, de 1997 dispõe que a “solicitação de refúgio suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial, baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”. Pode-se dizer que seria a materialização, em lei, dos princípios da concessão de asilo político e da prevalência dos direitos humanos, tratados no art. 4º de nossa Constituição. No entanto, isto fez com que o número de pedidos de refúgio tivesse um aumento significativo, parte deles com finalidade diversa da perseguida na Convenção de 1951.

Nos últimos anos o mundo voltou os olhos ao refúgio, não apenas pelo conflito no território sírio e a diáspora para a Europa, mas também pela eclosão de outros conflitos na África e a deterioração da situação econômica e social na Venezuela. O Brasil não ficou ao largo desse assunto, tendo disparado, ano a ano, as solicitações de reconhecimento da condição de refugiado formuladas ao nosso país. Nada de errado nisto. Nosso país recebeu gente de todos os continentes que aqui vive em harmonia.

Mas, por força do art. 34 da Lei do Refúgio, cada vez de forma mais frequente, tem o STF se deparado com suspensão de processo de extradição por ter sido requerido refúgio pelo extraditando.

Tal realidade acaba impondo situações das mais diversas. Há casos em que o extraditando entra com o requerimento de pedido administrativo junto à Polícia Federal às vésperas do julgamento da extradição, em um, inclusive, o extraditando deu início ao processo de refúgio após a publicação do Acórdão do STF que deferiu a extradição.

Fácil é ver que referidos pedidos desviam-se da nobre finalidade da Lei do Refúgio e são utilizados como estratégia de defesa por estrangeiros condenados por graves crimes comuns em seus países de origem. Por tal motivo, é preciso identificar tais requerimentos, a fim de que não se confundam com aqueles que traduzem legítimos anseios de verdadeiros refugiados.

A primeira questão que se impõe é a análise do ordenamento jurídico brasileiro, sob a ótica da hierarquia das leis. E aqui é imperativo lembrar que, em tese, seria possível argumentar que a mera solicitação de reconhecimento da condição de refugiado obstaria o seguimento de processo extradicional. Entretanto, sabidamente deve ser evitada a interpretação gramatical do texto e a lição de Carlos Maximiliano: “Nada de exclusivo apego aos vocábulos. O dever do juiz não é aplicar os parágrafos isolados, e, sim, os princípios jurídicos em boa hora cristalizados em normas positivas”.ii

Além disto, a condição de refugiado é matéria de ordem pública, podendo ser analisada pelo Poder Judiciário, no caso a Suprema Corte de Justiça, a qualquer momento. No próprio processo de extradição no STF pode-se verificar a presença dos requisitos necessários para o reconhecimento da condição de refugiado, inclusive as hipóteses de aplicação do princípio da não devolução. Óbvio que esta é uma análise perfunctória e destinada a evitar fraudes. Por exemplo, pedir refúgio enquanto tramita o processo de extradição pode, em certas situações, ser uma burla tão notória que não dependa de prova (CPC (art. 374, I).

Se assim não fosse, a competência para analisar e decidir extradições, expressamente conferida pela Constituição ao STF (art. 102, I), estaria sendo retirada deste órgão máximo da jurisdição nacional para passar a uma manifestação de vontade do extraditando. E aí encaixa-se como uma luva o brocardo: “Adote-se a interpretação que evite o absurdo”. iii

Ainda, estaria o STF impedido de analisar e decidir sobre a natureza do crime atribuído ao extraditando, ou seja, se o caso é de crime político ou crime comum, além de outras questões atinentes ao processo de extradição. Ao fim e ao cabo, seria a admissão de que a lei infraconstitucional poderia afastar, suprimir ou mitigar a competência conferida pelo texto constitucional à Corte.

Desta maneira, entende-se que a Lei nº 9.474, de 1997, deve ser interpretada conforme a Constituição, pois não pode o legislador infraconstitucional afastar competência conferida ao STF diretamente pelo texto constitucional, reiterando que o ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma harmônica, utilizando os conceitos de proporcionalidade e de regras de ponderação propostos por Robert Alexy, mormente o primeiro deles, a Adequação.iv

Sobre a possibilidade de valer-se do princípio da adequação, registra-se que o conteúdo emanado dos artigos 33 e 34 da Lei nº 9.474, de 1997 são princípios jurídicos e não regras, razão pela qual comportam ponderações. Observa-se que o conteúdo dos citados artigos, ou seja, a determinação da sustação do processo extradicional sem qualquer tipo de análise ou critério, leva a crer, s.m.j., que o meio empregado para atingir a finalidade não é adequado para a finalidade do princípio e ainda produz interferências em outros princípios. Na situação em questão, o meio corresponderia à sustação do processo extradicional.

Ainda sobre a aplicação da adequação na interpretação dos artigos 33 e 34 da Lei nº 9.474, de 1997, recorda-se outro elemento prático do sistema extradicional adotado pelo Brasil, bem como do sistema de refúgio, como estão postos em nosso ordenamento jurídico.Registre, também, que ambas as decisões finais dos processos – autorização de entrega, no âmbito da extradição, e reconhecimento da condição de refugiado – são inerentes e privativas do Poder Executivo Federal, e ambas estão incluídas na competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Nelas sobressai-se a função do Secretários Nacional de Justiça, que pode agir por delegação na primeira e como presidente Comitê Nacional para os Refugiados (Conare, órgão responsável para decidir sobre a condição de refugiado) na segunda.

Portanto, na prática, a autoridade competente para autorizar a entrega é exatamente a mesma que dispõe da presidência do Conare, o que demonstra harmonia em nosso ordenamento jurídico e evita decisões antagônicas ou contraditórias do Poder Executivo Federal em um mesmo caso concreto.

Neste sentido entende o STF que, muito embora sendo o órgão que admite a extradição de cidadão estrangeiro, reconhece que o ato que autoriza a entrega cabe ao Poder Executivo Federal, o mesmo responsável por analisar e declarar o reconhecimento da condição de refugiado no Brasil.

Isto ficou bem claro no processo de Extradição 1.085, do nacional italiano Cesare Battisti (Ext 1.085-DF).v O direito ao refúgio foi concedido pelo Poder Executivo, porém declarado nulo pelo STF, que considerou os delitos praticados pelo extraditando crimes comuns e não políticos e deferiu o pedido de extradição feito pela Itália. Entretanto, reconheceu a Corte Supremavi que o ato de autorização de entrega é um ato de soberania da República Federativa do Brasil, exercido pelo Chefe do Poder Executivo Federal.

Isto posto, pelo raciocínio adotado afigura-se inadequado afastar a jurisdição do STF, pela simples solicitação de reconhecimento da condição de refugiado. A melhor solução é a intermediária, ou seja, enquanto não analisada a decisão sobre o reconhecimento da condição de refugiado pelo Conare, fique suspensa apenas a autorização de entrega do estrangeiro ao país de origem. Se o Conare lhe negar o direito ao refúgio, ele será entregue às autoridades estrangeiras. Se lhe for concedido refúgio, ele poderá permanecer no Brasil, mesmo que tenha sido decretada a sua extradição.

Tal conclusão resguardará a competência originária do STF atribuída pela Carta Magna e dará ao processo de extradição maior efetividade, exatamente como recomenda o princípio da eficiência administrativa previsto no art. 37 da Constituição.

Ademais, será um passo à frente para poupar o Brasil da descrença dos países com os quis celebramos Tratados de Extradição, fato este exteriorizado com clareza no 4º Capítulo da série italiana “O Processo”,vii expondo-nos de forma vergonhosa.


i LEITE, Susen Quelle A. F. Leite. O princípio de non-refoulement (não-devolução) x refugiados humanitários. Jus.Com. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51131/o-principio-de-non-refoulement-nao-devolucao-x-refugiados-humanitarios#:~:text=Dentre%20as%20normas%20imperativas%2C%20encontra,possa%20estar%20exposta%20%C3%A0%20persegui%C3%A7%C3%A3o. Acesso em 5/6/2020.

ii MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 9ª. ed., 1981, p. 119.

iii Interpretatio illa sumenda quae absurdum evitetur.

iv ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 111-115.

v BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição nº 1.085-DF. Estado requerente: Itália. Extraditando: Cesare Battisti. Relator: Min. CEZAR PELUSO. Plenário (5×4), ausentes os Min. Celso de Mello e Dias Toffoli. Brasília, 18 de novembro de 2009.

vi BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem na Extradição nº 1.085-DF. Estado requerente: Itália. Extraditando: Cesare Battisti. Relator: Min. CEZAR PELUSO. Plenário (5×4), ausentes os Min. Celso de Mello e Dias Toffoli. Brasília, 16 de dezembro de 2009.

vii O Processo, Diretor Alessandro Fabri, com Vittória Puccini no papel principal, Netflix, 2020. Informações disponíveis em: https://www.omelete.com.br/netflix/criticas/o-processo-1a-temporada-netflix-critica. Acesso 5/6/2020.

