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Assis e Silva: Sobre revogação, rescisão e distrato

O Código Civil Brasileiro começa a estabelecer as condições gerais de contratação a partir do artigo 104 — ao ditar as normas de validade dos negócios jurídicos [1], passando pela disciplina das obrigações ou a disciplina da Teoria Geral das Obrigações.

O código avança no sentido de estabelecer quais são as premissas da contratação, desde o agente capaz, da forma prescrita não defesa em lei, solenidade, se a escritura pública deve ser escritura pública, se o ato solene deve ser ato solene, se necessita de representação, representação, se necessita de assistência, assistência, o que pode ser contratado e o que não pode ser contratado.

Todas essas questões são muito claramente disciplinadas desde o artigo 104 do Código Civil até quando trata dos contratos em espécies, estabelecendo todas as formas de obrigação, contratos de adesão, contratos sinalagmáticos, enfim, reforçando que a contratação segue um rito, uma capacidade e uma forma [2].

Quando o código vai falar em revogação do contrato, ele começa uma simples questão trazida no artigo 472 [3], que “o distrato faz-se pela mesma forma exigida pelo contrato”, ou seja, a revogação, ou rescisão, embora fala apena de distrato, o distrato prevê, a princípio, apenas um acordo de vontades. Quando fala em distrato, ele fala que o desfazimento de um negócio jurídico por vontade de ambas partes deve seguir os mesmos ritos de formalidade, capacidade e legalidade da sua formação.

E quando o Código Civil estabelece as condições de desfazimento unilateral do contrato, ou resilição ou rescisão unilateral, também estabelece condições que seguem a mesma forma na formação do contrato. Ou seja, para desfazer um contrato, seja por vontade bilateral (distrato), seja por vontade unilateral (a resolução, a rescisão ou a revogação), também a lei exige o cumprimento das formalidades tal qual ou mais quando da formação do Contrato [4].

Esse é o ponto que deve ser verificado. O que isso nos leva a dizer em relação aos acordos, ou contratos de colaboração premiada, segue também algumas características. Os acordos de colaboração premiada são bilaterais, sinalagmáticos, mais há um misto de cláusulas de adesão, uma vez que uma das partes, o Ministério Público, exerce uma posição dominante ou monopolista [5].

Nesse caso, qualquer cláusula de adesão conforme o artigo 423 [6] deverá ser interpretada de forma favorável ao aderente, no caso, ao colaborador porque, embora seja um contrato bilateral, sinalagmático, há cláusulas de adesão. Estas seguem a interpretação mais favorável ao aderente. Este artigo quer trazer a atenção sobre uns pontos: primeiro, a formação do contrato deve seguir o que está claro para a legislação de Direito Civil Brasileiro e na Constituição Federal, preservação de garantias individuais, não eliminação dos direitos fundamentais, não eliminação de cláusulas pétreas, não violação de direitos e garantias fundamentais e de direitos humanos [7].

A rescisão, a resolução e a revogação de contratos de colaboração premiada devem seguir o mesmo ritual da formação. Da mesma forma que se exigiu o agente capaz para a formação do contrato, deve-se exigir o agente capaz para o desfazimento. Então, não pode a rescisão de um contrato de colaboração seguir um rito diferente do da sua formação. E as cláusulas de adesão devem ser interpretadas sempre a favor e em benefício do aderente.

Pois bem, a Lei 12.850, que deu ao Ministério Público Federal autorização para formar contratos de colaboração, estabeleceu uma margem estrita de negociação que como dito transforma o contrato em contratos mistos, bilaterais e sinalagmáticos, tendo em seu conteúdo, também, cláusulas de adesão.

Seguindo esta linha de desenvolvimento, o Artigo 4º, parágrafo 8º, da Lei 12.850 estabelece que após a formação do contrato, ou seja, após as partes discutirem e cumprirem com os requisitos exigidos para sua formação, será o mesmo remetido ao juiz, para verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, e, assim, poderá “recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto”[8].

A formação do contrato de colaboração se insere no sistema jurídico com a homologação do juiz competente para isso. A Lei 12.850 estabelece as condições de um contrato de colaboração premiada, mas não o desvincula da Constituição Federal, nem do Código Civil, nem de princípios constitucionais e de direitos humanos, data a sua natureza de contrato [9].

Estabelece as condições, as obrigações, estabelece algumas cláusulas de adesão também. O artigo 4o, parágrafo 8o, encerra a fase final da formação do contrato, que é a homologação.

