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Leal, Cotia e Araújo: Análise custo-benefício e proporcionalidade

Ao lidar com a pandemia da Covid-19, que tipos de restrições o poder público deve impor à atividade econômica, ao lazer e à liberdade de locomoção? Em texto recentemente publicado [1], Cass Sunstein constatou que o presidente, governadores e prefeitos têm realizado, nos Estados Unidos, uma espécie de análise custo-benefício (ACB) intuitiva ao contrapor o valor do aumento da atividade econômica à ameaça à saúde pública, para decidirem sobre as restrições. Reguladores e técnicos do Poder Executivo, por sua vez, menos inclinados a ceder às influências de intuições não informadas, mostram-se mais rigorosos na análise dos custos e benefícios.

As dificuldades que a pandemia apresenta para uma criteriosa ACB, porém, têm colocado à prova esses esforços tradicionais de sustentação de decisões administrativas a partir de consensos entre especialistas.

Diante de tanta complexidade e incerteza, que tipos de restrições o poder público pode impor? Em nossa realidade, o controle de medidas restritivas à liberdade editadas pelo poder público destinadas à proteção da vida e da saúde pode se orientar, para além de uma estrita ACB, pelo exame de proporcionalidade e das suas etapas da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Talvez se possa afirmar até mesmo que a proporcionalidade é, no atual contexto, mais adequada àquele fim.

De fato, a ACB é o método mais conhecido para a análise de custos e benefícios associados a diferentes alternativas decisórias explicitadas em análises de impacto regulatório (AIR). De acordo com o estágio atual de sua metodologia, realizar uma AIR envolve percorrer um conjunto extenso de etapas analíticas [2].

Os guias oficiais que orientam a realização de AIRs costumam indicar uma preferência pela monetização de custos e benefícios, tarefa para a qual a ACB tem sido a candidata mais utilizada. Quando isso não é possível, incentiva-se que, pelo menos, os efeitos associados às alternativas decisórias sejam quantificados (por exemplo, identificando-se números absolutos de indivíduos afetados, quando não há dados para que a dimensão monetária de determinado efeito seja mensurada) [3]. Aqui, reside a dificuldade no uso da ACB na presente conjuntura.

No atual cenário de incerteza profunda, em que a ciência ainda não compreende suficientemente bem o coronavírus, e no qual seus efeitos têm sido tão imprevisíveis e vastos que sequer se é capaz de prever os desdobramentos que podem advir, o cumprimento das etapas analíticas previstas para a AIR pode se revelar problemático mais ainda se considerarmos a sua preferência por, via ACB, monetizar ou quantificar efeitos de alternativas decisórias possíveis.

É por isso que pode ser desejável condicionar o controle de medidas estatais a um nível mínimo, quer dizer, a um juízo destinado não a obter a melhor resposta possível, tendo em vista que não dispomos de condições analíticas para realizar essa escolha em um primeiro momento, mas, sim, a garantir um mínimo de respeito aos valores mais relevantes que estão envolvidos.

Dessa forma, garante-se que a decisão siga critérios de racionalidade e que ônus evidentemente excessivos não sejam impostos a direitos relevantes que, no limite, poderiam levar a uma inação. A tarefa de otimização dessas escolhas, por outro lado, passa a ser realizada em um segundo momento, à medida que novas informações surgem, tanto da produção científica, quanto da própria experiência institucional com as escolhas que estão sendo tomadas. Ou seja, o processo de implementação das políticas públicas passa a direcionar-se ao aprendizado e à reavaliação gradual com base em experiências acumuladas (análises ex post), e não somente no planejamento (análises ex ante). Mas para que isso seja possível, é necessário que as escolhas estejam sempre orientadas por uma metodologia de análise que seja ao mesmo tempo flexível o suficiente para permitir que escolhas razoáveis sejam alcançadas em um cenário de profunda incerteza, e rigorosa o bastante para evitar arbítrios e garantir que as escolhas estejam sempre pautadas pelas melhores evidências disponíveis.

O argumento central deste texto é o de que, embora não seja um instrumento infalível ou impermeável a eventuais desvios, a proporcionalidade se apresenta como instrumento mais propício a cumprir esse papel durante a pandemia.

Até mesmo porque, se, em situações de normalidade, não há muita parcimônia em se organizarem questões jurídicas em termos de colisão de princípios, o cenário atual parece tornar inescapável esse tipo de formatação. Por isso, a pandemia se coloca como espécie de prova de fogo para a proporcionalidade. Reduzida ao vazio artifício retórico que se expressa pela mera invocação, sem qualquer rigor analítico, certamente a proporcionalidade só abre espaço para arbítrio. Em sua melhor versão, porém, segue ainda incerto que papel ela pode desempenhar para justificar restrições à liberdade no atual contexto. Apesar de espaços de incerteza, quatro vantagens poderiam justificar a sua maior utilidade para conduzir processos decisórios relativamente a outros candidatos.

Ligada ao presente cenário, em que se invoca a necessidade de escolhas públicas fundarem-se na ciência, uma das vantagens que o exame apresenta é a permeabilidade a juízos empíricos. No manejo da proporcionalidade em sentido estrito, a lei epistêmica do sopesamento formulada por Alexy (“quanto mais pesar a restrição a um direito fundamental, maior deve ser a certeza de suas premissas subjacentes” [4]) exige que se analise a confiabilidade das premissas empíricas que sustentam a realização e a não realização dos princípios imbricados. Nesse espaço, são os critérios fixados pela ciência que irão guiar a atribuição dos predicados sugeridos pela teoria [5] para a confiabilidade de tais premissas. Além disso, mesmo as etapas anteriores adequação e necessidade poderão exigir conhecimentos não jurídicos, considerando as correlações que precisam ser encaradas.

A exigência de comparação de medidas e de seus efeitos é outra característica do exame aderente às preocupações que recaem sobre atos estatais destinados a lidar com a pandemia. Na análise de necessidade da medida estatal, é preciso indagar se há medidas alternativas capazes de promover, ao menos com a mesma intensidade, o objetivo que a medida estatal pretende fomentar, mas de restringir, com menor intensidade, o princípio por ela afetado. O raciocínio, aparentemente simples, pode esconder a complexidade da resposta a estas questões quando, para tanto, juízos empíricos forem necessários para a devida comparação.

Em terceiro lugar, a proporcionalidade distribui o ônus de prova e de argumentação. A proporcionalidade encaminha a argumentação ao determinar o que precisa ser justificado e por quem. É dessa organização que se extrai grande parte da sua pretensão de racionalidade.

Há, finalmente, um traço do exame que lhe permite endereçar discussões jurídicas a respeito de medidas estatais de combate à Covid-19: a possibilidade de incorporação de múltiplos objetivos constitucionais imbricados no caso concreto. Saúde, vida, livre exercício de atividade econômica e liberdade de locomoção são exemplos de direitos fundamentais que têm sido colocados frente a frente por atos estatais, e que podem ser acomodados em um exame de proporcionalidade. Embora um modelo de ponderação multidimensional não esteja completamente desenvolvido, os roteiros fornecidos pela proporcionalidade podem auxiliar na construção das cadeias complexas de argumentação que darão suporte à decisão.

A proporcionalidade, sem dúvida, não é solução para os dilemas epistêmicos e valorativos colocados pela pandemia. Ela não é um algoritmo de decisão que permitirá a incorporação do melhor conhecimento científico e a harmonização de múltiplos objetivos até a decisão correta. Nesse aspecto, porém, antes de se afastar de outros candidatos que almejam conduzir a argumentação na solução de casos difíceis, ela se aproxima deles. Ela não é infalível, assim como a ACB, o apelo à precaução ou qualquer outro método de decisão. Aplicada adequadamente, porém, ela pode ser tão útil ou mais — do que os seus rivais.

Se a pandemia, por um lado, pode escancarar os limites da proporcionalidade para determinar respostas para questões jurídicas altamente complexas, ela, por outro, reforça ainda mais a necessidade de uma aplicação rigorosa das suas recomendações, pois nisso pode estar o caminho da racionalidade possível em meio a tanta incerteza.

Fernando Leal é professor da FGV Direito Rio.

Pedro Pamplona Cotia é advogado e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

Thiago Araújo é procurador do Estado do Rio de Janeiro, advogado e professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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Opinião: A perícia no caso Bolsonaro x Moro

A controvérsia que mobilizou o país merece uma análise técnico‑pericial criteriosa tanto das mensagens contidas no celular de Sérgio Moro quanto das gravações audiovisuais da reunião ministerial de 22 de abril. Afinal, a eventual comprovação dos crimes atribuídos ao presidente da República impacta diretamente nos rumos da nação.

Ocorre que o trabalho pericial até aqui desempenhado não corresponde ao protagonismo esperado na elucidação das graves imputações de ambos os lados, na medida em que há flagrante atropelo da lei. De saída, nunca existiu o necessário controle da cadeia de custódia da prova, assim definido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) como “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte” (artigo 158-A). Lamentável. Preservar a integridade do objeto de prova é fundamental para garantir a idoneidade da perícia.

Nesse sentido, tanto o equipamento que contiver a gravação audiovisual relativa à reunião ministerial havida em abril quanto o celular de Moro exigem os mesmos cuidados na coleta, preservação da integridade dos dados, extração de informações patentes e recuperação de dados eventualmente “apagados”, por intermédio de ferramentas distintas para cada qual dos exames.

Há informação de que o arquivo audiovisual foi fornecido por meio de um HD externo, o que certamente indica que não se trata do arquivo original. Se isso for verdade, trata-se de grave equívoco. O correto, necessário e imprescindível é que esse arquivo fosse obtido mediante extração forense (do sistema de gravação que o gerou, ou dos arquivos originais), gerando-se a cópia e criando-se o hashcode, assegurando a integralidade e a integridade do arquivo, fornecendo-se cópia do auto de coleta, no qual deve ser consignado o respectivo código gerado (hash). Isso dificultaria, inclusive, que ocorresse edição do arquivo, pois, se ocorreu, e se foi bem feita, será muito difícil constatar.

Nesse particular, consta da investigação que o Laudo nº 1.242/2020 focou na transcrição dos áudios sem que tenha sido concluída a averiguação preliminar sobre a eventual edição do material; restou consignado que tal análise será objeto de laudo diverso.

Cabe o alerta, entretanto, de que o segundo exame não deve ser relegado; sabidamente, o arquivo de vídeo coletado não possui time stamp (marcador de data e horário). Essa peculiaridade, sob a ótica pericial, exige que seja percorrida e descartada a hipótese de eventual supressão de trecho(s). Aliás, bastaria que tal supressão tivesse sido conduzida por alguém tecnicamente capacitado, fazendo-o de maneira a restabelecer os atributos originais do arquivo, para mascarar a eventual eliminação.

No caso do celular de Moro, o procedimento de coleta também se mostrou inadequado, na medida em que se permitiu ao próprio investigado que selecionasse os conteúdos que poderiam servir à investigação, a despeito de outras conversas que pudessem interessar à Justiça, inclusive aquelas eventualmente apagadas. Por sorte, mesmo arquivos apagados podem ser recuperados, uma vez que meros fragmentos podem ser reconstruídos ou “esculpidos” (carving files). Vale destacar ainda que, tecnicamente, recuperar arquivo apagado é muito mais fácil do que se comprovar que houve edição, pois há ferramentas muito eficazes para encobrir edições e modificações de certos atributos de arquivos.

Não cabe ao investigado decidir o que interessa à investigação
Nesse contexto, marcante contradição no comportamento do ex‑ministro merece destaque. Em sua oitiva, Moro disponibilizou o aparelho celular tão-somente “para extração das mensagens trocadas via WhatsApp com Bolsonaro e Carla Zambelli”. E por que não as demais mensagens? Será mesmo que a controvérsia se resume a poucos diálogos? Ora, desde quando o investigado decide aquilo que é do interesse da investigação? Na verdade, nunca decidiu. Bem por isso, quando chamado a se manifestar sobre a conveniência de entrega parcial, pelo Executivo, dos vídeos da reunião, Moro pontuou que escolher trechos “que são ou não importantes para investigação é tarefa que não pode ficar a cargo exclusivo do investigado”, porquanto isso não garantiria a integridade do elemento de prova fornecido. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço…

A cereja do bolo no tocante à inconsistência pericial reside no fato de que o Pacote Anticrime, de iniciativa do então ministro da Justiça Sérgio Moro, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, disciplinou rigorosamente a questão relativa à cadeia de custódia da prova, preconizando tudo aquilo que é obrigatório e não está sendo feito, ironicamente, no caso concreto.

Ocorre que o STF sempre destacou a relevância pericial para o fiel esclarecimento dos fatos. Isso porque o decano e relator do inquérito em andamento, ministro Celso de Mello, ao requisitar as gravações, consignou expressamente que “as autoridades destinatárias de tais ofícios deverão preservar a integridade do conteúdo de referida gravação ambiental (com sinais de áudio e vídeo), em ordem a impedir que os elementos nela contidos possam ser alterados, modificados ou, até mesmo, suprimidos, eis que mencionada gravação constitui material probatório destinado a instruir, a pedido do senhor procurador-geral da República, procedimento de natureza criminal”.

Nessa toada, obrigatório ter em mente que ao menor sinal de adulteração dos arquivos periciados será imprescindível e urgente nova diligência pericial, agora com observância estrita da cadeia de custódia da prova, que tenha por objeto o equipamento utilizado na gravação da reunião ministerial ou o celular do ex-ministro, fazendo-se a respectiva extração forense do arquivo desejado. Somente dessa forma será preservada a integralidade (todo o arquivo) e a integridade (na forma original) dos arquivos, de maneira não só a garantir que não tenham sido anteriormente modificados ao exame, como também desmascarando eventuais adulterações. Tudo em prol da necessária e cabal apuração dos fatos.

 é sócio-fundador do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GV-LAW).

 é sócio-fundador do Dynamics Perícias, perito criminal aposentado, professor de Criminalística da Academia de Polícia Civil de São Paulo e especialista em compliance e governança.

 é advogado associado ao escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Compliance.