 é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

Bernardo de Almeida Tannuri Laferté é coordenador-geral do Comitê Nacional para os Refugiados do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Categorias
Notícias

Escritório Mourão Campos tem novo sócio na área tributária

Marco Antônio Junqueira de Arantes é o novo sócio de Direito Tributário do escritório Mourão Campos, Fernandez, Cargnin e Zanatta Advogados

Baseado na sede da Mourão Campos em São Paulo, Arantes chega para fortalecer a operação e dar apoio à estratégia de negócios do escritório especializado em representação legal para empresas estrangeiras que desejam investir ou fixar operação no Brasil.

Categorias
Notícias

Lei que diminui teto de RPV não pode retroagir, define Supremo

Repercussão geral

Supremo assenta que lei que diminui teto de RPV não pode retroagir

Por 

O Plenário do Supremo Tribunal Federal assentou a impossibilidade de lei que reduziu o teto para expedição das Requisições de Pequeno Valor (RPV) retroagir. O julgamento foi unânime e encerrou nesta sexta-feira (5/6) no Plenário Virtual.

ReproduçãoPor unanimidade, ministro fixaram irretroatividade de lei que trata de PRVs

Os ministros analisaram se a lei 3.624/05 do Distrito Federal, que reduziu de 40 para 10 salários mínimos o teto para de RPV, poderia ser aplicada às execuções em tramitação. 

O recurso chegou ao Supremo ajuizada pelo Sindicato dos Servidores Públicos Civis da Administração Direta, Autarquias, Fundações e Tribunal de Contas do Distrito Federal. A categoria questionou decisão do Tribunal de Justiça do DF que entendeu pela possibilidade de aplicar a lei a processos em trâmite.

O relator, ministro Marco Aurélio apontou precedentes da corte e afirmou que, nos casos de retroatividade da lei, estaria “ferindo-se de morte a medula do devido processo legal”.

Ao analisar o caso, o ministro entendeu que depois da lei distrital, o credor passou a contar “com o direito de ver o débito satisfeito sem vinculação ao sistema de precatórios. Esse enfoque revela a lei nova, a um só tempo, como material e processual, norteando a última óptica a execução”. 

Com repercussão geral, foi definida a seguinte tese: “Lei disciplinadora da submissão de crédito ao sistema de execução via precatório possui natureza material e processual, sendo inaplicável a situação jurídica constituída em data que a anteceda”.

Não participou do julgamento o ministro Dias Toffoli, que está afastado por licença médica.

RE 729.107

Topo da página

 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 7 de junho de 2020, 9h48

Categorias
Notícias

Entrevista: Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública

O argumento de que o artigo 142 da Constituição permite uma intervenção militar voltou a ganhar força recentemente. O dispositivo estabelece que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Em artigo publicado na ConJur, o jurista Ives Gandra da Silva Martins afirma que, em caso de conflito entre o Executivo e qualquer dos outros dois Poderes (Legislativo e Judiciário), em que haja invasão de atribuições, os líderes militares poderiam atuar como moderadores.

Ex-ministro da Defesa — a quem Exército, Marinha e Aeronáutica estão subordinados — e da Segurança Pública no governo Michel Temer, Raul Jungmann rechaça essa interpretação. Ele lembra que cabe ao Judiciário, e não às Forças Armadas, atuar como moderador de conflitos entre Poderes.

“Em todo e qualquer conflito entre Poderes, a última palavra, constitucionalmente, é do Judiciário. Não tem o menor cabimento essa interpretação. É um juízo enviesado, que presta um desserviço à democracia. Militares não podem agir autonomamente, eles têm que agir a pedido de algum dos Poderes. No caso de haver um conflito entre Poderes, entre um Poder chamar as Forças Armadas e o outro não chamar, a última instância que interpreta a Constituição é exatamente o STF. Por que existe a Justiça senão para dirimir conflitos?”, questiona, ressaltando que Exército, Marinha e Aeronáutica não embarcariam em um golpe, como tem sido aventado por alguns devido ao grande número de militares no governo Jair Bolsonaro.

Quando o Ministério da Segurança Pública foi criado, em fevereiro de 2018, a Polícia Federal passou a ser comandada pela pasta. Com base nessa experiência, Jungmann avalia que a corporação não se deixaria ser usada atender a objetivos pessoais de Bolsonaro. Ao deixar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro alegou que o presidente quis interferir na PF para proteger a sua família e aliados. A acusação é alvo de inquérito no Supremo Tribunal Federal.

A gestão de Moro na pasta teve pontos positivos, diz Jungmann. Porém, ele critica o abandono do Sistema Único de Segurança Pública e da linha de crédito para o financiamento de ações na área.

Em entrevista à ConJur por telefone, o ex-ministro também defendeu políticas sociais para reduzir a criminalidade, declarou que a flexibilização da posse e do porte de armas aumenta a violência e analisou o legado da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro.

Leia a entrevista:

ConJur — O que o senhor pensa sobre a fusão do Ministério da Justiça com o Ministério da Segurança Pública, feita no governo Bolsonaro?

Raul Jungmann —
Eu fiz um levantamento das sete Constituições brasileiras, da primeira, de 1824, até a última, de 1988. Em nenhuma delas o poder central, fosse no Império, fosse na República, assumiu competências constitucionais na área da segurança. Isso sempre foi atribuição das províncias, no passado, e dos estados, no presente. Então o Brasil nunca teve um sistema nacional de segurança pública, nunca teve uma política nacional de segurança pública. Isso causa espanto, porque a primeira coisa que ocorre à cabeça do interlocutor é “mas, escute, não tinha o plano isso, plano aquilo?”. Os planos, é bom lembrar, expressam a vontade do ministro. Se o ministro dura três anos, o plano dura três anos. Se ele dura três meses, o plano dura três meses. E, via de regra, a primeira coisa que o sucessor faz é lançar um plano também, e não dar continuidade ao plano que herdou. Mas como se pode combater crime organizado, milícias, drogas sem ter nem um sistema nacional, nem ter uma política nacional de segurança? Dou um exemplo. O Brasil, até hoje, não tem um sistema de informação e de dados confiável na área de segurança pública.

ConJur — Depende tudo dos estados, certo?

Raul Jungmann —
Sim. Quando eu era deputado federal, tentei vincular o repasse dos recursos à informação dos estados do que acontecia com a segurança pública, para montar um painel federal. Isso nunca foi adiante, e os próprios estados bloquearam a iniciativa. Então o Brasil, no século XXI, não tem algo que outras nações têm desde o século XIX, o século XX. Nós não temos uma estrutura de dados. Agora, a pergunta que eu te faço: como é que se desenham políticas públicas sem ter informações de dados? Para você ter noção do que eu estou falando, quando nós estivemos 10 meses à frente do Ministério da Segurança Pública, nós conseguimos aprovar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), cobrindo essa falha de ter um sistema único que interligasse União, estados, polícias, Ministério Público, Judiciário, academia, ONGs, sociedade civil, Forças Armadas, todos, enfim, dentro do Conselho Nacional de Segurança Pública, e aprovamos uma política nacional de segurança pública. Porém, nem o Susp foi implantado de lá para cá, nem a política nacional de segurança pública, que poderia ser corrigida, revista, modificada.

E, que eu saiba, ao longo desses praticamente um ano e meio do atual governo, o Conselho Nacional de Segurança Pública reuniu-se apenas uma vez. E ele tem periodicidade, se não me engano, quadrimestral, para se reunir. Nós voltamos à estaca zero. Por isso é que eu defendo que a segurança pública tenha um ministério a ela dedicado. Até porque todas as áreas sociais da Constituição de 1988, cultura, educação, saúde, previdência, assistência social, esportes têm um órgão no mais alto nível da administração pública federal, para cuidar das suas questões. A segurança, que é uma das questões mais importantes para os brasileiros, não tem isso. Como também não teve ao longo do tempo.

ConJur — Como o senhor avalia a gestão de Sergio Moro no Ministério da Justiça e da Segurança Pública?

Raul Jungmann —
Ele teve pouco tempo para poder entregar um programa de segurança pública. Ele teve algumas ações boas. Por exemplo, o projeto de segurança comunitária municipal, com cinco municípios. É uma boa iniciativa, mas ainda não passou para o teste de maior escala. A transferência de presidiários do Primeiro Comando da Capital (PCC), de facções criminosas, para presídios federais também uma boa iniciativa. Nós fizemos isso com vários deles. A terceira boa iniciativa foi a ampliação da apreensão de drogas pela Polícia Federal. Nós mesmos criamos a coordenação de combate ao crime organizado. Teve também a iniciativa do projeto anticrime, que tinha alguns problemas na proposta inicial, mas foi bem melhorado no Congresso Nacional.

Em contrapartida, o ministro não levou adiante a implantação do Susp, que tem pontos fundamentais. Sua curadoria permite avaliar o desempenho das seguranças: governo do estado, polícias, em nível nacional etc… Está tudo lá dentro. A segurança pública permanece como reino da obscuridade. Se você quiser saber do sistema de educação, você vai direto no sistema do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Se você quiser saber como está a saúde, tem o DataSUS informando tudo. E a segurança pública? Não tem dados checados. Nós também deixamos no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) um programa chamado Bndes Pró-Segurança, com R$ 40 bilhões para os estados financiarem a compra de veículos, equipamentos, armas. Esse programa também não foi adiante. Assim como foi contingenciado o programa Pró-qualidade, que usava 15% dos recursos da loteria esportiva que iriam para o fundo de segurança pública para capacitar policiais.

ConJur — O ministro Sergio Moro atribuiu a suas ações a redução de homicídios no Brasil em 2019. Ele está correto?

Raul Jungmann —
Os homicídios começaram a cair em 2017, em junho, julho. Em 2018, houve uma queda mais acentuada, de 10%, depois de cinco anos de crescimento — fora uma pequena redução em 2015. E 2019 seguiu essa tendência. Em 2018, chamaram para mim o protagonismo [a queda dos homicídios], e eu sempre dizia “não, não pode ser”, porque o governo federal não cuida dos homicídios em geral. Quem cuida de homicídios é o Ministério Público estadual, as polícias estaduais. Então eu fui coadjuvante. Fizemos campanhas nacionais integradas com todas as polícias, de homicídios, feminicídios, pedofilia. Integramos centros de inteligência. Mas o protagonismo é dos estados. Então não se pode atribuir a queda dos homicídios ao governo federal.

Em 2017, 2018, sabendo que iam ser julgados pela população nas eleições pela sua política de segurança e combate à violência e homicídios, os governadores investiram em polícia, equipamentos, carros, produtividade. Mas agora acabou o fôlego fiscal, de investimento. Em janeiro deste ano, antes da epidemia, os índices de homicídio voltaram a subir. Aliás, a queda já vinha sendo desacelerada. Temos um crescimento de janeiro até agora de 11%, deixando absolutamente claro para quem quiser ver que a queda não ocorreu por um protagonismo do governo federal.

ConJur — Alguns pesquisadores argumentam que a queda nos homicídios se deve menos a investimentos estatais na segurança pública e mais a acordos entre facções criminosas. Concorda?

Raul Jungmann —
Esse argumento ficou insuficiente para explicar a queda dos homicídios. Em 2017, realmente houve uma série de massacres causados brigas de facções. Mas aí parou. Parou e, mais adiante, os crimes começaram a cair. Este ano tivemos massacres, no ano passado tivemos massacres, e os crimes voltaram a subir. Simples assim. A questão dos massacres é uma contribuição marginal. Nós estamos falando de 50 mil mortes a 60 mil mortes. Nessas tragédias, morreram algumas centenas.

Depois argumentaram que mudaram as dinâmicas criminais. Disseram que tinha um crescimento menor da juventude e que isso impactava na juventude vulnerável. Que eu saiba, nada disso mudou. Então, caiu o número de homicídios, e hoje sobe. Por quê? Insisto: acabou o fôlego fiscal dos estados.

ConJur — Um problema antigo do Brasil é a baixíssima taxa de elucidação dos homicídios, que gira em torno de 8%. Como melhorar isso?

Raul Jungmann —
Tem gente que fala em 8%, tem gente que fala em 20%, mas, de todo jeito, é um índice muito baixo. O ciclo de segurança começa em um programa de prevenção social voltado para a juventude vulnerável, a juventude de 15 a 24 anos, que morre em taxa bem acima da média, e uma parte dela também é violenta acima da média. A primeira coisa são esses jovens. Os “sem-sem”: sem escola, sem trabalho, família desestruturada, moram nas periferias das cidades, negros, pobres, com baixa escolaridade, de pouca renda. Esse é o perfil. Isso é importante porque, no sistema prisional, 55% dos nossos 852 mil apenados, segundo o Conselho Nacional de Justiça, são jovens. Está claro que um pedaço dessa juventude vulnerável é atraído pelo crime e vai parar no sistema prisional.

Então, há dois aspectos interditados, que não são incluídos no debate da segurança pública. O primeiro é o da vulnerabilidade da juventude. O segundo é o do sistema prisional. Nós temos a terceira maior população prisional do mundo, abaixo apenas dos Estados Unidos e da China, países com população bem maior do que a nossa. Temos 852 mil apenados. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, esse número vinha crescendo, quando eu estava no governo, a 8% ao ano. O que quer dizer que daqui uns três anos nós teremos algo como uma Porto Alegre dentro das prisões, 1,5 milhão de apenados. O sistema é absolutamente superlotado. Tem uma vaga para dois presos. Lá dentro estão majoritariamente jovens. Quase 60% dos presos foram condenados por furto, roubo, receptação e uso de drogas. Os homicídios respondem por 11%. E a quantidade de chefes de quadrilha, traficantes reais, é mínima. Ou seja, a gente prende muito e prende mal. E não há discussão sobre isso.

Acima de tudo, há 70 facções que controlam quase a totalidade dos 1.400 estabelecimentos prisionais do Brasil. E todas elas têm base prisional. Ou seja: surgiram dentro das prisões. Mas controlam a violência fora delas. Isso porque como as facções controlam o sistema prisional. O jovem que é preso com uma trouxa de maconha, uma pedra de crack, sem antecedente criminal, sem arma, quando é jogado na prisão, para sobreviver, tem que se filiar a uma dessas facções. Senão ele corre o risco de morrer. E a partir daí se torna um soldado. Então a gente chega a uma situação absolutamente paradoxal. Cada vez que tiramos um jovem das ruas, estamos ampliando o crime organizado, estamos servindo de recrutadores para o crime organizado. Mas não há debate ou projeto sobre isso. Porque tem uma população amedrontada, que quer que tire o bandido da rua e não quer saber o que acontece dentro da prisão. A discussão só se dá em um campo: na repressão. A discussão é toda centrada em mais força policial, leis mais duras, mais carros, mais armas. Não há dúvida de que tudo isso é importante. Mas se não trabalharmos a questão da juventude vulnerável, sobretudo em periferias, se não encararmos e fizermos uma reforma do sistema prisional, inclusive reduzindo o encarceramento, será como se você estiver em uma banheira que está transbordando, mas, em vez de fechar a torneira, você fica tirando água dela com um balde.

ConJur — Como o senhor avalia a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, em 2018?

Raul Jungmann —
Ela foi positiva, dentro do possível. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que é que algo que durou 10, 11 meses. Medellín, que foi a cidade mais violenta do mundo em 1991, na época do cartel de Medellín, comandado por Pablo Escobar, chegou a ter 330, 350 mortes por 100 mil habitantes. O Brasil, até 2017, tinha 30 mortes por 100 mil habitantes. Passados todos esses anos, Medellín hoje tem uma média de 25 mortes por 100 mil habitantes. É uma queda brutal. Por quê? Porque houve política, continuidade de investimentos nas comunidades mais frágeis, todo um imenso programa de obras, de erguer a autoestima das comunidades, de trabalhar nas áreas mais violentas. Isso independentemente de quem estava no governo. Não seria possível fazer uma mudança dessas em 10 meses no Rio de Janeiro. A ideia foi fazer investimentos físicos, sobretudo em treinamento, capacitação, equipamentos, mas não houve tempo nem condições para reformar as políticas do Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro tem 830 comunidades sob controle de milicianos, crime organizado e tráfico de drogas. Ou seja, há mais ou menos 1,5 milhão de cariocas que vivem em um regime de exceção, sem direitos e garantias constitucionais. E existe hoje uma aliança, por assim dizer, entre crime organizado, uma parte da política e também outros agentes públicos, outras corporações. Como isso se deu? Se deu que a milícia que controla um território controla o voto. Ao controlar o voto, ela elege o seu representante como aliado. Nas negociações para obter uma coalização, o governador ou prefeito precisa fazer alianças, e esse aliado representante da milícia vai indicar pessoas para a máquina do governo, inclusive dentro da área da segurança pública. Isso é o que eu chamo de coração das trevas, de aliança satânica, que reúne uma parte da política, uma parte dos servidores públicos, inclusive na área de segurança, e o crime organizado. Então, no Rio de Janeiro, tem essa aliança satânica, e não houve tempo hábil para ela ser de fato enfrentada. É bom lembrar que isso existe em outros estados, mas em grau bem menor do que no Rio de Janeiro.

ConJur — A intervenção federal acabou em 31 de dezembro de 2018, e Wilson Witzel, ao assumir o governo do Rio, tomou medidas que contrariavam as implementadas no período. Entre elas, extinguiu a Secretaria de Segurança Pública e deu mais poder à Polícia Civil e à Polícia Militar, criando secretarias para cada uma delas. Com isso, as polícias deixaram de ser subordinadas a um secretário de Segurança. O governo Witzel desmantelou o legado da intervenção federal?

Raul Jungmann —
Em primeiro lugar, a palavra de ordem nos setores policiais, aqui e mundo afora, são coordenação e integração. Desintegrar, separar, é realmente um contrassenso, vai na contramão de toda a teoria e prática no mundo. Isso [de dar mais poder às polícias] foi uma proposta que teve um cunho eleitoral em determinado momento, que agradou as corporações, que gostam de ter representação direta sem intermediação com um secretário. Veja que os próprios militares são subordinados ao Ministério da Defesa. É uma tendência mundial. Então, isso é evidentemente algo que não faz sentido.

Outra coisa: dar a, digamos, “licença para matar” às polícias. Nada corrompe moralmente mais uma polícia do que ela escolher quem vai ficar vivo e quem vai morrer. A letalidade policial no Rio de Janeiro alcança sobretudo os pequenos traficantes, os usuários etc. Os grandes criminosos, os grandes chefes de quadrilha, rarissimamente são alcançados pela mão da polícia. O que me preocupa muito, porque se uma polícia tem a liberdade de decidir quem vai viver e quem vai morrer, além de ser moralmente corrompida, pode ser realmente corrompida. O problema é ainda maior quando se alia isso à politização das polícias. Quando essa entra por uma porta, seja em uma corporação militar, seja uma corporação policial, a disciplina e hierarquia saem por outra. E esses são aspectos centrais, pois são órgãos que detêm o monopólio da violência legítima de Estado. Quando se faz isso, nivelam-se as polícias com as milícias. Isso porque elas deixam de exercer a violência legítima, ou seja, a violência regulada pela lei, e passam a exercer uma violência ao arbítrio daqueles que a promovem.

ConJur — Bolsonaro defende há tempos a ampliação das excludentes de ilicitude para policiais — a medida inclusive constava do texto inicial do projeto “anticrime”. Vários outros governadores seguiram mesma linha. Talvez o caso mais explícito seja o de Witzel, que defende que policiais atirem para matar em quem estiver portando fuzil. A carta branca para policiais matarem em serviço tem algum impacto na redução da criminalidade?

Raul Jungmann —
A polícia tem que ter um protocolo de engajamento. Ou seja, tem que atuar, sobretudo, com cuidado com os danos colaterais da situação. Por exemplo, se está próxima de uma escola, se tem crianças, se tem pessoas da comunidade nas ruas, sobretudo dentro das favelas, há que se preservar a vida daqueles que não estão envolvidos na operação, por mais difícil que isso seja. É preciso saber exatamente a proporcionalidade do uso da força. Não observar isso é um total contrassenso. É aquilo que eu disse: a liberação do uso da força termina se voltando contra aqueles que são inocentes.

E isso também é moralmente péssimo para a força policial e a segurança. E também para que a comunidade se sinta segura, se sinta cuidada, porque no fundo, a principal tarefa da polícia não é matar, é proteger vidas. Então, é um contrassenso a proposta de ampliar a excludente de ilicitude, que já se encontra devidamente estabelecida pelo Código Penal, e também a de liberar uma atuação que não seja proporcional, que não tenha regras claras de engajamento e que proteja a vida daqueles que, afinal, não devem nada à Justiça.

ConJur — Frequentemente as Forças Armadas têm sido usadas em operações de garantia da lei e da ordem (GLO), não só na intervenção federal no Rio. Elas estão preparadas para atuar na segurança pública?

Raul Jungmann —
Quando as Forças Armadas se envolvem em segurança pública, é sempre a pedido de governadores. Eu, durante 20 meses, fui ministro da Defesa e tive 11 operações de garantia da lei e da ordem. Salvo aquelas que não são relacionadas à segurança pública, mas a desastres, de Defesa Civil, promoção de grandes eventos, como Copa do Mundo e Olimpíadas, todas as demais foram solicitadas por governadores. Usualmente essa solicitação é porque houve uma greve de policiais, porque as forças policiais não estão disponíveis ou não eram suficientes para conter uma situação. E há uma população vulnerável, exposta ao crime organizado. Infelizmente, não tem como negar os pedidos. Então, todas as vezes que as Forças Armadas estiveram presentes foi para restaurar a ordem e para garantir a vida e a propriedade das pessoas.

Agora, elas têm treinamento, têm protocolos rígidos de atuação. Nessas 11 GLOs, que no total, envolveram 50, 60 mil militares, os incidentes foram raríssimos. O que é uma demonstração de que os militares têm preparo, têm disciplina e que eles nunca atuam solitariamente, estão sempre em grupos de quatro, de cinco, sob o comando de um sargento, de um tenente. As Forças Armadas, inclusive, não gostam de exercer esse papel. E elas correm risco quando vão exercer uma atividade como essa.

ConJur — Nove dos 22 ministros de Bolsonaro são militares. Além disso, militares da ativa ocupam 2,9 mil cargos no Executivo. Bolsonaro já afirmou que as Forças Armadas estão com ele. Esse movimento de colocar militares em seu governo é um ato de proteção de Bolsonaro? Acredita que ele possa dar um golpe? As Forças Armadas estariam dispostas a isso?

Raul Jungmann —
Em primeiro lugar, Bolsonaro foi o que se chama de “deputado de nicho”. Ele tinha um nicho, que eram policiais e militares. Quando ele chega ao governo, para preencher os cargos no âmbito federal, ele praticamente não tem como usar os policiais. Porque o treinamento, capacitação, preparo dos policiais são voltados para o âmbito territorial do estado. Toda a formação dos policiais é para o plano estadual. Já os militares, não, eles são servidores públicos federais, e toda a formação deles é nacional por excelência. Ao longo de sua carreira, eles rodam o Brasil inteiro, vão para o exterior. Então, evidentemente que ele vai usar aqueles que são mais próximos, que são os militares.

Segundo lugar: não são três mil da ativa, são três mil da reserva [levantamento do jornal O Estado de S. Paulo aponta que são quase 3 mil militares da ativa no Executivo federal]. Mas isso não quer dizer que seja adequado. Pelo artigo 142 da Constituição, as Forças Armadas são instituições nacionais, permanentes, regulares. Portanto, instituições de Estado. No meu modo de entender, o militar da ativa não deve exercer cargos políticos. Eles têm funções diversas. Cabe uma regulamentação dessa participação dos militares da ativa. Isso não é discriminar os militares. Eles têm ótima formação, são honestos, são compromissados com o Brasil. Mas não se deve confundir governo e sua relação política com as missões de Estado que certas instituições, como as Forças Armadas, têm.

A questão que as pessoas sempre ficam perguntando: “Mas e os militares, eles vão dar um golpe?” A resposta é muito simples: não, não vão. O que está havendo é uma grande confusão. Há ministros políticos que foram generais, assim como há ministro político que foi médico, que foi engenheiro, advogado, qualquer profissão. Se um ministro que é médico fala, ninguém acha que ele está falando pela categoria médica. Se um ministro advogado fala, ninguém acha que ele está falando pelos advogados. Mas se um ministro que é general, que é militar, fala, acham que ele fala pela corporação. Engano. Uma fala de um Augusto Heleno [ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência], uma fala de um Luiz Eduardo Ramos [ministro da Secretaria de Governo], seja como for, não é da direção das Forças Armadas, eles não falam pelas Forças Armadas. E as Forças Armadas estão dentro das suas atribuições constitucionais, voltadas para a sua atividade, e não têm a menor disposição de participar de qualquer aventura ou desvio da Constituição e da democracia. Você não vê nenhum comandante militar tomando posição a esse respeito. Tampouco as Forças Armadas são do presidente Jair Bolsonaro, como não foram do presidente Lula, como não foram do presidente Fernando Henrique, do Collor, do Sarney, do Temer… Elas estão a serviço da Constituição, do Estado, e não de nenhum presidente.

ConJur — Nos últimos tempos, voltou a ganhar força a interpretação de que o artigo 142 da Constituição permite que as Forças Armadas intervenham para restaurar a “ordem democrática”. Segundo esse raciocínio, um dos Poderes, como o Executivo, poderia usar as Forças Armadas para reverter uma decisão inconstitucional tomada por outro poder, como o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Judiciário. Esse uso das Forças Armadas é permitido pela Constituição?