Esse parágrafo 8o diz que o juiz poderá recusar a homologação de uma proposta que não atender aos requisitos legais. Ou seja, não se insere no objeto da contratação, que evidentemente deve ser lícito, e negociado no respeito da autonomia privada, em que pese um certo monopólio, então o juiz poderá recusar a homologação e a proposta que não atender aos requisitos legais ou adequá-la ao caso concreto.

Então, a formação do contrato exige tudo aquilo que o Código Civil exige, tudo o que a Lei 12.850 exige, tudo o que a Constituição exige e os princípios gerais de Direito e direitos humanos, e insere algumas cláusulas de adesão.

Portanto, e este é o nosso ponto, se para formação devemos seguir um rito, para rescisão tem que seguir desta mesma forma, sendo que para as cláusulas de adesão prevalece aquilo que foi favorável ao colaborador [10].

Em se tratando de rescisão, o que diz a lei? Nada. Mas o Código Civil diz que a rescisão segue a contratação, ou seja a formação do contrato e a deformação do contrato deve seguir o ritmo da formação, justamente porque não existe uma lei especial que estabelece o ritual de desfazimento do acordo de colaboração premiada, após formado. Porque antes da formação do contrato a parte pode retratar, porém após isso as partes estão jungidas, vinculadas e em caso de colaboração não se podem desprender por vontade unilateral e com rito diferente [11].

Eis o ponto: quando se requerer a rescisão de um contrato, o juiz para homologar ou não homologar a rescisão deve seguir o mesmo rito da formação, e qual é o rito da formação? O rito da formação está representado nas regras positivas e princípios já mencionados, e deverá homologar ou não, conforme os critérios de regularidade, legalidade, e voluntariedade, e interesse público, ou seja, em eventual pedido de rescisão caberá ao juiz que a tenha homologado, apenas para “homologar ou não homologar” [12].

Logo, o juiz não julga o pedido de rescisão. Ele homologa ou não homologa e para homologar ou não homologar ele tem que seguir esse rito. É, repetindo pela clareza ao leitor, o rito da legalidade, regularidade, voluntariedade da Lei 12.850, e ainda mais o ritual normativo da capacidade das partes, do implemento da formação, da irrevocabilidade, do atendimento ao interesse público, da possibilidade fática e real de rescindir ou não, e da interpretação das cláusulas aderentes em favor do colaborador.

E não pode o pedido de rescisão ser apreciado por outro juiz senão aquele que o homologou [13].

No caso de juiz em primeira instancia, compete ao juiz que homologou; no caso de tribunais, compete ao relator que homologou, e não à turma, porque se for assim, já estaremos tratando da rescisão em desobediência ao que diz o Código Civil, eis que não estará tratando da mesma forma de sua formação.

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, não está isento de seguir o mesmo rito, e tem a missão de garantir o exercício de direitos fundamentais na formação do contrato e, portanto, não pode suprimir no eventual desfazimento do contrato. E, por fim, uma das garantias fundamentais, que é o duplo grau de jurisdição, jamais poderá ser suplantada em qualquer decisão por aqueles que não tenham foro por prerrogativa de função, portanto um acordo de colaboração homologado por um ministro do Supremo Tribunal Federal não pode ter um pedido de rescisão, homologado ou não homologado, como dito, pelo plenário dessa corte. Se isso ocorrer, a corte estará desobedecendo o Código Civil e a Constituição Federal tirando, daquele que aderiu, o duplo grau de jurisdição [14].

 


[1] O artigo 104 CC dispõe: “A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei”.

[3] Veja-se o artigo 472 CC que dispõe: “O distrato faz-se pela mesma forma exigida para o contrato”.

[4] Veja-se, GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 13. Ed. V. 3. São Paulo, Saraiva, 2016.

[8]  Veja-se os parágrafos 7o e 8o do Artigo 4o da Lei 12.850 de 2013:  “§ 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor” e “§8o O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto”.

[13] Veja-se, LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 11. Ed. São Paulo, Saraiva, 2016, sobre o principio do Juiz Natural como Direito e Garantia Constitucional.

Francisco de Assis e Silva é advogado empresarial, mestre em Direito e Filosofia e doutorando em Direito.

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Flávia Fragale: Medidas de proteção ao emprego nos EUA

Nas últimas semanas, muito se tem debatido acerca das medidas tomadas no Brasil para proteção ao emprego e à renda em meio à pandemia de Covid-19, mais notadamente as disciplinadas pelas Medidas Provisórias 927, 936, 944 e 946, todas de 2020.

