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Superendividados devem ser protegidos com aprovação de PL

O superendividamento dos consumidores tem sido objeto de tratamento específico em  vários países do mundo, sobressaindo dois sistemas que influenciaram os demais por terem sido os primeiros que disciplinaram a matéria: o norte-americano e o francês[1].

Não constitui um recente tema no âmbito das nações mais desenvolvidas economicamente, eis que, desde a década de 70, foram sendo editados diplomas normativos acerca da problemática. Na França, a Lei Scrivener, de 10 de janeiro de 1978, dispôs sobre a proteção dos consumidores no setor de certas operações de crédito[2].

O altíssimo grau de endividamento dos consumidores norte-americanos conduziu, em 1978, à aprovação do Bankruptcy Reform Act (Lei de Falência). A preocupação do governo francês com esta situação propiciou a edição das leis de 23 de junho de 1989 e de 31 de dezembro de 1989, denominadas de Leis Neiertz[3].  Nessa senda, a lei de 29 de julho de 1998 dispôs tanto do superendividamento na sua forma ativa quanto na sua modalidade passiva[4].   

No Brasil, a Lei Federal n.º 8.078/90 não englobou a matéria e, após quase vinte e dois anos de sua vigência, o Projeto de Lei n.º 283/12 trouxe, à lume, a necessidade da sua regulamentação. A despeito de ter sido convertido, em 2015, no PL n.º 3.515, ainda permanece sem a devida e necessária aprovação mesmo no caótico cenário pandêmico atual. O termo superendividamento corresponde a um neologismo constituído a partir da palavra sur, que advém do latim super e que indica acumulação, excesso e sobrecarga, e endividamento, cujo efeito principal é a existência de carga debitória que não se consegue suportar diante da renda existente e que compromete a sobrevivência do sujeito[5].

Nos Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, denomina-se over-indebtedness[6], enquanto na Europa, a nomenclatura varia de acordo com o local, tendo Portugal o designado de sobre-endividamento, falência ou insolvência dos consumidores[7]; na França e Bélgica, utiliza-se o termo surendettement; na Espanha e demais países hispânicos, chama-se sobreendeudamento; e na Alemanha, tem-se o uso de Überschuldung[8].

O superendividamento constitui problema de natureza complexa que pode ser identificado nas diversas partes do mundo e o seu conceito dependerá da estrutura legislativa existente ou dos padrões normativos aplicáveis, quando se tratam de países que integram o sistema common law.

Vislumbra-se, porém, um conceito geral extraído dos sistemas norte-americano e europeu e que fora acolhido pelo parágrafo 1o do art. 104-A do PL n.º 3.515/15, segundo o qual corresponde à impossibilidade manifesta do consumidor, pessoa física, de boa-fé, de pagar o conjunto das suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas. O parágrafo 2º exclui do processo de repactuação as dívidas de caráter alimentar, fiscais e parafiscais e as oriundas de contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar o pagamento[9]. No art. 54-A do PL, há menção direta e expressa aos princípios da boa-fé, da função social do crédito e do respeito à dignidade da pessoa humana[10].

A configuração do superendividamento pressupõe uma situação não meramente incidental ou transitória, mas de caráter permanente, a despeito dos arts. 54-A e 104-A não terem predito expressamente[11]. O superendividamento, segundo Paisant, tem gerado situações nefastas que não se pode deixar prosperar, constituindo-se “fonte de tensões no seio da célula familiar que muitas vezes acarretam um divórcio, agravando a situação de endividamento”. É um problema que pode conduzir as pessoas superendividadas “a evitar despesas de tratamentos, mesmo essenciais, ou ainda a negligenciar a educação dos filhos”, podendo comprometer a moradia, dando-se “um passo na direção da exclusão social”. Ele é fonte “de isolamento, de marginalização”, contribuindo para “o aniquilamento social do indivíduo”[12].

Os estudos doutrinários norte-americanos e europeus acerca do superendividamento têm o classificado em passivo e ativo a depender da forma como as dívidas vão se formando acima do limite do razoável. O superendividamento passivo é consequência de uma conjuntura em que o consumidor não contribuiu diretamente para que florescesse, ocorrendo situações alheias à sua vontade ou circunstâncias externas[13], como, verbi gratia, desemprego, acometimento por doença, falecimento de ente familiar, etc – é o que Thomas Wilhelmsson denomina de força social maior[14].

No superendividamento ativo, o consumidor termina por adquirir produtos ou contratar serviços de modo desarrazoado e desequilibrado, de forma imprudente, sem analisar responsavelmente a sua possibilidade financeira e os débitos que está constituindo. Nessas hipóteses, se agir de má-fé, não terá a proteção assegurada, somente obtendo-a quando não tiver o interesse escuso de se livrar irresponsavelmente das dívidas, ou seja, estando imbuído pela boa-fé.  Para Iain Ramsay, a distinção entre superendividamento ativo e passivo é muito difícil de ser visualizada[15].

O consumismo à base do crédito foi-se difundindo de tal forma dos Estados Unidos para a Europa, que, segundo Lendol Calder, o fenômeno alastrou-se exigindo que os cidadãos se comportassem como sujeitos obedientes à disciplina do trabalho e como consumidores livres para terem sonhos e desejos ilimitados[16]. Além da França, Canadá, Inglaterra, Bélgica, Finlândia, Dinamarca, Noruega e Alemanha, outros países instituíram mecanismos para a prevenção e o tratamento dos consumidores superendividados.  No Canadá, a reforma de 1997 do Bankruptcy and Insolvency Act (BIA) teve como meta principal propiciar meios judiciais de incentivar os devedores a se reestruturarem financeiramente e a quitarem os débitos existentes[17].

Na Inglaterra, a lei de The Enterprise Bil tratou da temática, disciplinando a prevenção e o tratamento do superendividamento dos cidadãos[18]. A lei belga de 12-6-1991 estabeleceu um procedimento especial de suspensão das obrigações do devedor quando envolve créditos ao consumo, autorizando o sujeito em franco desequilíbrio financeiro a pedir ao juiz a aplicação de alguma facilidade de pagamento com esteio no seu art. 38[19].  

Em 1993, a Finlândia editou ato normativo sobre o ajuste de débitos individuais (act concerning the adjustment of debts of private individuals) e, em fevereiro de 1997, a lei foi revista com o escopo de restringir mais o acesso ao procedimento contemplado originariamente. Em 1996, a Austrália começou a tratar do debt agreements[20] e a Noruega  também deu início a um procedimento amigável (voluntary debt settlements) conduzido por organizações sociais locais sob a supervisão do município[21].

A Corte Federal da Alemanha, em interessante decisão, pronunciou-se no sentido de que a liberdade contratual não poderia limitar ou eliminar o controle das cláusulas abusivas em um contrato bancário com espeque na consideração do direito fundamental de desenvolvimento da personalidade (art. 2, I, da Grundgesetz).  As cortes civis deveriam realizar a concreção ou a subsunção do que fosse contrário às cláusulas gerais de respeito aos bons costumes e à boa-fé, de acordo, respectivamente, com os parágrafos 138 e 242 do BGB. O legislador alemão, recentemente, aprovou diploma normativo para controlar os efeitos jurídicos da COVID-19 e zelar pela situação dos que se encontram em alarmante estado de desequilíbrio financeiro[22].    

O PL n.º 3.515/15 contempla a crucial modernização do microssistema consumerista, primando pelo fomento e o desenvolvimento de ações visando à educação financeira dos indivíduos e pela implementação de mecanismos de prevenção e tratamento do superendividamento. Ressalta-se que a proposta visa à criação de noveis instrumentos de caráter extrajudicial e judicial para o tratamento do problema mediante a estruturação de núcleos de conciliação e mediação de conflitos. Consagrar-se-á o direito básico dos destinatários finais à garantia de práticas de crédito responsável, conscientizando-os para se evitar e combater o preocupante fenômeno que se alastra, assegurando-se a revisão e a repactuação da dívida, com o fito de preservar o mínimo necessário para a sobrevivência digna.