Raul Jungmann —
Olha, eu estou até espantado com esse tipo de interpretação. Outro dia, o Ives Gandra Martins deu uma interpretação semelhante. Em todo e qualquer conflito entre Poderes, a última palavra, constitucionalmente, é do Judiciário. Não tem o menor cabimento essa interpretação. Ela não resistiria a um exame, por exemplo, de quem cabe interpretar a Constituição, que é o Supremo Tribunal Federal. É um juízo enviesado, que presta um desserviço à democracia. Militares não podem agir autonomamente, eles têm que agir a pedido de algum dos Poderes. No caso de haver um conflito entre Poderes, entre um Poder chamar as Forças Armadas e o outro não chamar, a última instância que interpreta a Constituição é exatamente o STF. Por que existe a Justiça senão para dirimir conflitos?

ConJur — O governo Bolsonaro vem tomando várias medidas para flexibilizar a posse e o porte de armas. Essa é uma medida eficaz para se combater a criminalidade?

Raul Jungmann —
Obviamente que não. Isso não é política de segurança pública. O próprio ex-ministro Moro disse, e todos sabem, que isso não faz qualquer sentido. Isso é uma posição ideológica do presidente, tudo bem, respeitamos. Mas é absolutamente claro: mais armas, mais mortes. As armas têm que ser reguladas e controladas fortemente pelo Poder Público, como, aliás, o Estatuto do Desarmamento prevê.

E é extremamente danosa, nociva, a ideia de armar o povo. Como eu disse anteriormente, o Estado se distingue pelo monopólio da violência legítima. Armar a população é desconstituir o monopólio da violência legítima, que é exercida pelas Forças Armadas e pelas polícias. Não faz nenhum sentido. E tampouco endosso essa flexibilização, porque ela é um fator de incremento da violência, e não o contrário. Aqueles que legitimamente têm direito de se armar, não há porque não conceder a posse e o porte a eles. Mas uma política de armamentismo, de elevar o número de armas, de munição, só conduz a mais violência e mais mortes.

ConJur — Sergio Moro deixou o governo Bolsonaro alegando que o presidente quis interferir na Polícia Federal para proteger a sua família e aliados. Como o senhor avalia a Polícia Federal no governo Bolsonaro?

Raul Jungmann —
A Polícia Federal é uma das melhores polícias federais do mundo, formada por profissionais altamente qualificados, com um nível de eficácia muito grande. E eu não acredito que ela seja permeável a esse tipo de interferência. Não só no caso do presidente Bolsonaro, mas de qualquer outra autoridade ou da sociedade. Isso ficou claro ao longo da operação “lava jato”, em que ela cumpriu seu papel investigando grandes empresários e políticos do mais alto escalão. Pode-se discutir sobre o aspecto judicial, se foi ou se não foi, se houve excesso ou se não houve. Isso é uma outra questão. Mas a Polícia Federal tem formação, capacidade e uma cultura que não permitem a utilização política dela.

ConJur — Há quem defenda que o diretor-geral da PF seja escolhido a partir de uma lista tríplice feita pela corporação, nos moldes da escolha do procurador-geral da República. Essa seria uma boa medida para tornar a PF menos suscetível a interferências de presidentes?

Raul Jungmann —
Eu defendo a autonomia da Polícia Federal. Defendo porque, hoje, essa autonomia vive de certa forma no limbo. Por que no limbo? Porque a Polícia Federal é a polícia judiciária da União, quando ela está funcionalmente subordinada não ao Executivo, mas ao Poder Judiciário. O Poder Executivo não tem, e não deve ter, qualquer influência na sua atividade. Ele deve ter controle administrativo, mas não daquilo que a PF está fazendo. E os controles sobre a Polícia Federal são fracos. O Ministério Público não tem pernas para cumprir isso efetivamente. Por isso mesmo, a PF deveria ter um diretor-geral com mandato fixo, sendo sabatinado pelo Senado. E seria positivo reformular as estruturas de controle e supervisão externas. Apoio propostas nesse sentido. Agora, eu não abraçaria essa forma de escolha a partir de três nomes vindos da corporação, porque isso muitas vezes descamba para o corporativismo.

ConJur — A Lei Anticrime, originada a partir de projeto de Moro, elevou a pena máxima de prisão no Brasil de 30 para 40 anos e aumentou as penas para alguns delitos. Penas mais altas ajudam a reduzir a criminalidade?

Raul Jungmann —
Está provado que não. O que ajuda a reduzir a criminalidade de fato é a queda da impunidade. Se nós só elucidamos 8% ou 20% dos homicídios, evidentemente que isso é um incentivo positivo à continuidade da violência. O aumento na elucidação de crimes é um fator de desestímulo à violência e à criminalidade.

ConJur — Grande parte dos presos foi condenada por crimes relacionados ao tráfico de drogas. E muitos homicídios cometidos no Brasil se dão em conflitos entre facções de traficantes ou entre traficantes e policiais. A regulamentação ou legalização das drogas não ajudaria a diminuir os homicídios e a superlotação carcerária?

Raul Jungmann —
A atual política de combate às drogas que nós temos não só é ineficiente como amplia essa situação que estamos vivendo. Quando se pega um moleque com uma trouxa de maconha, uma pedra de crack, sem armas, sem ter cometido crimes violentos, que não é reincidente, e o joga dentro de unidade prisional controlada pelo PCC, Comando Vermelho, simplesmente se cancelando a possibilidade de se resgatar esses jovens. Ao mesmo tempo, dentro do sistema prisional, cerca de 80% não tem atividades educacionais ou laborais. Então não se prepara esse jovem para a ressocialização, para que ele volte à vida social e para o mercado. Essa é uma política que não resolve.

Eu não discuto a questão da liberação porque, antes disso, é preciso que o STF defina o quanto de droga separa o traficante do usuário. Em outros países você tem uma quantidade estabelecida de algumas drogas. Abaixo de um nível, é usuário. Acima, ele é considerado traficante. Como isso não é claro no Brasil, fica, digamos assim, ao arbítrio do Poder Judiciário estabelecer penas que, em alguns casos, são exorbitantes.

ConJur — Durante a quarentena, os crimes contra o patrimônio tiveram grande queda. Por outro lado, os homicídios subiram em São Paulo, assim como mortes cometidas por policiais no Rio. Como enxerga o impacto da epidemia na criminalidade?

Raul Jungmann —
Há uma mudança de padrão. Crescem os homicídios, a violência doméstica, os feminicídios. E caem os roubos, furtos, os crimes de rua, por assim dizer, porque também tem menos gente circulando. O que se pode fazer é uma reciclagem nos procedimentos, nas plataformas, nas estratégias das polícias para lidar com isso. É preciso ampliar as delegacias da mulher, treinar mais gente para trabalhar com violência doméstica. E investir para que policial na ponta tenha uma formação para ser gestor da segurança da sua área, e não necessariamente um mero executor de ordens e que vai produzir flagrantes. É necessário investir em inteligência. Inclusive com a articulação com outros países da América do Sul. Quatro países da América do Sul estão dentre os maiores produtores mundiais de drogas. Nós precisamos criar uma autoridade sul-americana de segurança, que articule as polícias, a inteligência, que tenha jurisdição internacional, como a Interpol e a Europol. Também é preciso proteger esses policiais. Eles têm que ter equipamentos de proteção individual e vagas nos hospitais a eles dedicados. Não devem ser expostos a riscos desnecessários.

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Categorias
Notícias

Bafômetro indica, mas não apura embriaguez de motorista, diz TJ-RS

O registro do etilômetro (bafômetro) é apenas uma indicação, prova indireta, para aferir a capacidade psicomotora do motorista, na atual legislação de trânsito Logo, numa averiguação sobre embriaguez ao volante, é preciso considerar outros elementos que confirmem a denúncia do Ministério Público.

Este, em síntese, o fundamento da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao manter sentença que absolveu um motociclista denunciado por dirigir embriagado. O colegiado, assim como o juízo de primeiro grau, derrubou a denúncia, por entender que o registro do etilômetro não refletiu a realidade do fato denunciado pelo MP.

Para o relator da apelação-crime, desembargador João Batista Marques Tovo, a testemunha disse que o réu não apresentava qualquer sinal de alteração da capacidade psicomotora, ressaltando que o resultado acima do standard legal é bastante incomum para condutores de motocicletas. ‘‘E a razão disso é óbvia: para a condução de motocicletas, é necessário equilíbrio e destreza, que ficam prejudicados com a alteração da capacidade psicomotora por ingestão de bebidas alcoólicas, sendo mais comum que os condutores se envolvam em acidentes – e sejam por isso abordados – do que parados em barreira de rotina’’, complementou.

Segundo o desembargador, a Lei 12.760/2012 alterou o tipo penal do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e já não se realiza com o simples fato do condutor conter determinada concentração de álcool no sangue, mas por apresentar a capacidade psicomotora alterada em razão da influência do álcool – seja o índice que for.

Para o relator, a concentração – igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue – passou a ser um dos meios de prova dessa alteração. ‘‘E, disso retiro, o resultado do exame de sangue ou de ar alveolar somente constitui presunção relativa – favorável ou desfavorável – da alteração da capacidade psicomotora’’, registrou no acórdão, lavrado na sessão de 5 de maio.

A denúncia do MP

O motociclista foi parado pela barreira de fiscalização de trânsito, denominada Balada Segura, na madrugada de 2 de fevereiro de 2017, na Avenida Farrapos, Bairro Navegantes, em Porto Alegre. Segundo a fiscalização, ele dirigia sua motocicleta “com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool”. O teste do etilômetro (bafômetro) apontou 0,58 e, cerca de 35 minutos depois, 0,51mg de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões. Portanto, o teste deu positivo na prova e na contraprova.

Em face da conduta, o motociclista foi denunciado pelo Ministério Público como incurso no artigo 306 do CTB: “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.” Penalidade prevista: detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

A denúncia foi protocolada na Vara Única de Delitos de Trânsito do Foro Central da Capital em 22 de março de 2017. Após, o réu foi pessoalmente citado, mas não compareceu à audiência para oferecer a suspensão condicional do processo. O juízo decretou, então, a revelia. Com isso, a Defensoria Pública passou a atuar no processo, apresentando resposta à acusação do MP.

Em síntese, a defesa argumentou que o conjunto probatório é frágil para amparar uma condenação. Sustentou que o laudo pericial comprova que o réu não apresentava alteração em sua capacidade psicomotora no momento da abordagem. Isso sem falar que a única testemunha ouvida na instrução não se recorda da abordagem.

Sentença improcedente

A juíza Keila Lisiane Kloeckner Catta-Preta, em sentença proferida em 7 de agosto de 2019, julgou improcedente ação penal intentada pelo MP. Ela absolveu o denunciado com base no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal (CPP) — falta de provas para amparar a condenação.

A julgadora lembrou, preliminarmente, que a redação do artigo 306 do CTB, dada pela Lei 12.760/12, permite que a alteração da capacidade psicomotora seja constatada por exame de sangue (concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue), pelo teste do etilômetro (concentração igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar) e ainda por teste toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outro meio de prova admitido.

Ela observou que, embora o etilômetro acusasse a presença de álcool nos pulmões, os laudos de verificação de embriaguez alcoólica e toxicológica apontaram que o réu não apresentava alteração da capacidade psicomotora – ou seja, não havia registro de embriaguez. Um dos agentes de trânsito, presente na abordagem, confirmou que, afora o ‘‘hálito alcoólico’’, não havia sinal de embriaguez. Enfim, concluiu a julgadora, configurada a dúvida, esta deve militar em favor do acusado, pelo princípio do in dubio pro reo.

‘‘Desse modo, verifica-se que a prova colhida não é capaz de embasar uma condenação criminal, uma vez que há incerteza quanto à efetiva existência da alteração da capacidade em razão da ingestão de bebidas alcoólicas ou de substância psicoativa que determine dependência’’, escreveu na sentença.

Apelação ao TJ-RS

Inconformado, o MP interpôs apelação-crime no TJ-RS, visando à reforma da sentença. Em razões recursais, destacou que, quando o resultado do etilômetro apontar indicie igual ou superior a 0,3mg/l de álcool por ar alveolar, é totalmente desnecessária a utilização de outro meio de prova para comprovar a alteração da capacidade psicomotora. Alegou, ainda, o teste do etilômetro é “indubitavelmente mais fidedigno do que o exame clínico”, já que, neste, o indivíduo pode “disfarçar seu estado de embriaguez”.

Em conclusão, salientou que o exame clínico foi realizado mais de duas horas após a abordagem do réu na barreira da Balada Segura. Assim, esta prova não pode ser utilizada para absolver o denunciado.

Clique aqui para ler o acórdão

Clique aqui para ler a sentença

Processo 001/2.17.0014982-0 (Comarca de Porto Alegre)

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

Categorias
Notícias

Adesão de portuário a PDV representa quitação ampla do contrato

Caso haja previsão em norma coletiva, a adesão a plano de demissão voluntária equivale à quitação ampla de todas as parcelas objeto do contrato de emprego. Com base nesse entendimento do Supremo Tribunal Federal, a 4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou o recurso de um conferente da Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (Appa), de Paranaguá (PR), que pretendia o recebimento de diversas parcelas após ter aderido ao PDV da autarquia.

Após o desligamento, decorrente da adesão ao PDV em 2014, o portuário ajuizou reclamação trabalhista para pleitear parcelas como diferenças salariais e horas extras. A ação foi extinta pelo juízo da 1ª Vara do Trabalho de Paranaguá, e a sentença foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR). 

O fundamento foi a decisão do STF no Recurso Extraordinário 590415, com repercussão geral reconhecida. Segundo a tese fixada no julgamento, no caso de aprovação do plano por meio de acordo coletivo de trabalho, ficam solucionadas todas as pendências com a empresa, e o trabalhador não poderá recorrer à Justiça com outros pedidos.

No recurso ao TST, o empregado argumentou que, embora o plano tenha sido aprovado em acordo, não ficou registrado nos demais instrumentos celebrados por ele, referentes à adesão, a condição de quitação geral, ampla e irrestrita das verbas referentes ao contrato de trabalho. Defendeu, ainda, que a transação extrajudicial decorrente de adesão ao programa abrange parcelas e valores constantes do recibo, não podendo atingir outros direitos decorrentes da relação de emprego.

Jurisprudência

O relator, ministro Alexandre Ramos, observou que o Plano de Demissão Incentivada foi amplamente discutido entre empregados, empregador e sindicato profissional, com previsão expressa de quitação de todos os direitos decorrentes do extinto contrato de trabalho. Assim, ao manter a eficácia da adesão, o TRT decidiu em harmonia com a jurisprudência do TST e do STF sobre a questão. A decisão foi unânime. Com informações da assessoria de imprensa do Tribunal Superior do Trabalho.

RR 1486-55.2015.5.09.0022

Categorias
Notícias

Clara dos Anjos e as profecias de um triste visionário

O escritor fluminense Lima Barreto dedicou o romance Clara dos Anjos à memória de sua mãe, Amália Augusta. Neta de Maria Conceição, que nasceu na África e que chegou no Brasil em um navio negreiro. Amália foi criada e educada por uma família de proprietários rurais. Chegou a dirigir um colégio para moças no Rio de Janeiro. Amália faleceu em dezembro de 1887. Lima tinha seis anos. A ausência da mãe e uma melancolia decorrente da perda marcaram a personalidade do escritor. A avó paterna de Lima Barreto, Carlota Maria dos Anjos, foi escrava. Chegou ao Brasil a bordo de um navio negreiro.

Pode-se especular que a personagem central de Clara dos Anjos possa representar, em muitos aspectos, reminiscências dessas duas mulheres: a mãe e a avó do escritor, ainda que essa referência não seja direta. Clara pode simbolizar o horizonte e as perspectivas limitadas que o Rio de Janeiro no início do século XX oferecia a mulheres de ascendência africana, marginalizadas em uma sociedade autoritária e marcadamente aristocrática. Além do que, era uma sociedade extremamente racista.

O enredo é simples. Clara dos Anjos era uma mulata, filha de um modesto carteiro (Joaquim) e de uma dona-de-casa, Engrácia, limítrofe na compreensão do mundo. A mãe de Clara era uma mulher medíocre, medrosa, distante da realidade, protetora e que raramente saia de casa. Seu mundo se concentrava nas paredes da residência, na submissão ao marido e na vigilância da filha. Clara praticamente não tinha contato com o mundo externo, e certamente seria uma presa fácil para os escroques conquistadores sedutores que então havia. Foi o que aconteceu.

Cassi (que anexou Jones a seu nome, invocando ascendência inglesa) é o vilão. Filho de Maneco (um pai consciente, que o expulsou de casa) e de Salustiana (a mãe protetora, para quem o filho não poderia se casar com as mulheres simples que seduzia). Deve-se entender o comportamento do vilão, Cassi, à luz das disposições penais à época vigentes. Vigorava o Código Criminal de 1890. O defloramento de mulher menor de idade (como Clara, que tinha 17 anos), mediante sedução, engano ou fraude, suscitava prisão de um a quatro anos. O estupro de mulher honesta (sic) justificava prisão de um a seis anos. Se a violentada fosse prostituta a pena era bem menor, caía para seis meses a dois anos. O ambiente era tão preconceituoso que até juízes achavam que Cassi não deveria se casar com as moças pobres que seduzia. Cassi tocava violão, cantava modinhas e registrava dez defloramentos. Não tinha limites. Seduzia mulheres casadas, engravidou a filha da empregada da casa, cuja mãe, envergonhada, suicidou-se. O marido de uma das mulheres que Cassi seduziu assassinou a mulher.

