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Juíza determina assembleia virtual presencial entre credores

Juíza alegou número excessivo de credores e inviabilidade técnica para justificar decisão
Reprodução

Apesar do avanço da Covid-19 no país, a juíza Ana Carolina Miranda de Oliveira, da 9ª Vara Cível do Foro de Guarulhos (SP), determinou que a realização de assembleia geral de credores fosse realizada no formato presencial no próximo dia 14 de julho.

Na decisão, a magistrada alega que, “diante da complexidade do feito e do excessivo número de credores, bem como da inviabilidade técnica ressaltada, fica indeferida a realização de Assembleia Geral de Credores por meio de teleconferência ou outro meio virtual”.

Ela também pontua que “as partes observar as recomendações dos órgãos de saúde em relação à pandemia decorrente da Covid-19, tais como temperatura e ventilação adequadas, portas abertas, disponibilização de álcool gel para higienização, uso de protetor facial e distanciamento mínimo entre os participantes, entre outros”.

A sentença contraria a Recomendação nº 63 do CNJ que, por sua vez, em seu parágrafo único do artigo 2º, estimula que, caso haja a urgência para a reunião entre os credores, os juízes determinem a realização das assembleias pelo método virtual, devendo os administradores judiciais envidarem todos seus esforços, para sua realização.

Ana Carolina Reis do Valle Monteiro, da área de Reestruturação & Insolvência do Kincaid, Mendes Vianna Advogados e membro da Comissão de Recuperações Judiciais, Extrajudiciais e Falência da OAB/RJ, avalia que o melhor seria montar uma AGC híbrida, composta com acessos virtuais e presenciais, o que certamente pouparia custos, atenderia todos os credores e protegeria vidas.

Clique aqui para ler a decisão

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Green new deal, mudanças climáticas e a Covid-19

Mais de 40 mil pessoas perderam a vida em decorrência da Covid-19 no Brasil, de acordo com um consórcio de empresas jornalísticas, até a última quinta-feira, com uma preocupante taxa de 19 mortos a cada 100 mil habitantes, diga-se, em franca aceleração. No mesmo dia (11/06), em apenas 24 horas, 1.272 pessoas perderam à vida. Outrossim, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de óbitos pela Covid-19 no mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido, onde a pandemia, é bom que se recorde, iniciou bem antes.[1]Em poucas horas, o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido e, em poucas semanas, muito provavelmente, os Estados Unidos, neste mórbido ranking da incúria governamental e do descaso social.

De outro lado, dados do programa Global ForestWatch demonstram que a perda total mundial de florestas tropicais primárias no ano passado — 3,8 milhões de hectares, uma área quase do tamanho da Suíça — foi cerca de 3% maior que 2018 e a terceira maior desde 2002. O Brasil, segundo o levantamento, é o responsável por mais de um terço do desmatamento global e o líder absoluto no ranking mundial dos países desmatadores, seguido pela República Democrática do Congo, Indonésia e a nossa vizinha Bolívia.[2]

O governo brasileiro, outrossim, não pode ignorar o relatório sobre o clima da ONU, Global Warmingof 1,5 ºC, que demonstra que o mundo já superou a barreira de 1 grau Celsius de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais, e que seres humanos e não humanos estão sofrendo os efeitos negativos das mudanças climáticas.[3]

Não existem evidências diretas de que a mudança climática esteja influenciando a disseminação da Covid-19, mas esta, no mínimo,altera a forma de relacionamento do homem com os animais não-humanos e isso é relevante para o aumento do risco de infecções.

Com o aquecimento global os animais terrestres e marinhos buscam os pólos para fugir das altas temperaturas. Este fenômeno faz com que os animais invadam outros ecossistemas como espécies invasoras, entrem em contato direto com a população de animais nativos e assim espalhem patógenos para outros hospedeiros. 

 As causas das mudanças climáticas, sim, aumentam o risco de pandemias. É o caso do desmatamento, que ocorre principalmente para fins agropecuários. Esta é a a maior causa de perda do habitat natural na atualidade, o que igualmente gera migrações dos animais e propicia o contato efetivo e potencial com outros animais não-humanos e humanos causando,também, o compartilhamento de germes.[4]

Neste cenário, existem vários aspectos positivos de uma boa governança climática relacionados à melhora da saúde humana, e a redução do risco de surgimento de doenças infecciosas certamente é um deles. Rachel Nethery, Xiauo Wu, Francesca Dominici e outros pesquisadores da Universidade de Harvard, descobriram que pessoas que moram em locais com má qualidade do ar têm maior probabilidade de morrer da Covid-19, o que pode ser agravado por outros fatores como condições médicas pré-existentes, status socioeconômico e a falta de acesso aos cuidados básicos de saúde. Essa descoberta confirma pesquisas, já nem tão novas, que demonstram que pessoas expostas a maior poluição do ar são mais suscetíveis ao agravamento de infecções respiratórias do que aquelas que respiram o ar mais limpo.[5]

Em locais onde a poluição do ar é um problema de rotina, os que mais sofrem são os sem-teto e aqueles cuja saúde já está comprometida. Dentre os sem-teto, no caso brasileiro, há um número desproporcionalmente maior de pardos e negros infectados e mortos pela Covid-19.[6] Esses indivíduos precisam de maior apoio governamental, para além das cotas,em especial em tempos de pandemia, pois possuem menor renda per capita em média do que os brancos.

Não se sabe, embora existam muitas especulações, em especial nas redes sociais, se o clima mais quente pode retardar a propagação do coronavírus. O que importa, em razão disto,é desacelerar a propagação da doença, e isso significa seguir rigorosamente as orientações, precautórias e preventivas, da Organização Mundial de Saúde, em especial, as recomendações de distanciamento social, da higienização das mãos, do correto uso de máscaras, entre outras ações, enquanto não for descoberta uma vacina ou um antirretroviral de amplo espectro eficiente contra esta doença.[7]

O aquecimento global, igualmente, criou condições mais favoráveis à propagação de algumas doenças infecciosas, incluindo a doença de Lyme, doenças transmitidas pela água, como a Vibrioparahaemolyticus, que causa vômitos e diarreia, e doenças transmitidas por mosquitos, como a malária e a dengue. Os riscos futuros não são fáceis de prever, mas as mudanças climáticas geram o aparecimento de patógenos, com o aumento das temperaturas e das precipitações.[8] Para ajudar a limitar o risco de doenças infecciosas, mister reduzir as emissões de gases de efeito estufa e limitar o aquecimento global a 1,5 graus, tendo como marco inicial a Era pré-industrial, não apenas no ano de 2100, mas já nos próximos anos.[9]

Neste sentido o Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), sobre a meta de 1,5 graus, concluiu que a meta de dois graus existente — prevista no Acordo de Paris — teria consequências catastróficas e irreversíveis, ainda se atingida até 2100. Necessária é maior ambição em termos de governança climática. As catástrofes ambientais (e biológicas) devem aumentar até 2050 — inclusive com o surgimento de novas pandemias e o retorno de outras já conhecidas — se a estabilização das temperaturas não ocorrer nos próximos 11 anos. De acordo com o relatório, limitar o aquecimento global em 1,5 graus requer uma mudança radical nas ações dos entes privados e nas políticas públicas governamentais. O último relatório da Agência Internacional de Energia afirma que as emissões mundiais de CO2, estão subindo e não começaram a diminuir. Como resultado, inclusive o alcance da meta de dois graus no ano de 2100, está começando a sair do alcance da comunidade internacional. Com o aquecimento global já ultrapassando 1º C, desde a era pré-industrial, estamos caminhando, a passos largos, para o aquecimento de três ou até quatro graus no ano de 2100 o que causará um grande colapso ambiental, social, econômico e político.

No século 20, as atividades humanas avançaram com espetacular velocidade causando imensos impactos ambientais e um fenômeno de extinção de espécies em ritmo acelerado, comparável apenas com o ocorrido há 65 milhões de anos, quando os dinossauros, e metade da vida na Terra, foram extintos.

A diminuição da vida no Planeta, deve-se à perda de habitat, fazendo com que os animais não humanos invadam cidades em busca de alimento e de espaço. E a urbe, por seu turno, invade florestas, mangues e vegetações protegidas em nome do crescimento econômico promovendo um desenvolvimento urbano insustentável com o potencial de exterminar espécies de fauna e flora com uma voracidade impiedosa e nunca antes vista.A mudança climática causa a perda das espécies e afeta o habitat destas tendo como resultado a eclosão de novas doenças. As ações antrópicas causam um efeito rebote, pois ao mesmo tempo que afetam a flora e a fauna, degradam e colocam em risco a qualidade da própria vida humana.

Como solução a este problema, investimentos públicos e privados podem evitar outro surto pandêmico ao promover o combate as emissões de gases de efeito estufa, ao desmatamento e, especialmente, a proteção da biodiversidade global, que pode perder um milhão de espécies já nos próximos anos.[10] O Estado e a iniciativa privada devem apoiar a ciência, investir mais em pesquisas e, em especial, na construção de respostas efetivas e imediatas para o combate as pandemias. Visões pré-iluministas, negacionistas e outras utilitárias, não são a melhor resposta, e não trarão bons resultados no médio e no longo prazo.

As abordagens precautórias e preventivas são de longe as melhores para proteger o meio ambiente, à saúde pública e a própria economia dentro de uma perspectiva intergeracional. Quando a pandemia da Covid-19 chegar ao fim, haverá uma oportunidade única para reconstruir a economia nacional, abandonando-se o ultrapassado conceito de austeridade, cunhado pelos Chicago Boys, que naufragou na Era Reagan e Thatcher. Uma alternativa seria a adoção de um Green New Deal, semelhante ao proposto em forma de Resolução no Congresso Norte-Americano[11]e é abordado em sede de pesquisas científicas, inclusive dentro do direito.[12]Fugindo do nefasto onesizefitsall[13], cego para fatores locais, poderia ser elaborado, com amplo apoio governamental, no âmbito das grandes universidades públicas e privadas brasileiras, um Green New Deal dos Trópicos,que sirva ao país. Este deveria prever obrigatoriamente: a taxação sobre o carbono; a criação de um robusto mercado do cap-and-trade; o incentivo fiscal para as energias renováveis (eólica, solar, marítima, biomassa e, talvez, nuclear); a adoção obrigatória dos veículos elétricos; a obrigatoriedade do controle de sustentabilidade em obras públicas e privadas e na produção e comercialização de eletrodomésticos e dispositivos movidos por energia elétrica;o desenvolvimento da geoengenharia para mitigar os efeitos do aquecimento global; o estímulo à criação de empregos verdes (inclusive com programas de primeiro emprego); o combate mais rigoroso as queimadas e ao desmatamento; a adoção de escolas públicas de turno integral gratuitas, e privadas subsidiadas com a adoção de vauchers, desde a pré-escola até a Universidade; a ampliação e o fortalecimento do SUS; o aumento das garantias para a elevação da confiança no sistema de previdência, com uma maior regulação pública e social da previdência pública e, em especial, das empresas de previdência privada; o aumento do controle púbico e social sobre o sistema bancário e securitário; a elevação dos subsídios públicos para a pesquisa científica focada em novas tecnologias; a ampliação dos subsídios para universidades públicas e privadas e, em especial, a tributação das grandes fortunas.

Em suma, o nosso Estado Socioambiental de Direito, terá a oportunidade de implementar um Green New Deal à brasileira, e poderá lidar melhor,não apenas com crises climáticas e pandêmicas mas, especialmente, sociais e econômicas. O Brasil, de dimensões continentais e riquíssimo, em termos de diversidade e de bens naturais, possui uma Constituição e um arcabouço infraconstitucional progressistas e aptos a fornecer a moldura jurídica para este novo cenário que exige a concretização do princípio constitucional do desenvolvimento sustentável.

 é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, “Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças
Climáticas: um direito fundamental”.

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Eugénio Zaffaroni: Nosso Direito e a pós-pandemia — Parte 2

Continuação do artigo publicado nesta segunda-feira (25/5)

4 — O que fazemos agora?
Dada a evidência de que os Estados — como as repúblicas e as democracias enfraquecidas — não serão capazes de superar o conflito inevitável da pós-pandemia de maneira saudável, somos instados a pensar em um novo modelo de Estado que, mais cedo ou mais tarde, surgirá, assim como o New Deal de Roosevelt, isto é, em um modelo neoprovidente, com mínima equidade de desconcentração da riqueza, capaz de reconstruir as democracias e as repúblicas, assimilando as experiências de nossas histórias acidentadas.

Em nosso constitucionalismo, não haverá de faltar criatividade para pensar em modelos de Estados fraternos que, juntamente com a liberdade e a igualdade, não esqueçam a fraternidade. Nossos movimentos populares de todos os tempos nos deixaram pistas redistributivas, que devem ser aprofundadas.

De nossa região, da Constituição Mexicana de 1917, surgiu o constitucionalismo social. Também apareceu o ambiental, com as Constituições do Equador e do Estado Plurinacional da Bolívia. Certamente emergirá o constitucionalismo socioambiental, moldando os novos Estados neoprovidentes e fraternos.

As emergências estão dando razão aos políticos decapitados pelos partidos políticos midiáticos e, onde estão ausentes, outros surgirão, como em qualquer emergência. Política e vazio são incompatíveis: diante da reivindicação dos cidadãos, algo emerge. Além disso, nossos povos sempre produziram fortes personagens políticos; essa capacidade não foi perdida, em que pesem aos aparatos publicitários dos partidos mediáticos únicos.

Essa tarefa jurídica criativa se impõe, porque não basta livrar-se da dependência colonial sem delinear nossos futuros Estados, porque a história mostra que essa atitude é um erro muito grave. De fato: quando há duzentos anos nos libertamos do colonialismo originário, nossas oligarquias e seus intelectuais iluminados queriam impor — com sangue e fogo — aos povos de nossa região — supostamente bárbaros e ignorantes —, modelos incompatíveis com nossas realidades (a chamada civilização genocida). O neocolonialismo foi construído sobre essas alegações, que custam muito mais vidas e dor do que a luta pela independência em si. Não podemos sequer descartar que, em sua boa parte, as falhas de nosso presente são a consequência desse erro original.

Pensar desde já o modelo de Estado que queremos não é um sonho vão ou um entretenimento de ociosos, nem significa cair na utopia, mas é indispensável: nada mais é do que montar a bússola, examinar o norte, esclarecer o objetivo.

Devemos pensar com urgência sobre o Estado que queremos, que institucionalização é necessária para reconstruir a democracia e a República, como recuperar o Estado para a política, como voltar a uma democracia plural com partidos políticos não midiáticos, como estabelecer certa ordem institucional que impeça que qualquer vice-rei circunstancial exerça a soma do poder público e, acima de tudo, como reverter o modelo de sociedade com 30% incluído e o restante excluído que tentou impor o colonialismo do totalitarismo financeiro.

Não somos ingênuos, sabemos que, na pós-pandemia, especialmente diante das classes médias que cairão na pobreza, os vice-reis e os outros agentes tentarão atribuir todos os males aos políticos que não responderem ao partido midiático único, eles usarão suas campanhas sujas, suas notícias falsas, as dramatizações de seus atores e atrizes disfarçadas de comunicadores e jornalistas; eles não pouparão recursos, recorrerão e colocarão em prática sua impudícias coprofílicas mais abjetas e desumanas. Serão capazes de impedir a volta dos líderes populares decapitados pelos partidos midiáticos únicos ou o surgimento de novos líderes em nossos países?

Diante de respostas excessivamente pessimistas, nossas histórias nos ensinam que, com marchas e contramarcas, nossos povos sempre se tornam conscientes e bem-sucedidos. Prova disso é que, se não fosse por nossos movimentos populares, talvez não pudéssemos escrever essas linhas nem o leitor as leria, porque muito provavelmente seríamos analfabetos, teríamos morrido na infância, teríamos menos neurônios devido à falta de proteína nos primeiros anos ou teríamos desaparecidos por alguma ditadura genocida.

O cardenismo mexicano, o aprismo peruano, o velasquismo equatoriano, o varguismo brasileiro, o yrigoyenismo e o peronismo argentino etc. tiveram muitos defeitos, incluindo algum autoritarismo, mas, no balanço final, todos esses defeitos empalidecem em comparação com os genocídios dos vice-reis que os atacaram em todo o tempo e, em última análise, devemos a eles a expansão da cidadania real em nossa região. Nossos povos não perderam e não perderão essa vocação, apesar dos esforços tecnológicos dos atuais partidos midiáticos únicos.

5 — Quem deve pensar sobre isso?
Quando em Querétaro (México), os deputados camponeses e constituintes dos trabalhadores propuseram as normas que deram origem ao constitucionalismo social, foram contestados pelos graduados formados nas universidades do porfiriato. Felizmente, o primeiro triunfou. É hora de não repetir o erro dos últimos.

É tarefa da academia jurídica superar sua vocação elitista e sua falsa assepsia política, deixando de lado as reivindicações dos encarregados de oferecer discursos facilitadores dos mecanismos de fuga para a paz burocrática judicial, postulando um Direito não político, neutro e não contaminado que nega a essência cultural, histórica e política da lei, enfim, funcional para os vice-reis de turno.

O próprio criador do método dogmático jurídico — Rudolf von Jhering — logo se voltou para a realidade social e, com as inevitáveis limitações de seu tempo e lugar, redefiniu o Direito como luta.

A hora exorta os juristas de nossa região, em homenagem à demanda pela recuperação da soberania de nossos povos através da democracia e da estrutura republicana e não violenta, a mergulhar e absorver as necessidades e reivindicações dos mais vitimados pelo tardo-colonialismo financeiro, para discutir a melhor maneira de materializá-los na forma legal de novos de Estado.

Isso não significa um desvio reacionário em direção a um romantismo jurídico que captura sentimentos, mas o que se exige é a compreensão de necessidades, que é algo muito diferente, pois parte do respeito ao outro, à pessoa em concreto, reivindica a cidadania real.

Devemos estar cientes de que esses projetos não devem ser elaborações do gabinete, mas que seu conteúdo deve surgir das reivindicações baseadas nas necessidades das camadas mais afetadas de nossas cidadanias, que são ou se tornam maioria, devendo ser as principais provedoras de seu conteúdo. Corresponde aos juristas a única tarefa de elaborar o formato jurídico mais eficaz possível.

A demarcação de conteúdo e o formato é essencial para que ninguém cometa o erro dos formandos de Querétaro, tentando elitisticamente dar o conteúdo do que deveria ser apenas o envelope normativo necessário da reivindicação dos povos.

Tendo em mente que a pós-pandemia exigirá um esforço conjunto dos povos de nossa região, caberá aos internacionalistas refletir sobre o fortalecimento das organizações regionais, a ressurreição de outras e a criação de novas, além de redirecionar aqueles que se tornaram funcionais totalitarismo financeiro e, acima de tudo, aperfeiçoar o resseguro do sistema regional de direitos humanos, a fim de proporcionar a eficiência e a rapidez que atualmente falta.

Nossos juízes não nascem de incubadoras, mas nós os treinamos nas universidades, vamos revisar cuidadosamente e à luz das necessidades de nossos povos o que estamos teorizando e ensinando: é hora de extrema responsabilidade acadêmica.

6 — Em que ponto estamos?
O grau de esforço necessário para trazer à realidade o novo Estado neoprovidente e fraterno dependerá em grande parte da dinâmica do poder planetário na pós-pandemia.

É claro que a atual paralisia da economia global é o declínio do totalitarismo financeiro, mas não sabemos se vivemos o começo ou o fim dessa queda. Se fosse o começo, haveria uma luta pela frente; se fosse o fim, seria um amanhecer e em breve deveríamos iniciar a construção do Estado pós-pandemia.

O mundo — a humanidade — está em uma situação que se assemelha a 1939, a 1945 ou aos anos intermediários? Não faltam aqueles que acreditam que o declínio nem sequer começou e que, pelo contrário, será reforçado na pós-pandemia; imaginam diferentes distopias.

Acreditamos que o caminho da distopia colide com uma serie de inconvenientes, já que, como conduz a uma hecatombe total e essa perspectiva apesar do negacionismo vai se fazendo demasiadamente indisfarçável, provoca um crescente pânico generalizado.

O segundo inconveniente desse caminho distópico é que, com urgência, deveria eliminar ou deslegitimar todas as organizações internacionais. Ainda que tenham, em seu momento, sido criados pelos poderosos, com o desaparecimento do mundo bipolar, adquiriram dinâmica própria e geraram pessoal técnico, ou seja, apesar de sua dependência financeira, autonomizaram-se e obstaculizaram cada vez mais o totalitarismo financeiro.

Hoje, esses distanciamentos ocorrem em confronto, pois o desafio e a difamação contra a OMS são sem precedentes. Tudo indica que a OMS será seguida por todas as organizações universais e regionais, não apenas as dedicadas aos direitos humanos, mas também as mais técnicas e especializadas. Qualquer perspectiva distópica não poderia avançar sem acabar com as organizações internacionais, com o discurso sobre direitos humanos e também com todo o Direito internacional, incluindo a própria Cruz Vermelha.

Embora essas organizações estejam longe de governar o mundo, seu empoderamento também não pode ser subestimado, principalmente devido à perda de prestígio que aqueles que as confrontam causam.

Assumindo até mesmo a posição do começo do fim, que seria a mais pessimista entre a posição não-distópica, nos encontraríamos frente ao desafio de uma luta para nos libertar do estágio atual do colonialismo.

Levando em conta que o Direito é sempre luta, em qualquer caso, devemos começar a pensar a respeito do que faremos quando formos independentes ou, o que é quase a mesma coisa, por que queremos independência, já que a queda de outro colonialismo não deve nos pegar desprevenidos, como há dois longos séculos atrás.

Que Deus nos ilumine, a razão ou o que cada um acredite com total e absoluta liberdade de consciência, porque nesta hora os erros teriam consequências muito sérias.

Tradução: Juarez Tavares e Carol Proner

Eugénio Raúl Zaffaroni é um eminente jurista argentino, professor emérito da Universidade de Buenos Aires e juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos.