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Frazão e Carvalho: O Cade e o caso da THC2

Mercados regulados são regidos por verdadeiro entrecruzamento de distintos regimes jurídicos, entre os quais o regulatório, o concorrencial e o privado, em relação aos quais se deve buscar a necessária harmonização. Entretanto, isso não vem ocorrendo no setor portuário, essencial e estratégico para inúmeras cadeias de produção e consumo, no qual a dissonância entre as três esferas apontadas vem causando inúmeros problemas.

Caso sintomático é a chamada THC2 (Terminal Handling Charge-2) ou SSE (Serviço de Entrega de Contêineres), que consiste no preço cobrado por operadores portuários ou seja, empresas com píer de atracação — das instalações portuárias alfandegadas (IPAs), nas quais é feita a armazenagem de cargas.

Como é evidente, o operador portuário, por receber a carga, tem a obrigação de proceder à descarga dos contêineres, movimentando-os em terra até a entrega no portão do terminal para que, então, possam ser transportados para espaços de armazenagem localizados fora das dependências do operador portuário. O transporte e a movimentação de mercadorias da embarcação até os portões do terminal são geralmente conhecidos como “capatazia”, serviço remunerado pela THC, preço que abarca os serviços básicos do operador portuário na movimentação em terra das mercadorias.

É preciso mencionar que o armador é responsável pela entrega da carga ao destinatário final, no porto de destino por este escolhido. Para viabilizar a entrega da carga ao importador, o armador contrata um dos operadores portuários atuantes naquele porto de destino para realizar a atracação, estiva e movimentação horizontal das cargas em terra, do navio até o portão do terminal. Por conseguinte, a entrega dos bens no portão do terminal e a consequente liberação de contêineres são obrigações do operador portuário que decorrem de sua relação contratual com o armador.

Descarregada a mercadoria, esta poderá, a critério do importador, ser armazenada em recintos alfandegados do próprio operador portuário ou de IPAs, que, portanto, são concorrentes dos operadores portuários. Dessa maneira, caso o importador opte pelo armazenamento em uma IPA, a obrigação do armador terminará no momento em que o recinto receber a carga.

O imbróglio relacionado à THC2 decorre do fato de que os operadores portuários alegam existir serviços adicionais relativos à liberação de contêineres que deveriam ser cobrados diretamente das IPAs. Embora não haja efetivamente qualquer serviço diferente da já mencionada entrega da mercadoria, os operadores portuários criaram artificialmente um serviço que, na prática, não existe tão somente para aumentar os custos das IPAs, o que ocorre por meio da cobrança da chamada THC2 ou SSE.

A THC2, por conseguinte, é uma segunda cobrança por supostos serviços “adicionais” de movimentação lateral de cargas até os portões do terminal portuário, sempre que estas sejam direcionadas às IPAs, ou seja, ao agente econômico encarregado de recolher as cargas no portão e então armazená-las. As IPAs, cabe notar, não podem escolher o operador portuário de que retirarão os contêineres, pois se trata de escolha do armador. Assim, cabe às IPAs simplesmente recolher contêineres de seus clientes após serem desembarcados. Dessa maneira, não há nem serviço adicional nem qualquer relação contratual entre operadores portuários e IPAs, razão pela qual, mesmo sob o prisma exclusivamente contratual, já se pode concluir pelo descabimento da cobrança da THC2.

Ocorre que, longe de se restringir a mero problema de Direito privado, o impasse tem claros contornos concorrenciais, pois, mediante a cobrança de THC2, os operadores portuários passam a interferir diretamente nos custos das IPAs e, por conseguinte, nos preços de armazenagem praticados por tais agentes. Tal capacidade de interferência é perigosa, pois o operador portuário concorre com as IPAs no mercado de armazenagem, motivo pelo qual, ao ter a prerrogativa de interferir artificialmente sobre os custos de suas concorrentes, tem todos os incentivos para dificultar ou mesmo eliminar a concorrência no referido mercado.

Não é sem razão que o Cade consolidou jurisprudência no sentido de que a THC2 tem alto potencial anticompetitivo, por constituir meio pelo qual o operador portuário se vale de sua posição monopolista para impor custos artificiais e injustificados aos seus concorrentes. Tal posicionamento do Cade foi sintetizado pelo conselheiro Paulo Burnier da Silveira na afirmação de que “a cobrança da taxa THC2 representa um verdadeiro aumento artificial de custo de rival” [1].

Não obstante, a ANTAQ sempre assumiu posição confusa e errática quanto ao tema. Basta lembrar que, ao analisar a Resolução nº 2.389/2012, que servira de pretexto para a cobrança abusiva da THC2, o Tribunal de Contas da União constatou a existência de graves falhas procedimentais da ANTAQ ao editar o referido ato normativo, chegando a multar os diretores que aprovaram a norma sem nenhum cuidado e a despeito dos alertas da área técnica da agência [2]. O próprio ministro Walton de Alencar Rodrigues asseverou que a THC2 nada mais seria do que uma “jaboticaba”, cobrança existente apenas no Brasil, cuja finalidade seria apenas a de criar novos custos na área portuária. Mais do que isso, o ministro é muito claro ao afirmar que a autorização da cobrança da THC2 pela ANTAQ seria reflexo de “um órgão que foi simplesmente capturado pelos interesses que ela deveria regular”.

O TCU, dessa maneira, registrou a inadequação do posicionamento da ANTAQ quanto à THC2, que mantinha regulamentação eivada de vícios procedimentais e que resultava do processo de captura.

Surpreendentemente, as discussões sobre a THC2, que pareciam já sedimentadas, voltaram a surgir quando, em 2019, a ANTAQ elaborou sua Resolução Normativa nº. 34/2019, que passou a tratar expressamente da THC2 (ou SSE Serviço de Segregação e Entrega de contêineres) e a afirmar que tal cobrança não compõe a cesta de serviços paga pelo armador ao operador portuário (ou seja, a THC). Por meio da aludida resolução, a ANTAQ deixou a cargo dos operadores portuários a definição dos preços máximos a serem cobrados a título de THC2 e fixou para si a competência de revê-los na hipótese de restar demonstrada a verossimilhança de que exista abuso ilegal.

Diante disso, diversas manifestações e matérias jornalísticas, muitas das quais interessadas, surgiram para sustentar que a ANTAQ teria resolvido o problema de uma vez por todas, ao reconhecer a existência e a viabilidade de cobrança de THC2. No entanto, a norma da ANTAQ vai de encontro ao entendimento pacífico de que a cobrança é abusiva não pela ausência de previsão regulamentar, mas sobretudo por não haver razão ou serviço adicional que a justifique e pelas diversas peculiaridades que revelam seu caráter anticompetitivo.

De maneira igualmente surpreendente, veio a Superintendência-Geral do Cade aderir a tal entendimento no âmbito da Nota Técnica 7/2020/CGAA3/SGA1/SG/Cade, em que, não obstante reconheça a jurisprudência do Cade sobre o caráter anticompetitivo da THC2, entendeu que a Resolução ANTAQ nº. 34/2019 “colocou fim à discussão sobre os serviços cobertos pela box rate”.  Em outras palavras, parece que a SG admitiu que a ANTAQ tem o poder de legitimar conduta anticompetitiva por simples ato de vontade, sem qualquer justificativa idônea.

Vale ressaltar que a Resolução Normativa nº. 34/2019 vem sendo reiteradamente questionada, tanto na seara administrativa quanto perante o Judiciário, em virtude dos graves vícios procedimentais em sua tramitação. Entre os inúmeros vícios, encontra-se a inexistência de verdadeira análise de impacto regulatório, ao arrepio do artigo 5º da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) e do artigo 21 da LINDB. Na verdade, o que a ANTAQ fez foi tentar aproveitar como análise de impacto regulatório atos que jamais poderiam ser considerados como tal.

Na verdade, o exame da resolução da ANTAQ mostra que se trata de puro e simples ato de poder, sem qualquer fundamento jurídico ou econômico que o justificasse e sem qualquer endereçamento dos já conhecidos problemas concorrenciais.

No caso concreto, o ônus argumentativo da agência reguladora seria ainda maior, na medida em que tanto o Cade quanto o TCU já atestaram os prejuízos à eficiência da operação portuária decorrentes da cobrança de THC2, sobretudo por se basear em serviço inexistente e por atribuir ao operador portuário a capacidade de alterar artificialmente os custos de seus concorrentes e, assim, potencialmente eliminá-los do mercado de armazenagem alfandegada.

Dessa maneira, já seria absolutamente questionável que uma questão com esse grau de importância fosse resolvida com base no decisionismo formalista da agência reguladora. Mais preocupante ainda é admitir que uma questão assim seja resolvida por decisionismo que nem mesmo obedeceu às regras formais essenciais para a sua validade.

Por essas razões, não pode o Cade ceder tão facilmente à resolução que padece de diversos vícios formais incontornáveis e ainda é manifesta e intencionalmente atentatória às normas concorrenciais.

Ao contrário do que muitos vêm procurando defender, não há nada de novo para justificar a legitimidade da THC2. Subsistem todos os riscos concorrenciais que deram ensejo à construção da bem fundamentada jurisprudência do Cade, os quais foram solenemente ignorados pela nova regulação. Subsistem, por igual, as preocupações do TCU ao apontar que se trata de serviço inexistente, que só existe no Brasil em virtude de um movimento empreendido por determinados agentes do setor e que resultou na captura da ANTAQ.

Conclui-se, portanto, que, por mais que o Cade tenha que levar em consideração, como regra, a posição do regulador nos mercados regulados, é inequívoco que não pode retroceder diante de regulações que são manifestamente inválidas, seja sob o aspecto formal, seja sob o aspecto substancial.

Na verdade, a atual resolução da ANTAQ, ao chancelar, de forma injustificada e desmotivada, a persistência de práticas anticompetitivas, é nítido exemplo de abuso de poder regulatório, pois cria reserva de mercado em favor dos operadores portuários, em detrimento das IPAs, em total violação ao artigo 4º, I, da Lei de Liberdade Econômica. Diante da ilegalidade da resolução, ela jamais poderia ser invocada para afastar a competência do Cade para o exame da questão e muito menos para justificar a modificação da sua jurisprudência.

Dessa maneira, diante dos vícios formais e do abuso de poder regulatório por parte da ANTAQ, não há qualquer razão legítima que impeça ou tolha o exercício, por parte do Cade, da sua importante competência de assegurar a concorrência no setor portuário. Pelo contrário, a atuação do Cade é cada vez mais necessária e urgente.

Angelo Prata de Carvalho é advogado, professor voluntário na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, doutorando e mestre em Direito na Universidade de Brasília.

 é advogada, professora associada de Direito Civil e Comercial na UnB, ex-conselheira do Cade e ex-diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

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O juiz das garantias e o fim do faz-de-conta

Que blindagem psíquica possuem os juízes brasileiros que os diferenciam dos demais? E não só os diferencia dos demais juízes, senão dos demais seres humanos? Nenhuma. A premissa é: o juiz, enquanto ser-no-mundo, também constrói imagens mentais a priori (no sentido kantiano adaptado, ou seja, antes da “experiência completa”), também decide primeiro para depois buscar os argumentos que justificam a decisão já tomada (parafraseando a clássica passagem de Franco Cordero) e também padece com a dissonância cognitiva e o efeito primazia. São diversos os estudos e pesquisas de campo demonstrando o imenso prejuízo cognitivo que decorre dos pré-juízos.

Por outro lado, quantos estudos comprovam a fantástica “blindagem” psíquica dos juízes brasileiros? Como justificar que uma mesma pessoa possa atuar na investigação preliminar, proferindo diversas decisões complexas e invasivas, para depois entrar no processo com “abertura cognitiva” suficiente para dar ensejo a um contraditório real e efetivo? Podemos prescindir do modelo de doble juez ou da prevenção como causa de exclusão da competência (no sentido de que não pode ser o mesmo juiz da fase pré-processual aquele que ao final irá instruir e julgar)? Não existe nenhuma teoria de base e pesquisa para justificar esse argumento!

A realidade do processo penal e que não se quer desvelar é: a defesa sempre entra correndo atrás de um imenso “prejuízo cognitivo”. Ela sempre chega à fase processual em desvantagem e não raras vezes, já perdendo por um placar cognitivo negativo considerável, quando não irreversível. O processo não é mais que um faz de conta de igualdade de oportunidades e tratamento. O juiz já está na imensa maioria dos casos psiquicamente capturado [1] pela tese acusatória, até então tomada como verdadeira e geradora de graves consequências decisórias.

Enquanto não houver preservação da originalidade cognitiva do juiz o que somente é possível com juízes diferentes para as fases pré-processual e processual, a fim de que o julgador do caso conheça dos fatos livre de pré-juízos formados pela versão unilateral e tendenciosa do inquérito policial —, o processo penal brasileiro não passará de um jogo de cartas marcadas e um faz de conta que existe contraditório. O próprio conceito de contraditório precisa ser reconfigurado para exigir também a igualdade de tratamento e oportunidades na dimensão cognitiva.

