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Arbítrio é tentador, conta com apoio de alguns e omissão de muitos

A presente coluna é escrita ainda sob a forte impressão causada pela nota de autoridades do Executivo com ameaças explicitas ao Judiciário e pela manifestação ocorrida neste fim de semana em Brasília, que culminou com o lançamento de foguetes contra o Supremo Tribunal Federal, iluminando faixas que pediam o fechamento do órgão e do Congresso .

Entre 1933 e 1939, quando um chanceler alemão chamado Adolf Hitler abandonou a Liga das Nações, descumpriu tratados de não armamento e açambarcou a Áustria e a Tchecoslováquia, um incomodado Churchill criticou a passividade dos demais líderes europeus: “Cada um espera que, alimentando o crocodilo, ele o comerá por último. Todos esperam que a tempestade passe antes que chegue a sua vez, mas eu receio — e receio muito — que a tempestade não passará. Assolará e rugirá com ainda mais ruído e de forma mais vasta.”

Em um piscar de olhos, Hitler estava na Polônia e na França, rugindo bem perto das praias inglesas e dando início a um dos maiores conflitos da história.

Vivemos em tempos distintos, mas as lógicas não parecem tão diferentes. Quanto o poder é ocupado por líderes incomodados com a democracia, com a imprensa, com decisões judiciais, o atalho do arbítrio é tentador, e sempre conta com o apoio de uma parcela da população e a inatividade de outra.

Os alemães brindavam a ascensão de Hitler porque ele iria “mudar tudo isso” (Albright, 49), uma frase familiar ao brasileiro de hoje. E aos poucos, ele e outros mandatários da época foram angariando nacos de poder e inibindo resistências, sem aparentes rupturas institucionais. Mussolini dizia que a forma mais sábia para acumular poder era fazê-lo como se depena uma galinha, pena a pena, para que cada grito seja ouvido em separado dos outros e o processo se mantenha o mais silencioso possível.

A crença que as instituições resistirão por si a seguidos ataques autocráticos é ilusória. Thomas Jefferson já alertava que o preço da liberdade é a eterna vigilância, de forma que a passividade não pode ser uma opção.

Não se pode comparar o Brasil de 2020 à Alemanha dos anos 30, muito menos seus líderes ou contextos. Mas a história pode se repetir como tragédia, como farsa, ou como uma triste comédia sem graça. E um sinal da tempestade reside na artilharia organizada contra o Judiciário. Desde a menção ao fechamento do STF por um cabo e um soldado, passando pela organização de milícias virtuais para agredir Ministros, até as notas e discursos de intimidação e o foguetório de ontem, há uma escalada de ameaças que vai além da mera retórica.

Emilia Viotti dizia que “a história do STF talvez possa ser contada por meio dos momentos em que o Poder Executivo investiu contra sua autonomia e liberdade de decisão”. Vive-se mais um capítulo dessa triste história que não revela nada além de uma falta de maturidade democrática, de uma propensão caudilhista em que o Poder Executivo não suporta contestação e brande suas armas sempre que contrariado.

É dever de todos aqueles que atuam na área jurídica, sejam advogados, juízes, promotores ou defensores públicos, perceber que ameaçar o STF e seus membros é colocar em xeque o Estado de Direito. Podemos discordar das decisões da Corte, combater seus fundamentos, e  até mesmo alterar a lei que lhes serve de base, mas incitar o ódio e usar da ameaça institucional extrapola qualquer limite.

Se a tempestade não vai passar tão cedo, que a enfrentemos. Chamemos às falas legais aqueles que usam a violência institucional como estratégia política, sejamos intransigentes na defesa do STF e da legalidade, para que não lamentemos mais adiante a impossibilidade até mesmo de manifestar nossas preocupações.

 é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

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Opinião: Necessidade de intervenção na economia em tempos de crise

No dia 31 de dezembro de 2019, foi identificado em Wuhan, na China, o primeiro caso de contágio pelo novo coronavírus (Covid-19 ou Corona Virus Disease). Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o surto da doença como uma pandemia. Desde então, o mundo tem convivido com medidas drásticas de isolamento social, crises nos sistemas de saúde e inúmeros reveses concernentes, especialmente, aos setores de economia e empresarial. Para Angela Merkel, chanceler alemã, trata-se do maior desafio vivenciado no país europeu desde a Segunda Guerra Mundial, fortemente dependente da “solidariedade comum”[1].

Ao Brasil o vírus chegou no final do mês de fevereiro de 2020, por intermédio de um cidadão brasileiro residente do Estado de São Paulo e com histórico de viagem para a região da Lombardia, na Itália[2], e, desde então, tem se alastrado pelos demais Estados da federação, exigindo a adoção de ações concretas de combate à pandemia.

Em um país como o Brasil, onde se tem uma economia de mercado, o Estado acaba renunciando ao seu protagonismo na seara econômica, para que as decisões sobre a melhor alocação de recursos fiquem a cargo das empresas e da população. Ocorre, todavia, que o Estado se faz presente como uma espécie de supervisor, intervindo, geralmente, para garantir uma convivência saudável entre as empresas, evitar que abusividades sejam cometidas em face da população e conceder alguns benefícios para incentivar determinados setores de produção.

Para Mankiw[3], “há dois motivos para que um governo intervenha na economia — promover a eficiência e promover a igualdade”. Isso se dá, principalmente, porque até mesmo o mais eficiente dos mercados não consegue “alocar os recursos de forma eficiente para maximizar o tamanho do bolo econômico”[4]. E essa dificuldade de melhor alocação dos recursos é conceituada, na Economia, como uma falha de mercado. Tal falha pode ser provocada por vários fatores, muitos deles alheios ao mercado em si, como o que está ocorrendo hoje: uma pandemia que levou vários governos, inclusive o Governo Federal, a propor a decretação de calamidade pública. Em momento de crise como esse, a atuação estatal se faz ainda mais relevante e necessária.

É certo que a intervenção estatal na Economia não pode se dar de maneira indiscriminada, devendo estar pautada “por alguma justificativa: o interesse coletivo ou segurança nacional”[5]. Nota-se que ambas as situações que legitimam a intervenção possuem conceitos indeterminados, ou seja, “o componente político estará sempre presente”[6].

O momento por que passam o Brasil e o mundo se enquadra com perfeição nesse conceito: o combate à pandemia é — ou pelo menos deveria ser — o “interesse geral da sociedade”. Logo, tem-se configurada, sem maior esforço intelectivo, ao menos uma das situações que legitimam a intervenção do Estado na Economia.

Em situações tais, necessária se faz a intervenção do Estado para garantir a ordem econômica, o que pode se dar de várias formas, como, por exemplo, criando-se um benefício para garantir o mínimo existencial para famílias de baixa renda ou instituindo programas que atenuem os impactos econômicos da pandemia nas empresas. Nota-se que, seja para a família paupérrima ou para a grande empresa, num contexto de crise, como este que o mundo atravessa, a presença do Estado se faz essencial para a garantia do bem-estar da população e da economia como um todo.

E é exatamente isso que vem se observando nos últimos dias, como, por exemplo, com a aprovação, no Senado Federal, do Projeto de Lei 1.282/2020, que institui o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), que tem como objetivo a oferta de crédito aos microempresários e aos empresários de pequeno porte, com recursos oriundos do Tesouro Nacional. Ou a Medida Provisória 944/2020, que cria o Programa Emergencial de Suporte a Empregos, que abre uma linha de crédito especial de R$ 34 bilhões para financiar até dois meses da folha salarial de empresas em geral, exceto sociedades de crédito, e cooperativas.

Também nos Estados da federação vêm sendo publicadas normas específicas de cunho social, como medidas de enfrentamento à crise oriunda da pandemia do coronavírus. No Estado do Ceará, por exemplo, o governo decretou o fechamento de comércio, templos, igrejas, restaurantes, museus, barracas de praia e outros locais de atividade não essencial que permitam a aglomeração de pessoas[7]. Por sua vez, a Lei Estadual 17.196/2020 autorizou o Poder Executivo cearense a pagar, durante o período emergencial de enfrentamento ao coronavírus, as contas de água e esgoto e de energia de consumidores de baixa renda que residam no Ceará.

Assumiu o Estado (lato sensu) o protagonismo direto em atividades que, normalmente, são regidas por entes outros. A situação pandêmica que se instalou no Brasil e no mundo, com suas consequências diversas, obrigou o Poder Público a tomar medidas de maior auxílio à população, principalmente àquela mais carente, como forma de enfrentamento direto ao vírus e a fim de reduzir as estatísticas até então negativas.

