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Raphael Torti: O transporte marítimo na Covid-19

Em um cenário de crise sanitária e econômica mundial, o transporte marítimo, responsável por 95% [1] das cargas importadas e exportadas pelo Brasil, demanda especial atenção e proteção estatal. Nesse prisma, por meio do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, e da posterior Medida Provisória 945/20, de 4 de abril do corrente ano, a atividade de transporte aquaviário e a operação portuária, respectivamente, foram incluídas pelo governo federal entre os serviços essenciais.

Seguindo a mesma linha, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) publicou a Resolução nº 7.653/20, por meio da qual foram vedadas práticas de restrição à circulação de trabalhadores e cargas portuárias que possam afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, além de acarretar o desabastecimento de gêneros necessários à população.

Contudo, ao mesmo tempo em que tais normas definem que as atividades portuárias e de transporte aquaviário de cargas não podem ser obstaculizadas, preveem também a aplicação de medidas de controle sanitário, visando a segurança da prática a todos os agentes envolvidos.

Nesse contexto, a Anvisa, por meio da Norma Técnica nº 47, além de reapresentar as exigências de cunho sanitário já previstas pelas Resoluções da Diretoria Colegiada (RDCs) de nº 72, 56 e 21, trouxe novas precauções com o fito de evitar novas contaminações.

Dessa forma, administradoras portuárias, trabalhadores portuários, empresas marítimas de carga ou de transporte de passageiros, equipes embarcadas em plataformas marítimas e, inclusive, os próprios servidores de fiscalização sanitária nos portos precisam estar atentos ao cumprimento tanto das antigas quanto das novas cautelas de segurança.

Assim, além do uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), do afastamento dos trabalhadores integrantes do grupo de risco, da aplicação de exames médicos admissionais, da higienização dos locais e equipamentos, bem como de outras medidas de controle aplicáveis aos que circulam pelo porto, insta destacar que, caso uma embarcação provenha de país considerado de risco, devem os tripulantes e passageiros aguardar o término de 21 dias de quarentena, contados desde a saída do local de origem, para então desembarcar.

Destaque-se que o Livro Médico de Bordo passou a ser documento obrigatório para a emissão do Certificado de Livre Prática, por ser nele onde o comandante deve registrar as ocorrências a bordo, devendo ser apresentado junto com a Declaração Marítima de Saúde, a Lista de Viajantes e a cópia do Certificado de Controle Sanitário de Bordo ou do Certificado de Isenção de Controle Sanitário de Bordo.

É de se ressaltar, por fim, que tais medidas mostram-se necessárias, uma vez que os portos configuram-se como áreas de fronteira, sendo vitais tanto para viabilidade econômica do país como para o combate à entrada de novos casos de contaminação em território nacional.

[1] https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/infraestrutura/comercio-maritimo-resiste-no-trimestre-mas-e-preciso-garantir-operacoes-para-enfrentar-pandemia/

 é advogado especialista em Contencioso Cível Geral no escritório Martorelli Advogados.

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Frazão e Carvalho: O Cade e o caso da THC2

Mercados regulados são regidos por verdadeiro entrecruzamento de distintos regimes jurídicos, entre os quais o regulatório, o concorrencial e o privado, em relação aos quais se deve buscar a necessária harmonização. Entretanto, isso não vem ocorrendo no setor portuário, essencial e estratégico para inúmeras cadeias de produção e consumo, no qual a dissonância entre as três esferas apontadas vem causando inúmeros problemas.

Caso sintomático é a chamada THC2 (Terminal Handling Charge-2) ou SSE (Serviço de Entrega de Contêineres), que consiste no preço cobrado por operadores portuários ou seja, empresas com píer de atracação — das instalações portuárias alfandegadas (IPAs), nas quais é feita a armazenagem de cargas.

Como é evidente, o operador portuário, por receber a carga, tem a obrigação de proceder à descarga dos contêineres, movimentando-os em terra até a entrega no portão do terminal para que, então, possam ser transportados para espaços de armazenagem localizados fora das dependências do operador portuário. O transporte e a movimentação de mercadorias da embarcação até os portões do terminal são geralmente conhecidos como “capatazia”, serviço remunerado pela THC, preço que abarca os serviços básicos do operador portuário na movimentação em terra das mercadorias.

É preciso mencionar que o armador é responsável pela entrega da carga ao destinatário final, no porto de destino por este escolhido. Para viabilizar a entrega da carga ao importador, o armador contrata um dos operadores portuários atuantes naquele porto de destino para realizar a atracação, estiva e movimentação horizontal das cargas em terra, do navio até o portão do terminal. Por conseguinte, a entrega dos bens no portão do terminal e a consequente liberação de contêineres são obrigações do operador portuário que decorrem de sua relação contratual com o armador.

Descarregada a mercadoria, esta poderá, a critério do importador, ser armazenada em recintos alfandegados do próprio operador portuário ou de IPAs, que, portanto, são concorrentes dos operadores portuários. Dessa maneira, caso o importador opte pelo armazenamento em uma IPA, a obrigação do armador terminará no momento em que o recinto receber a carga.

O imbróglio relacionado à THC2 decorre do fato de que os operadores portuários alegam existir serviços adicionais relativos à liberação de contêineres que deveriam ser cobrados diretamente das IPAs. Embora não haja efetivamente qualquer serviço diferente da já mencionada entrega da mercadoria, os operadores portuários criaram artificialmente um serviço que, na prática, não existe tão somente para aumentar os custos das IPAs, o que ocorre por meio da cobrança da chamada THC2 ou SSE.

A THC2, por conseguinte, é uma segunda cobrança por supostos serviços “adicionais” de movimentação lateral de cargas até os portões do terminal portuário, sempre que estas sejam direcionadas às IPAs, ou seja, ao agente econômico encarregado de recolher as cargas no portão e então armazená-las. As IPAs, cabe notar, não podem escolher o operador portuário de que retirarão os contêineres, pois se trata de escolha do armador. Assim, cabe às IPAs simplesmente recolher contêineres de seus clientes após serem desembarcados. Dessa maneira, não há nem serviço adicional nem qualquer relação contratual entre operadores portuários e IPAs, razão pela qual, mesmo sob o prisma exclusivamente contratual, já se pode concluir pelo descabimento da cobrança da THC2.

Ocorre que, longe de se restringir a mero problema de Direito privado, o impasse tem claros contornos concorrenciais, pois, mediante a cobrança de THC2, os operadores portuários passam a interferir diretamente nos custos das IPAs e, por conseguinte, nos preços de armazenagem praticados por tais agentes. Tal capacidade de interferência é perigosa, pois o operador portuário concorre com as IPAs no mercado de armazenagem, motivo pelo qual, ao ter a prerrogativa de interferir artificialmente sobre os custos de suas concorrentes, tem todos os incentivos para dificultar ou mesmo eliminar a concorrência no referido mercado.

Não é sem razão que o Cade consolidou jurisprudência no sentido de que a THC2 tem alto potencial anticompetitivo, por constituir meio pelo qual o operador portuário se vale de sua posição monopolista para impor custos artificiais e injustificados aos seus concorrentes. Tal posicionamento do Cade foi sintetizado pelo conselheiro Paulo Burnier da Silveira na afirmação de que “a cobrança da taxa THC2 representa um verdadeiro aumento artificial de custo de rival” [1].

Não obstante, a ANTAQ sempre assumiu posição confusa e errática quanto ao tema. Basta lembrar que, ao analisar a Resolução nº 2.389/2012, que servira de pretexto para a cobrança abusiva da THC2, o Tribunal de Contas da União constatou a existência de graves falhas procedimentais da ANTAQ ao editar o referido ato normativo, chegando a multar os diretores que aprovaram a norma sem nenhum cuidado e a despeito dos alertas da área técnica da agência [2]. O próprio ministro Walton de Alencar Rodrigues asseverou que a THC2 nada mais seria do que uma “jaboticaba”, cobrança existente apenas no Brasil, cuja finalidade seria apenas a de criar novos custos na área portuária. Mais do que isso, o ministro é muito claro ao afirmar que a autorização da cobrança da THC2 pela ANTAQ seria reflexo de “um órgão que foi simplesmente capturado pelos interesses que ela deveria regular”.

O TCU, dessa maneira, registrou a inadequação do posicionamento da ANTAQ quanto à THC2, que mantinha regulamentação eivada de vícios procedimentais e que resultava do processo de captura.

Surpreendentemente, as discussões sobre a THC2, que pareciam já sedimentadas, voltaram a surgir quando, em 2019, a ANTAQ elaborou sua Resolução Normativa nº. 34/2019, que passou a tratar expressamente da THC2 (ou SSE Serviço de Segregação e Entrega de contêineres) e a afirmar que tal cobrança não compõe a cesta de serviços paga pelo armador ao operador portuário (ou seja, a THC). Por meio da aludida resolução, a ANTAQ deixou a cargo dos operadores portuários a definição dos preços máximos a serem cobrados a título de THC2 e fixou para si a competência de revê-los na hipótese de restar demonstrada a verossimilhança de que exista abuso ilegal.

Diante disso, diversas manifestações e matérias jornalísticas, muitas das quais interessadas, surgiram para sustentar que a ANTAQ teria resolvido o problema de uma vez por todas, ao reconhecer a existência e a viabilidade de cobrança de THC2. No entanto, a norma da ANTAQ vai de encontro ao entendimento pacífico de que a cobrança é abusiva não pela ausência de previsão regulamentar, mas sobretudo por não haver razão ou serviço adicional que a justifique e pelas diversas peculiaridades que revelam seu caráter anticompetitivo.

De maneira igualmente surpreendente, veio a Superintendência-Geral do Cade aderir a tal entendimento no âmbito da Nota Técnica 7/2020/CGAA3/SGA1/SG/Cade, em que, não obstante reconheça a jurisprudência do Cade sobre o caráter anticompetitivo da THC2, entendeu que a Resolução ANTAQ nº. 34/2019 “colocou fim à discussão sobre os serviços cobertos pela box rate”.  Em outras palavras, parece que a SG admitiu que a ANTAQ tem o poder de legitimar conduta anticompetitiva por simples ato de vontade, sem qualquer justificativa idônea.

Vale ressaltar que a Resolução Normativa nº. 34/2019 vem sendo reiteradamente questionada, tanto na seara administrativa quanto perante o Judiciário, em virtude dos graves vícios procedimentais em sua tramitação. Entre os inúmeros vícios, encontra-se a inexistência de verdadeira análise de impacto regulatório, ao arrepio do artigo 5º da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) e do artigo 21 da LINDB. Na verdade, o que a ANTAQ fez foi tentar aproveitar como análise de impacto regulatório atos que jamais poderiam ser considerados como tal.

Na verdade, o exame da resolução da ANTAQ mostra que se trata de puro e simples ato de poder, sem qualquer fundamento jurídico ou econômico que o justificasse e sem qualquer endereçamento dos já conhecidos problemas concorrenciais.

No caso concreto, o ônus argumentativo da agência reguladora seria ainda maior, na medida em que tanto o Cade quanto o TCU já atestaram os prejuízos à eficiência da operação portuária decorrentes da cobrança de THC2, sobretudo por se basear em serviço inexistente e por atribuir ao operador portuário a capacidade de alterar artificialmente os custos de seus concorrentes e, assim, potencialmente eliminá-los do mercado de armazenagem alfandegada.

Dessa maneira, já seria absolutamente questionável que uma questão com esse grau de importância fosse resolvida com base no decisionismo formalista da agência reguladora. Mais preocupante ainda é admitir que uma questão assim seja resolvida por decisionismo que nem mesmo obedeceu às regras formais essenciais para a sua validade.

Por essas razões, não pode o Cade ceder tão facilmente à resolução que padece de diversos vícios formais incontornáveis e ainda é manifesta e intencionalmente atentatória às normas concorrenciais.

Ao contrário do que muitos vêm procurando defender, não há nada de novo para justificar a legitimidade da THC2. Subsistem todos os riscos concorrenciais que deram ensejo à construção da bem fundamentada jurisprudência do Cade, os quais foram solenemente ignorados pela nova regulação. Subsistem, por igual, as preocupações do TCU ao apontar que se trata de serviço inexistente, que só existe no Brasil em virtude de um movimento empreendido por determinados agentes do setor e que resultou na captura da ANTAQ.

Conclui-se, portanto, que, por mais que o Cade tenha que levar em consideração, como regra, a posição do regulador nos mercados regulados, é inequívoco que não pode retroceder diante de regulações que são manifestamente inválidas, seja sob o aspecto formal, seja sob o aspecto substancial.

Na verdade, a atual resolução da ANTAQ, ao chancelar, de forma injustificada e desmotivada, a persistência de práticas anticompetitivas, é nítido exemplo de abuso de poder regulatório, pois cria reserva de mercado em favor dos operadores portuários, em detrimento das IPAs, em total violação ao artigo 4º, I, da Lei de Liberdade Econômica. Diante da ilegalidade da resolução, ela jamais poderia ser invocada para afastar a competência do Cade para o exame da questão e muito menos para justificar a modificação da sua jurisprudência.

Dessa maneira, diante dos vícios formais e do abuso de poder regulatório por parte da ANTAQ, não há qualquer razão legítima que impeça ou tolha o exercício, por parte do Cade, da sua importante competência de assegurar a concorrência no setor portuário. Pelo contrário, a atuação do Cade é cada vez mais necessária e urgente.

Angelo Prata de Carvalho é advogado, professor voluntário na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, doutorando e mestre em Direito na Universidade de Brasília.

 é advogada, professora associada de Direito Civil e Comercial na UnB, ex-conselheira do Cade e ex-diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

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Uytdenbroek: A Lei de Fauna do Espírito Santo

O presente debate traz a reflexão do ponto de vista ambiental sobre o perigo do ingresso de espécimes invasoras de animais silvestres no estado do Espírito Santo, que pode vir a ser exemplo para os demais entes federativos.

No âmbito nacional, a Lei nº 5.197/67, em seu artigo 4º, cuidou da proibição de espécimes introduzidas no país sem o devido parecer técnico oficial favorável, além da necessária licença expedida na forma da lei pelas autoridades competentes. Significa dizer que um cidadão ao ingressar no país portando um animal diverso dos aqui já conhecidos, mesmo que o ser vivo possa aparentar certa inofensividade, terá de submeter o animal ao crivo das autoridades portuárias ou aeroportuárias responsáveis pela análise de risco do ingresso daquele ser vivo no país.

Embora seja louvável o intuito do legislador nacional, restavam lacunas normativas a serem preenchidas, demandando do poder público explicações e orientações mais precisas sobre as espécies invasoras.

Depois tramitar por alguns anos no Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), autarquia ambiental capixaba, e na Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Seama), sendo submetido de igual modo à apreciação de outros órgãos envolvidos na contribuição da construção da norma, saiu do forno um projeto de lei complementar que instituiu a Política Estadual de Proteção à Fauna Silvestre no Estado do Espírito Santo. Logo, a Lei Complementar nº 936, publicada em dezembro de 2019, em minúcias, aborda o tema com merecido zelo e controle na tratativa do ingresso de espécimes que não são nativas do estado e tampouco do país. Em outras palavras, a norma capixaba visa a estancar a entrada de seres contaminados, portadores de doenças desconhecidas e, sobretudo, invasores disseminadores de doenças capazes de contaminar outros seres vivos que habitam no estado, provocando danos sanitários e econômicos.

A lei capixaba trouxe expressividade no tema entorno da saúde pública, particularmente no que trata do constante risco do ingresso de espécimes invasoras no Estado. Como informado, a norma em apreço serve de exemplo para os demais entes federativos, mormente àqueles que possuem portos e aeroportos destinados a importação e exportação, cujo ingresso de animais se torna mais propício e facilitador.

Pois entre outros tópicos relevantes ao meio ambiente, em tempos de Covid-19, destaco um que chama atenção, que é o dispositivo previsto no artigo 2º, inciso V, da Lei Complementar nº 936/2019, cuja redação esclarece o que é fauna exótica invasora: “Espécie introduzida a um ecossistema do qual não faz parte originalmente, mas onde se adapta e passa a exercer dominância, prejudicando processos naturais e espécies nativas, podendo causar prejuízos de ordem econômica e social”.

Numa rápida leitura, percebemos que o portador de animal silvestre, mesmo sem saber a origem da espécie, acreditando ser um animal doméstico e comum em outros países, é obrigado a submeter o ser vivo ao filtro das autoridades ambientais competentes, sob pena de incorrer em pena de elevada multa (artigo 20 da LC nº 963/2019). Observe que a mera omissão do portador do animal é suficiente para aplicação da penalidade pelas autoridades públicas.

O cuidado para barrar o ingresso de animais exóticos é uma preocupação cada vez mais latente nos dias hoje, principalmente quando fontes extraídas da Organização Nacional da Saúde (OMS) imputam o surgimento da Covid-19 ao consumo humano de animais portadores de doenças desconhecidas.

À guisa de exemplo, importa recordar o ingresso do peixe bagre-africano (Clarias Gariepinus[1] no Brasil. Em meados da década de 80, o peixe foi inicialmente introduzido na aquacultura, com objetivos econômicos. Mas, quando os especialistas perceberam o completo descontrole da espécie predadora natural e, o que é pior, de elevada resistência em ambientes diversos e inóspitos, já era tarde. Descobriu-se um animal de poucos predadores naturais e com possibilidade de adaptação em diversos biomas. O bagre-africano é capaz de sobreviver em condições precárias, águas sujas, alimentando-se de outros peixes, pequenos pássaros, anfíbios, répteis, caranguejos e plantas, sendo um ser resistente que, com suas fortes nadadeiras, é capaz de atravessar sítios e córregos de um canto para outro, procurando alimentos e melhores condições de reprodução. Vale dizer, é um animal devastador, causador de dano, e ninguém imaginava, na década de 80, o tamanho do estrago que o peixe poderia fazer.

Nesse cenário, a norma estadual capixaba inova ao trazer um mecanismo de segurança ao estado, permitindo que as autoridades ambientais competentes controlem o ingresso de espécimes invasoras, prevenindo dessa forma, a disseminação e possível transmissão de doenças até então desconhecidas, como era a Covid-19.