É interessante verificar, ao se olhar para os ordenamentos jurídicos estrangeiros, que a maioria dos países têm adotado medidas semelhantes, em maior ou menor extensão. Isso se dá porque estamos todos passando, independentemente do sistema jurídico adotado, da forma de governo e do grau de interferência do Estado na sociedade, pelos mesmos problemas frente à atual pandemia.

A ideia desse pequeno artigo é pontuar as principais medidas tomadas nos EUA e verificar pontos de convergência e de divergência delas com as medidas adotadas em nosso país. Não há pretensão alguma de se apontar acertos ou erros ou de se dizer qual a melhor abordagem e sim apenas de levantar reflexões.

Em primeiro lugar, é curioso verificar que, mesmo em um país (EUA) com tradição de interferência pequena na sociedade, principalmente no mundo do trabalho, o Estado apareceu com mais evidência durante a pandemia. Causa surpresa à maioria dos brasileiros, que têm a ideia de que não há  regulação de direito do trabalho nos EUA, constatar que esse ramo lá existe sim e aparece, quando preciso, nos momentos de maior fragilidade e em que se exige maior solidariedade e atuação do Estado.

É importante frisar o quão rápido as normas foram editadas nos EUA, apesar de longas e detalhadas, e mesmo tendo tramitado pelas duas casas do Congresso Americano. De se observar que as medidas vieram por Leis, visto não haver, naquele país, ferramenta semelhante às nossas Medidas Provisórias. A celeridade demonstra a união dos dois partidos que compõem o parlamento em busca de rapidamente atender às necessidades da sociedade frente à urgência dos efeitos da pandemia.

A primeira Lei endereçando as questões da pandemia nos EUA com impacto nos indivíduos foi o chamado “Families First Coronavirus Response Act”[1], de 18/03/2020. Esta Lei conta com quatro partes e endereça questões diversas, como: normas fiscais, destinação de dinheiro para a saúde e seguridade social, ajuda alimentar para crianças fora da escola e adultos que necessitem de alimentação gratuita, licenças ao trabalho em decorrência da pandemia, aportes de dinheiro ao seguro desemprego administrado pelos estados, obrigatoriedade dos planos de saúde realizarem exames para diagnóstico da COVID-19 sem cobrança de coparticipação. É de se ressaltar que, nos EUA, são os Estados e não o governo federal quem regula e administra o seguro desemprego e outras questões trabalhistas. Assim, a Lei em questão apenas fez aportes em dinheiro aos estados e determinou, em contrapartida, posturas que eles deverão adotar em suas jurisdições.

As medidas que mais chamam à atenção nesta primeira norma mencionada são as seguintes. Primeiro, a possibilidade de trabalhadores requererem licença não remunerada durante 10 (dez) dias para resolverem questões relacionadas à pandemia (por exemplo reorganizar sua rotina, acomodar crianças que estão fora da escola etc). Além dessa licença, a norma prevê licença remunerada pela empresa por no máximo 80 horas em casos de recomendação médica de afastamento, de pessoa com sintomas de coronavírus e em busca de diagnóstico, de trabalhador que esteja cuidando de alguém com sintoma, e, ainda, de trabalhador que tenha filho que esteja em casa porque a escola está fechada. De se observar que a licença remunerada é paga pelo empregador e não pelo seguro social. Em contrapartida, ao conceder essa licença, o empregador terá incentivos fiscais. Por fim, a norma traz relevante regra anti-discriminação, estabelecendo que é ilegal o empregador dispensar ou tomar qualquer medida disciplinar contra empregado que se utilize dessa licença ou que ajuíze reclamação a ela relacionada, sob pena de ser penalizado administrativamente.

Em adição  à Lei acima analisada, em 28/03/2020 foi editado o chamado “Cares Act — Coronavirus Aid, Relief and Economic Security Act”[2]. Tal Lei conta com mais de 100 artigos, altamente detalhados, com dispositivos acerca diversas áreas, como: auxílios financeiros para indivíduos, dilação de prazos para pagamento de impostos, empréstimos, suprimento de medicamentos, incentivos para laboratórios, auxílio para hospitais, regulamento de telemedicina, entre outros.

A parte mais importante do Cares para o mundo do trabalho é o chamado Paycheck Protection Program[3] que muito se assemelha ao disposto na nossa MP 944, ao conceder um empréstimo às pequenas empresas (com menos de 500 empregados), empregadores individuais e autônomos, com a finalidade de preservar a atividade econômica e, consequentemente, os empregos. Ao contrário da medida brasileira, o programa americano estende a possibilidade de uso do valor dos empréstimos para além da folha de pagamento. A norma americana autoriza o uso de tal empréstimo não só para o pagamento de funcionários mas também para pagar financiamento imobiliário do estabelecimento; pagar aluguel do imóvel onde funciona a empresa; arcar com gastos da empresa com água, luz e internet por exemplo;  bem como pagar empréstimos feitos pela empresa antes da pandemia.  Por fim, o mais interessante é que a norma estipula o perdão da dívida à empresa caso ela mantenha todos os seus empregados na folha de pagamento por oito semanas após o empréstimo e se este for usado exclusivamente para pagamento da folha ou gastos com o estabelecimento.

Outra importante medida estipulada no Cares Act é o pagamento de US$ 1.002 por pessoa e mais US$ 500 por criança aos que tenham renda anual bruta de U$ 75.000 dólares ou menos. A ideia se assemelha ao nosso “coronavoucher”, o auxílio de R$ 600,00 previsto no artigo 2o da Lei 13.982. Diferente da medida brasileira, o chamado “stimulus check” (cheque de estímulo) independe de requerimento. O benefício será creditado automaticamente na conta do cidadão por meio de dados da receita americana ou por meio de cheque a ser enviado para as residências dos que forem considerados elegíveis. Outra diferença é que se trata de um pagamento único, ao contrário do benefício brasileiro de R$ 600,00 que será pago em três parcelas.

Quanto ao seguro desemprego, como se trata de questão regulada em cada estado, o que o Cares fez foi determinar que os estados aumentem o prazo do benefício e flexibilizem seus requisitos. Além disso, o Cares previu um aumento no valor do benefício, de modo que além do que cada estado paga haverá um valor adicional pago pela União.

Com relação às doenças profissionais e acidentes do trabalho (Workers Compensation), a matéria também é de competência de cada estado dos EUA, por meio de agências específicas. O valor pago aos empregados em caso de doença ou acidente decorrentes do trabalho é uma espécie de seguro, custeado pelas empresas, e que exclui outras indenizações. Na maioria dos estados foi editada norma presumindo que em empregos da linha de frente (first respondants), como policiais, bombeiros, médicos, enfermeiros, motoristas de ambulâncias e outros, se o empregado tiver Covid-19 presumidamente a doença foi adquirida no trabalho e ele terá direito à compensação. Curiosamente, o mesmo tema havia sido tratado de forma diametralmente oposta no Brasil. Aqui, a MP 927 havia estipulado, no artigo 29, que os casos de contaminação pelo coronavírus presumidamente não seriam decorrentes do trabalho. É certo que tal artigo foi suspenso pelo STF em medida cautelar nos autos de ação direta de inconstitucionalidade. Assim, no Brasil, casos de Covid-19 poderão ser enquadrados como decorrentes do trabalho mediante prova específica, sem presunção em qualquer sentido.

Por fim, vale observar que não há, nos EUA, norma semelhante à MP 927, que trata do teletrabalho, antecipação de férias, férias coletivas e outras medidas, nem semelhante à MP 936, que trata da suspensão do contrato e da redução da jornada com proporcional redução do salário. Isto ocorre porque tais regras, naquele país, são ditadas pelo direito contratual comum ou então por normas coletivas, no caso de trabalhadores sindicalizados, sem interferência estatal.

Como se observa, mesmo em dois países com histórias, organização da federação e sistemas jurídicos tão distintos, existe uma visão comum, durante a pandemia, de que o Estado deve servir como rede de proteção a fim de proteger a economia e os postos de trabalho. Trata-se, é verdade, de duas abordagens distintas: no Brasil com sua tradição de maior interferência e ajuda direta do Estado para com o indivíduo, e nos EUA com medidas de maior estímulo às empresas para que, através delas, os cidadãos garantam seu sustento. As duas abordagens, contudo, convergem para o mesmo objetivo, qual seja o de manter a sobrevivência econômica da sociedade já fragilizada por questões sanitárias.

FONTES:
https://www.dol.gov/agencies/whd/pandemic
https://www.equifax.com/personal/education/covid-19/
https://ogletree.com/coronavirus-covid-19-resource-center/faqs/


[1] Public Law 116-127 – MAR. 18, 2020 – 116th Congress

Flávia Fragale Martins Pepino é juíza no TRT-17, mestre em Direito Americano (2019) e em Resolução de Disputas (2005), na University of Missouri (Columbia-EUA). Graduação em Direito — USP (1997).