O pagamento, pelo Estado, das faturas de água e esgoto e de energia elétrica consumidos pela parcela menos favorecida reverbera o que vem sendo dito por alguns a respeito da indispensabilidade do Estado. Há algumas semanas, defendia-se duramente, com algum respaldo no discurso do Presidente da República, a não intervenção do Estado nos setores econômicos, como se incompetente ou inútil fosse o Estado. Agora emerge a necessidade de que o Poder Público auxilie direta e precisamente no enfrentamento à pandemia — a situação vulnerável em que se encontram todas as pessoas e todos os setores requer o intervencionismo estatal, admitido até mesmo por aqueles que pouco tempo atrás o repudiavam.

O que se vê é que, especialmente em momentos de crise, a intervenção estatal não somente se faz necessária, mas, sim, essencial para a manutenção da ordem econômica. Ou seja, desde a criação de um auxílio para as pessoas de baixa renda até a abertura de linhas de crédito de bilhões de reais, para socorrer as empresas, a “mão do Estado” se faz presente para amparar a sociedade.

Objetivamente, dizem Bercovici, Clark, Corrêa e Nascimento[8] que, em tempos de coronavírus, “é preciso o Estado controlar os preços e punir aqueles que abusam do poder econômico em tempos de pandemia; nacionalizar empresas estratégicas em risco de falência, bem como impedir/restringir a abertura do comercio, redefinir as linhas de produção das indústrias (fabricar respiradores hospitalares em substituição dos bens anteriores) a fim de evitar a efeitos mais gravosos decorrentes da pandemia e ainda fixar uma renda digna para os cidadãos permanecerem em suas residências”. E concluem: o Estado é indispensável à manutenção [e, diga-se, ao soerguimento] do sistema econômico produtivo.

Volta-se, finalmente, à lição de Angela Merkel: somente a solidariedade comum, a englobar pessoas, empresas e, de modo enfático, o próprio Estado, é capaz de gerar um eficaz enfrentamento à pandemia da Covid-19. Sem a intervenção estatal, corre-se o risco de se avolumarem os impactos sociais causados pelo vírus e de não se concretizar o desenvolvimento da nação. Mesmo para o setor produtivo, da ação do Estado dependerá a retomada de diversos setores da relação econômica. Trata-se do que já advertira Rudolf Hilferding, Ministro das Finanças da República de Weimar, também em meio à instabilidade do período entre as duas guerras mundiais e a consequente grave crise econômica: a organização do capitalismo, com o compromisso mínimo civilizatório entre capital e trabalho. Como todo momento de confusão é também momento de reconstrução, o Brasil está diante de uma histórica oportunidade de repactuar o compromisso democrático e social firmado em 1988.


1 EXAME. Merkel: Coronavírus é o maior desafio da Alemanha desde 2ª Guerra Mundial. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/mundo/merkel-coronavirus-e-o-maior-desafio-da-alemanha-desde-2a-guerra-mundial/>. Acesso em: 3 abr. 2020.

2 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Coronavírus. Brasil confirma primeiro caso da doença. Disponível em: < https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus>. Acesso em: 3 abr. 2020.

3 MANKIW, N. Gregory. Introdução à Economia. 8. ed. São Paulo: Cengage, 2020. Tradução de: Allan Vidigal Hastings, Elisete Paes e Lima, Ez2 Translate. p. 9-10.

4 Ibid., p. 9.

5 BENSOUSSAN, Fabio Guimarães; GOUVÊA, Marcus de Freitas. Manual de Direito Econômico. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 168.

6 Ibid., p. 171.

7 Decreto Estadual nº 33.519, de 19 de março de 2020.

8 BERCOVICI, Gilberto; CLARK, Giovani; CORRÊA, Leonardo A., NASCIMENTO, Samuel P. O indispensável Estado: Uma das lições do coronavírus. Disponível em: <https://portaldisparada.com.br/economia-e-subdesenvolvimento/indispensavel-estado-coronavirus/>. Acesso em: 3 abr. 2020.

 é mestre em Direito Constitucional (Universidade de Fortaleza) e advogada do Braga Lincoln Advogados.

 é mestre em Direito e Gestão de Conflitos (Universidade de Fortaleza), advogado do Torres & Teodoro Advogados e Conselheiro da Agência Reguladora do Estado do Ceará (ARCE).