Em Clara dos Anjos o escritor Lima Barreto denuncia a imprestabilidade da educação que moças de classe média baixa recebiam. Lima afirmava que a educação de Clara, cheia de mimos e vigilâncias, fora totalmente equivocada. Clara deveria ter sido educada, segundo o narrador, para que se defendesse e se batesse contra todas as pessoas que se opusessem à sua elevação social e moral.

Porém, de algum modo, Lima questiona o nível de responsabilidade de Clara para com os fatos que viveu, adiantando-se a uma discussão de política criminal e de criminologia (ocorrida a partir de meados do século XX), relativa ao papel da vítima no contexto do crime. Cassi teria se aproveitado de um mórbido estado d’alma, que era uma característica de Clara, a vítima. Lima Barreto às vezes nos faz perguntar se Clara, e sua família, teriam alguma responsabilidade nos eventos. Não que o narrador defenda o agressor. Pelo contrário. Tem-se a impressão que compartilham um universo desprovido de opções melhores.

Os personagens são típicos representantes da vida suburbana carioca do início do século XX. Joaquim dos Anjos, pai de Clara, um carteiro sem muitas pretensões. Engrácia, mãe de Clara, incapaz de atitude própria. Clara, sonhadora e distante da vida real. Dona Margarida, que instruía Clara nas costuras e bordados. Marramaque, o fiel amigo de Joaquim, padrinho de Clara. Cassi Jones, o vilão sedutor. Dona Salustiana, a mãe que superestima o filho. Maneco, pai de Cassi, realista, a ponto de expulsar o filho de casa. Praxedes, o rábula. Arnaldo, o ladrãozinho de galinhas. Nair, a seduzida que terminou na prostituição. Menezes, o dentista prático.

Em Clara dos Anjos o autor também tratou criticamente de outros assuntos, recorrentes em sua obra. Lima Barreto insurgiu-se contra funcionários públicos. Continuou sua cruzada contra os bacharéis e os rábulas. Na figura do Dr. Praxedes, um típico rábula, pintou um personagem obcecado com o mundo dos advogados e juízes. Praxedes só falava em processos, embargos, exceções de incompetência, e todo esse palavrório do fórum. Denunciou o sistema eleitoral vigente, que descreveu como “puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de revólver e outras eloquentes manifestações eleitorais”.

Censurou o orgulho das mulheres de classe média suburbana, a exemplo da mãe de Cassi, que “tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos”. O orgulho de Salustiana vinha do fato de ter um irmão médico do Exército e de ter estudado no Colégio das Irmãs de Caridade. Não admitia que seu filho fosse um operário, porque sobrinho de um doutor. As irmãs de Cassi, Catarina e Irene, “sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque se julgavam prestes a ‘se formar’, a primeira em música e piano, pelo trampolineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pelo indigesta Escola Normal”.

Em Clara dos Anjos o escritor Lima Barreto descreve o subúrbio, que reputava como um “refúgio de infelizes”. Era o lugar dos “que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal”. Lima Barreto contrastava o subúrbio ao centro do Rio de Janeiro, que descrevia de um modo mais ameno e muito mais entusiástico.

Clara dos Anjos é um romance de crítica social, certamente marcado por rancores e referências da trajetória do autor. Lima Barreto não propõe lições de ordem moral ou de índole salvacionista. Simplesmente reproduz um ambiente cheio de insatisfações e frustrações, que bem conhecia, porque as vivia. Um mundo de protagonistas de pequenos expedientes e de funcionários públicos, onde tudo conspira contra o espírito.

Clara dos Anjos é um livro atual. Os problemas que relata são estruturais, típicos de uma sociedade que reluta em compreender seus desajustes e desacertos e que confunde democracia com o ritual do voto, bem-estar social com pleno acesso telemático, informação qualificada com mensagem de WhatsApp, estatística com calúnia, liberdade com escárnio e história com estória. Com o benefício do retrospecto, Clara dos Anjos é profecia de um triste visionário, a apropriar-me do título de uma obra-prima (de Lilia Moritz Schwarz) que trata da vida do reconhecidamente triste Lima Barreto.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

Categorias
Notícias

O papel do Direito econômico diante da crise da Covid-19

Na presente crise da pandemia da Covid-19, o papel de organização do processo econômico do direito econômico se torna evidentemente fundamental. Essa importância não se deve a uma situação que muitos equiparam, equivocadamente, à chamada “economia de guerra”. Afinal, a “economia de guerra” exige a mobilização total dos fatores de produção para o esforço de derrotar o inimigo.

No entanto, paradoxalmente, como já perceberam alguns autores, como James Meadway e Adam Tooze, a atual crise sanitária exige justamente a desmobilização de vários setores da economia, como vários segmentos da prestação de serviços, enquanto outros, como o setor industrial, por exemplo, devem ser não só mobilizados, como até ampliados. Tornou-se imprescindível ter que garantir a renda das pessoas, independentemente de estarem empregadas ou não, o abastecimento de produtos básicos e o funcionamento contínuo dos serviços essenciais exigindo a suspensão da lógica mercantil que vem dominando as relações econômicas e sociais nas últimas décadas. Como muito bem afirma Victor Marques, a mobilização dos poderes públicos trata, na atual conjuntura, “da necessidade de uma desmobilização massiva, racional e planejada”. O planejamento e a estruturação do processo econômico exigem, no entanto, uma atuação mais presente e intensa do Estado por meio do direito econômico.

Nos Estados Unidos, o Presidente Donald Trump, após proclamar Emergência Nacional em virtude da pandemia da Covid-19, baixou a Ordem Executiva 13.909 em 18 de março de 2020, atribuindo os poderes inscritos no Título I do Defense Production Act de 1950 ao Secretário de Saúde (Secretary of Health and Human Services) para que possa priorizar e alocar todos os recursos médicos e sanitários necessários para combater a pandemia nos Estados Unidos. Foram baixadas, ainda, a Ordem Executiva nº 13910, em 23 de março de 2020, atribuindo ao Secretário de Saúde autoridade para impedir a acumulação excessiva de produtos médico-hospitalares ou a sua aquisição visando a revenda acima dos preços de mercado, e a Ordem Executiva 13.911, de 27 de março de 2020, delegando a mesma autoridade e poderes também ao Secretário de Segurança Interna (Secretary of Homeland Security). O Defense Production Act de 1950 confere ao Presidente (ou às autoridades a quem ele delegar expressamente) uma série de poderes e competências para reestruturar e mobilizar a economia, dirigir e incentivar as indústrias norte-americanas no interesse da defesa nacional.

No Brasil, havia a previsão expressa na nossa legislação de inúmeros instrumentos, similares às medidas presentes no Defense Production Act de 1950, que possibilitariam ao Governo ser capaz de lidar com as situações de crise, como a da atual pandemia da Covid-19. Neste sentido, destaca-se a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, elaborada no período parlamentarista do Governo João Goulart, que tinha por objeto regular como o Governo poderia atuar para assegurar a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo. Tratava de medidas excepcionais para o caso de crises de abastecimento.

O Poder Público Federal tinha o poder de comprar, armazenar, distribuir e vender, entre outros produtos, medicamentos, artigos sanitários e artefatos industrializados de uso doméstico e produtos e materiais indispensáveis à produção daqueles bens (artigo 2º, I, ‘e’, ‘i’ e ‘k’ da Lei Delegada nº 4). Ficava o Poder Executivo autorizado a fixar preços e controlar o abastecimento, incluindo produção, transporte, armazenamento e produção, desapropriar ou requisitar bens e serviços necessários, sempre mediante indenização, e promover estímulos à produção (artigo 2º, II, III e IV da Lei Delegada 4), podendo, inclusive, adquirir bens e serviços no estrangeiro, caso necessário (artigo 2º, §1º da Lei Delegada 4). A Lei Delegada 4/1962 ainda autorizava aos órgãos responsáveis pelo controle do abastecimento a regulação e disciplina da produção, distribuição e consumo de matérias-primas (artigo 6º, II), a regulação e disciplina da circulação e distribuição dos bens, podendo proibir a circulação ou estabelecer prioridades para o transporte e armazenamento (artigo 6º, I), instituir o tabelamento de preços máximos (artigo 6º, III e IV), manter estoque de mercadorias (artigo 6º, VII), entre outras medidas a serem empregadas em caso de necessidade ou em atendimento ao interesse público.

Percebe-se, assim, que a Lei Delegada 4/1962 dotava o governo de instrumentos fundamentais, muitos deles inspirados na legislação norte-americana, para poder agir em caso de graves crises, como a pandemia atual. No entanto, por motivos puramente ideológicos, o Brasil ficou sem a possibilidade de empregar as medidas previstas pela Lei Delegada 4/1962, tendo em vista a sua revogação expressa pelo artigo 19, I da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, a chamada “Lei da Liberdade Econômica”.

Com a revogação da Lei Delegada 4/1962, perderam-se os parâmetros legais para a atuação do Estado em momentos de graves crises econômicas e sociais. As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas a serem tomadas no enfrentamento da emergência sanitária causada pela pandemia da Covid-19 não têm a mesma abrangência e não conferem a mesma possibilidade de atuação para o Estado, particularmente no que diz respeito à requisição de bens e serviços (artigo 3º, VII).

Como é fácil perceber, o papel do Estado e do direito econômico são essenciais para o combate à pandemia e aos efeitos negativos das crises econômica e sanitária. Mas o direito econômico, em um Estado capaz de planejar e reestruturar os fatores de produção, é ainda mais importante para a reorganização do processo produtivo brasileiro no período pós-crise. E isto é ainda mais fundamental se levarmos em consideração a afirmação do historiador alemão Reinhart Koselleck, de que uma das principais características do Estado moderno em seu processo de formação foi a de se arrogar o monopólio da dominação do futuro. Um Estado, como o atual Estado brasileiro, que abre mão de planejar o futuro, desta forma, abre mão de uma das características fundamentais da sua própria estatalidade.


James MEADWAY, “The Anti-Wartime Economy”, Tribune, 19 de março de 2020, <https://tribunemag.co.uk/2020/03/the-anti-wartime-economy> e Ezra KLEIN, “What Both the Left and the Right Get Wrong about the Coronavirus Economic Crisis: Financial Historian Adam Tooze on the Lessons Policymakers Need to Learn, and Fast”, Vox, 28 de março de 2020, <https://www.vox.com/2020/3/28/21195207/coronavirus-covid-19-financial-crisis-economy-depression-recession>.

Victor MARQUES, “Do Keynesianismo de Coronavírus à Antiguerra Permanente”, Autonomia Literária, 4 de abril de 2020, <https://autonomialiteraria.com.br/do-keynesianismo-de-coronavirus-a-antiguerra-permanente>.

Para uma análise do Defense Production Act de 1950, vide Gilberto BERCOVICI, “COVID-19, o Direito Econômico e o Complexo Industrial da Saúde” in Walfrido WARDE & Rafael VALIM (coords.), As Consequências da COVID-19 no Direito Brasileiro, São Paulo, Contracorrente, 2020, pp. 253-257.

Vide o percurso histórico em Alberto VENÂNCIO Filho, A Intervenção do Estado no Domínio Econômico: O Direito Público Econômico no Brasil, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1968, pp. 117-119, 225-239 e 364-365 e Maria Yedda Leite LINHARES & Francisco Carlos Teixeira da SILVA, História Política do Abastecimento (1918-1974), Brasília, Binagri Edições, 1979, pp. 89-117 e 156-173.

As competências normativas da Lei Delegada nº 4/1962 eram atribuídas exclusivamente à União, cabendo aos Estados, quando fosse o caso, a sua execução, conforme determinava expressamente seu artigo 10: “Compete à União dispor normativamente, sôbre as condições e oportunidade de uso dos podêres conferidos nesta lei, cabendo aos Estados a execução das normas baixadas e a fiscalização do seu cumprimento, sem prejuízo de idênticas atribuições fiscalizadoras reconhecidas à União.

§1º – A União exercerá suas atribuições através de ato do Poder Executivo ou por intermédio dos órgãos federais a que atribuir tais podêres.

 §2º – Na falta de instrumentos administrativos adequados, por parte dos Estados, a União encarregar-se-á dessa execução e fiscalização.

 §3º – No Distrito Federal e nos Territórios a União exercerá tôdas as atribuições para a aplicação desta lei”.

  Artigo 2º, I da Lei Delegada nº 4/1962: “A intervenção consistirá: I – na compra, armazenamento, distribuição e venda de: a) gêneros e produtos alimentícios; b) gado vacum, suíno, ovino e caprino, destinado ao abate; c) aves e pescado próprios para alimentação; d) tecidos e calçados de uso popular; e) medicamentos; f) Instrumentos e ferramentas de uso individual; g) máquinas, inclusive caminhões, “jipes”, tratores, conjuntos motomecanizados e peças sobressalentes, destinadas às atividades agropecuárias; h) arames, farpados e lisas, quando destinados a emprêgo nas atividades rurais; i) artigos sanitários e artefatos industrializados, de uso doméstico; j) cimento e laminados de ferro, destinados à construção de casas próprias, de tipo popular, e as benfeitorias rurais; k) produtos e materiais indispensáveis à produção de bens de consumo popular”.

Artigo 7º da Lei Delegada nº 4/1962: “Os preços dos bens desapropriados, quando objeto de tabelamento em vigor, serão pagos previamente em moeda corrente e não poderão ser arbitrados em valor superior ao do respectivo tabelamento.

Parágrafo único. Quando o bem desapropriado não fôr sujeito a prévio tabelamento, os preços serão arbitrados tendo em vista o custo médio nos locais de produção ou de venda” (redação alterada pelo Decreto Lei nº 422, de 20 de janeiro de 1969).

  Artigo 2º, II, III e IV da Lei Delegada nº 4/1962: “A intervenção consistirá: II – na fixação de preços e no contrôle do abastecimento, neste compreendidos a produção, transporte, armazenamento e comercialização; III – na desapropriação de bens, por interêsse social; ou na requisição de serviços, necessários à realização dos objetivos previstos nesta lei; IV – na promoção de estímulos, à produção”.

Artigo 2º, §1º da Lei Delegada nº 4/1962: “§1º – A aquisição far-se-á no País ou no estrangeiro, quando insuficiente produção nacional; a venda, onde verificar a escassez”.

  Artigo 6º da Lei Delegada nº 4/1962: “Para o contrôle do abastecimento de mercadorias ou serviços e fixação de preços, são os órgãos incumbidos da aplicação desta lei, autorizados a: I – regular e disciplinar, no território nacional a circulação e distribuição dos bens sujeitos ao regime desta lei, podendo, inclusive, proibir a sua movimentação, e ainda estabelecer prioridades para o transporte e armazenamento, sempre que o interêsse público o exigir; II – regular e disciplinar a produção, distribuição e consumo das matérias-primas, podendo requisitar meios de transporte e armazenamento; III – tabelar os preços máximos de mercadorias e serviços essenciais em relação aos revendedores; IV – tabelar os preços máximos e estabelecer condições de venda de mercadorias ou serviços, a fim de impedir lucros excessivos, inclusive diversões públicas populares; V – estabelecer o racionamento dos serviços essenciais e dos bens mencionados no art. 2º, inciso I, desta lei, em casos de guerra, calamidade ou necessidade pública; VI – assistir as cooperativas, ligadas à produção ou distribuição de gêneros alimentícios, na obtenção preferencial das mercadorias de que necessitem; VII – manter estoque de mercadorias; VIII – superintender e fiscalizar através de agentes federais, em todo o País, a execução das medidas adotadas e os serviços que estabelecer”.

Para uma análise das inúmeras inconstitucionalidades e decisões equivocadas da “Lei da Liberdade Econômica” vide Gilberto BERCOVICI, “Parecer sobre a Inconstitucionalidade da Medida Provisória da Liberdade Econômica (Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019)”, Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico nº 15, março/agosto de 2019, pp. 173-202 e Gilberto BERCOVICI, “As Inconstitucionalidades da ‘Lei da Liberdade Econômica’ (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019)” in Luís Felipe SALOMÃO; Ricardo Villas Bôas CUEVA & Ana FRAZÃO (coords.), Lei da Liberdade Econômica e seus Impactos no Direito Brasileiro, São Paulo, RT, 2020, pp. 123-152.

Vide, por todos, Leonardo CORREA, “O Dogmatismo do Livre Mercado, a Pandemia e Direito”, Portal Disparada, 20 de março de 2020, <https://portaldisparada.com.br/direito-e-judiciario/lei-delegada>.

Artigo 3º, VII da Lei nº 13.979/2020: Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

Reinhart KOSELLECK, “Vergangene Zukunft der frühen Neuzeit” in Vergangene Zukunft: Zur Semantik geschichtlicher Zeiten, 4ª ed, Frankfurt-am-Main, Suhrkamp, 2000, pp. 25-26.

 é advogado, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e professor nos programas de pós-graduação em Direito do Mackenzie e da Uninove.