A proteção contratual será reforçada pelos deveres colaterais provenientes da boa-fé objetiva, detalhando-se o direito à informação no fornecimento de crédito e na venda a prazo. O Brasil não pode continuar alheio ao direito comparado e a mais de 30 milhões de indivíduos superendividados, urgindo a aprovação da aludida proposta legislativa.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] FERRIER, Les dispositions d’ordre públic visant à préserver la réflexion des contratants. Recueil Dalloz, Paris, Dalloz, Chronique, p. 177-188, 1980,  p. 177. A Lei da Informação e Liberdades de 06 de janeiro de 1978 trata de listas cuja consulta é ligada à concessão e a recuperação do crédito ao consumidor.

[2] Em 1975, Jean Calais-Auloy publica o artigo denominado de “Les cinq réformes qui rendraient le crédit moins dangereux pour les consommateurs”, revelando preocupação com a situação dos endividados dos países europeus. CALAIS-AULOY, Jean. Les cinq réformes qui rendraient le crédit moins dangereux pour les consommateurs. Recueil Dalloz, Chron., 1975, p. 20 e ss. 

[4] KHAYAT, Danielle. Lei droit du surendettement des particuliers. Paris: LGDJ, 1997, p. 12.  

[11] MARQUES, Manuel Leitão et al. O endividamento dos consumidores. Lisboa: Almedina, 2000, p. 2.

[15] MARQUES, Cláudia Lima. Les contrats de crédit dans la législation brésilienne de protection du consommateur. In: RAMSAY, Iain (ed.). Consumer law in the global economy. Aldershot: Ashgate-Dartmouth, 1997, p. 321 e ss.

[19] DOMONT-NAERT, Françoise. Consommateurs défavorisés: credit et endettement. Bruxelas: Story Scientia, 1992, p. 222. 

[22] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Alemanha aprova legislação para controlar efeitos jurídicos da Covid-19, Revista Consultor Jurídico, Coluna Direito Comparado, 25 de março de 2020.

 é promotora de Justiça do Consumidor do MP-BA, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Direito pela mesma instituição.

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Alan Gallo: No longo prazo, estaremos todos mortos?

É bem provável que a frase título do presente artigo seja uma das mais famosas no mundo da economia. Escrita pelo economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946) em seu livro “Tratado sobre a Reforma Monetária” (A Treatise on Monetary Reform), de 1923, ela resume bem o coração da teoria econômica conhecida atualmente como keynesianismo.

Em termos técnicos, muito pode ser dito sobre a teoria econômica keynesiana, no entanto, para o propósito do presente artigo e também para fugirmos do economês, basta dizer que Keynes (ao contrário dos economistas neoclássicos) não acreditava no ajuste automático entre produção e procura, rendimento e demanda ao nível do pleno uso de recursos, sendo necessário, portanto, que o Estado intervenha na economia para sustentar e regularizar a atividade econômica sempre que houver um descompasso na economia que leve a um equilíbrio abaixo do pleno emprego dos recursos.

O Estado pode intervir na economia de diversas formas, mas uma das mais conhecidas se dá por meio da política de expansão monetária, ou seja, pela impressão de mais dinheiro.

Da perspectiva do governo, à primeira vista, pode parecer que em tempos de crise como a que estamos vivendo agora em decorrência da Covid-19, a impressão de mais dinheiro é a alternativa mais rápida e mais altruísta para lidar com os efeitos avassaladores da crise. No entanto, é preciso entender que como qualquer outro bem na economia, o dinheiro também está sujeito às leis da oferta e da demanda. Em termos mais práticos, quanto maior a oferta de determinado bem, menos ele valerá. Isso também se aplica ao dinheiro.