É preciso que se entenda isso de uma vez por todas, porque a oportunidade que se tem em mãos com o juiz das garantias suspensa atualmente pela famigerada “liminar Fux” pode não aparecer de novo, mantendo o Brasil como exemplo de modelo (neo)inquisitório do século XXI.

Qual é a dificuldade, afinal, de se compreender que todos os seres humanos juízes, inclusive! possuem uma tendência de equilíbrio cognitivo (leia-se coerência entre crenças, opiniões, ações, etc. cognições) cujo rompimento, por insuportável, busca-se sempre evitar, ou, não sendo possível, restaurar, por meio de processos cognitivo-comportamentais involuntários [2] como desde a década de 50 revela a teoria da dissonância cognitiva [3] ; sendo inconcebível que alguém que criou uma imagem mental unilateral sobre um fato, receba uma versão oposta acerca do mesmo fato sem desacreditá-la, diante do mal estar psíquico que inexoravelmente representa?

Ou, então, que uma vez fixada uma primeira impressão sobre alguém, serão mais facilmente aceitáveis informações que a corroborem do que outras que a contrariem, como também já comprovou a psicologia social pelo denominado “efeito primazia”, revelando que as informações posteriores a respeito de alguém são, em geral, consideradas no contexto da informação inicial recebida [4], a qual exerce um direcionamento não apenas das demais cognições a respeito da respectiva pessoa como também do comportamento em relação a ela, fundamento do jargão popular de que “a primeira impressão é a que fica” [5]?

Porque se não há dificuldade, como é que se pode duvidar da inevitável contaminação do juiz pela investigação preliminar na estrutura processual penal atual, considerando que os elementos investigativos constantes no inquérito (entre outros sistemas de investigação), unilaterais por natureza, são as primeiras informações/impressões disponíveis ao juiz a respeito do fato, as quais exercerão forte influência sobre as informações posteriores recebidas no processo, no sentido de adequação a essa primeira imagem mental, para evitar dissonância cognitiva e seus efeitos perniciosos correlatos?

Mais: como é que se pode esperar que um juiz, depois de decretar uma série de medidas restritivas de direitos fundamentais com base nesse mesmo arcabouço informativo parcial interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e fiscal e até prisões cautelares —, reforçando cada vez mais a conformação da sua cognição contra o investigado, receba a versão dos fatos apresentada pela defesa na futura fase processual com a mesma tranquilidade cognitiva que receberá a versão da acusação?

Simplesmente não há como concordar com todas essas problematizações ao mesmo tempo. Ou se adere ao argumento inicial fundamentado teórica e empiricamente ou se adere a uma negação genérica e irracional, sem fundamento algum.

E nem precisariam ter sido testadas tais hipóteses teóricas na própria dinâmica de um processo penal concreto para se concluir que o juiz condena mais frequentemente quando conhece a investigação preliminar do que quando é apresentado aos fatos somente na fase processual. Mas foram [6], havendo, inclusive, subsídio empírico específico atualmente para se comprovar que sem juiz das garantias o juiz não passa de um terceiro manipulado no processo penal.

Aliás, tal pesquisa evidencia também outro ponto fundamental à criação do juiz das garantias: a indispensabilidade da exclusão física (ou não inclusão) dos autos do inquérito, exceto provas de natureza cautelar, antecipadas e irrepetíveis [7], sob pena de se esvaziar complemente a eficácia da proposta, na medida em que o contato direto do juiz da fase processual com tais elementos investigativos unilaterais impede, por tudo o que aqui se viu, a preservação da sua necessária originalidade cognitiva para instruir e julgar o caso. 

Em suma, ou se permanece na fantasia infantil de que a jurisdição criminal brasileira é exercida por seres dotados de superpoderes imunes a fenômenos naturais à condição humana ou se admite a falibilidade das decisões e dos julgamentos humanos, sempre influenciados por pré-julgamentos e pré-conceitos, reconhecendo-se a imprescindibilidade do juiz das garantias para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva vigente no processo penal brasileiro.

Ruiz Ritter é advogado criminalista, professor de Direito Processual Penal, doutorando, mestre e especialista em Ciências Criminais (PUC-RS), especialista em Direito Administrativo (PUC-MG) e presidente da Comissão de Direito Penal da OAB-NH.

 é advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor titular da PUCRS.