Quando o Estado resolve intervir na economia por meio de uma política de expansão da base monetária (impressão de dinheiro), a consequência a médio-longo prazo é invariavelmente a inflação. Como existe mais dinheiro circulando no sistema, os preços da maior parte dos bens disponíveis na economia também sobem. Essa é a chamada inflação.

De modo geral, os economistas costumam medir a inflação pelo Índice de Preços ao Consumidor, o que é o mesmo que dizer que por meio da variação dos preços experimentada pelo consumidor ao longo do tempo é possível auferir qual é a inflação.

Apenas para se ter uma ideia, já é algo bem documentado nos livros-texto de economia que nos Estados Unidos nos últimos 70 anos os preços subiram em média 4% ao ano. Somente naquele país essa inflação de 4% ao ano levou a um aumento de 16 vezes no nível geral de preços. No Brasil, por sua vez, com sua tradição de governos interventores na economia, somente nos anos de 1999 a 2019 a inflação oficial acumulada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) somou 240%.

As consequências de médio-longo prazo da impressão de mais dinheiro são bem conhecidas hoje e já eram conhecidas também na época de Keynes. Prova disso é a frase citada logo no início do texto, onde o economista inglês afirma que “no longo prazo estaremos todos mortos”. A verdade é que, devido à sua abordagem de curto prazo e em termos de circuito, Keynes nunca se preocupou com o longo prazo, mas somente com os mecanismos que estão na origem do subemprego e com as políticas suscetíveis de evitar o desemprego no âmbito de uma sociedade capitalista.

Trazendo o problema para o contexto brasileiro mais próximo, no último dia 8 de abril o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, em entrevista para a britânica BBC, defendeu a impressão de moeda ao dizer: “O Banco Central tem grande espaço de expandir a base monetária, ou seja, imprimir dinheiro, na linguagem mais popular, e, com isso, recompor a economia. Não há risco nenhum de inflação nessa situação”.

A competência técnica do atual secretário da Fazenda e do Planejamento de São Paulo é indiscutível, no entanto, uma variável importante não foi levada em conta por ele em sua proposição. É, sim, verdade que, no curto prazo, a expansão da base monetária não trará inflação, especialmente em se tratando de um período de contração da economia. No entanto, tão logo a economia retome suas atividades e o dinheiro volte a ter seu fluxo normal dentro do sistema, as consequências serão inevitáveis: aumento da inflação, perda do poder de compra e diminuição real do valor dos salários (ainda que não nominalmente).

Num contexto de crise, Meirelles parece ceder aos encantos da teoria keynesiana, muito embora seja classificado como um liberal por muitos. É inegável que o clamor por respostas imediatas e de curto prazo do Estado é muito forte, sendo necessário certo sacrifício de reputação para não ceder a elas. Por vezes é preciso ficar do “lado mal” da história temporariamente para não ceder ao populismo, um preço que nem todos estão dispostos a pagar.

Se por um lado a opção keynesiana é, sim, uma das políticas econômicas disponíveis na mesa, é preciso que a população entenda os efeitos não apenas de curto, mas também de longo prazo. Injetar dinheiro hoje na economia trará consequência nefastas daqui a um tempo, principalmente para a população mais carente — última a receber o dinheiro injetado.

Tal qual tudo na vida, escolhas de políticas econômicas têm consequências e não é possível escapar delas. Por isso, é fundamental que o cidadão compreenda as causas e consequências do jogo político e econômico para que se emancipe e possa participar conscientemente do momento social em que vivemos.

Ainda que no longo prazo todos estejamos mortos, como afirmou Keynes, ainda sim somos responsáveis pelo tipo de sociedade que construímos e por aquilo que legamos à próxima geração. Em tempos de pandemia, valores como fraternidade, altruísmo e empatia também deveriam se estender aos que virão depois de nós.

Allan Gallo Antonio é formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrando em Economia e Mercados pela mesma instituição e pesquisador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica.