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Aragão: A crise no Direito contratual e obrigacional

Crise no Direito privado contratual e obrigacional é a perturbação extrema e suprema dos equilíbrios obrigacionais e contratuais em determinado período de tempo, em razão de uma desarticulação global da economia nacional, que causa assimetria e holdup entre os parceiros contratuais, com elevação de custos obrigacionais imprevisíveis e a impossibilidade de se cumprir o que fora tratado em tempos de normalidade, com a consequente alteração da ambiência negocial e quebra da base do negócio jurídico, pondo em risco a sobrevivência financeira de um dos contratantes. Tais fatores justificam medidas legislativas supremas, genéricas e objetivas para salvar o contratante mais fraco e evitar as incertezas e altos custos de uma demanda judicial.

Apesar das relações privadas entre empresas e consumidor resultarem, invariavelmente, em relações obrigacionais contratuais e, porquanto, reguladas pelo mercado privado e pela autonomia da vontade, em tempos de crise econômica e financeira nacional, é preciso que se crie legislação temporária para a proteção das partes contratantes mais fracas (empresas de porte financeiro inferior, Empresas endividadas, consumidores, inquilinos etc) quanto aos contratos firmados anteriormente ao período da crise da Covid-19 e cujos efeitos obrigacionais se projetam para os tempos de crise atual.

Para esses contratos, deve haver legislação de proteção contra os efeitos do descumprimento das partes desfavorecidas no contrato, ainda que a legislação civil brasileira tenha mecanismos de proteção, é importante as regras ficarem claras para se evitar a chuva de ações na Justiça e aumento dos custos com defesa dos interesses da parte, já fragilizada, por sua situação financeira declinante.

A legislação temporária da crise, se faz necessária no direito privado contratual e obrigacional, para se evitar o oportunismo contratual causado pelo aumento dos custos do cumprimento da obrigação e dos custos com disputas judiciais em razão da quebra da base da base do negócio jurídico anteriormente firmado, o que chamamos de holdup.

A legislação ordinária da crise também é uma forma de se evitar o capitalismo selvagem, em que o mais forte aniquila o mais fraco. É de se ressaltar que o contrato que fora estudado e pensado em tempos de normalidade, ainda que com os riscos ordinários devidamente calculados (risco da atividade negocial), não pode se transformar numa sentença de morte ou mesmo em uma roleta russa, quando ocorrem eventos imprevisíveis, extraordinários e inevitáveis, ainda que expectativas de direito tenham sido criadas. É a preservação da igualdade negocial sobre a realidade da desigualdade do fato, causada pela desfactualização dos tempos de normalidade.

Sem uma solução legislativa para a crise, as discussões e argumentações sobre o Direito na crise levarão ao inchaço do Judiciário em razão da inexistência de alternativas legislativas com solução temporária e essa discussão nos tribunais de caso a caso, além de custosa para as partes e para o poder público, tornar-se-ia inconveniente e de impossível solução no curto prazo, se arrastando durante anos, mesmo após o término da crise. Ademais, devemos considerar que, no Judiciário, temos juízes positivistas que decidirão de acordo com o Direito positivo posto, diga-se, Direito este pensado e criado para tempos de normalidade, e outros magistrados que se importam mais com os efeitos econômicos e transcendentais de suas decisões junto aos jurisdicionados. Trata-se, na verdade, quando temos a ausência de legislação específica e temporária da crise para regular os descumprimentos, de uma loteria jurídica, que será decidida pelo setor de distribuição dos tribunais. Para se evitar o inchaço do Judiciário, é preciso que a legislação da crise deixe muito claras as formas de solução dos conflitos nos casos de descumprimento de obrigações contratualmente assumidas em tempos de normalidade.

Nos tempos de crise há, inevitavelmente, confronto com o Direito e princípios jurídicos criados em tempos de normalidade, em razão do caráter de urgência que se impôs. Porém, as partes favorecidas pela crise, os oportunistas contratuais, alegam em seu favor que a legislação da crise é um verdadeiro ataque aos direitos adquiridos e ao princípio da confiança contratual.

Segundo Jorge Barcelar Gouveia e Nuno Piçarra [1], temos os argumentos contra legislação da crise que se assentam numa presunção de normalidade ou continuidade que é o seguinte: bondade em manter as situações; consolidação das situações perfeitas (direitos adquiridos, coisa julgada e força normativa do habitual consumado); assimilação entre o real e o previsível; respeito pelas expectativas de direito. Temos, em contrapartida, a argumentação a favor da legislação da crise, com base na argumentação do imprevisto e do extraordinário: mudança dos fatos; imprevisibilidade da mudança e singularidade da mudança.

Contudo, resta claro que a assertiva de que o que valeu antes deve valer depois, são mitigados pelos seguintes argumentos: o Direito em tempos de normalidade somente não será suspenso ou mitigado se o contexto factual de aquisição desse direito não se alterou nos tempos de crise (ceteris paribus e rebus sic stantibus) e que a legislação dos tempos de normalidade deve ser modificada em correspondência com as modificações que ocorram na hipótese fática da aquisição do direito específico (mutatis mutandis) [2].

A mensagem de veto 331 de 10 de junho de 2020, foi a seguinte [3]:

“Capítulo IV, artigos 6º e 7º

DA RESILIÇÃO, RESOLUÇÃO E REVISÃO DOS CONTRATOS

Artigo 6º — As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no artigo 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.

Artigo 7º  Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.

§1º  As regras sobre revisão contratual previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.

§2º  Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários”.

Razões dos vetos
“A propositura legislativa, contraria o interesse público, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva”.

De fato a legislação brasileira tem mecanismos de proteção para esses tempos de crise. Os decretos de calamidade pública federal e os decretos de estado de emergência editados pelos Estados e municípios já caracterizam a força maior prevista no artigo 393 e seu parágrafo único do Código Civil Brasileiro. O isolamento social, necessário, ressalte-se, tornou muitas obrigações impossíveis de serem cumpridas e, assim sendo, aplica-se o artigo 248 do Código civil.

O pacto social de convivência e boa-fé, em que não se permite ninguém lesar ninguém, faz com que as cláusulas penais dos contratos sejam mitigadas neste momento e repactuadas em razão da imprevisibilidade (artigo 317 do CCB). O que se espera é que o seu parceiro contratual, seja leal, compreensivo, compassivo e solidário, pois não pode o contrato, assinado em uma outra ambiência social e negocial, tornar-se uma sentença de morte financeira ou econômica (aplica-se aqui para a interpretação dos contratos, também para momentos de crise, os incisos III e V do §1° do artigo 113 do CCB).

O artigo 422 do Código Civil expressa que os parceiros contratuais devem guardar tanto na conclusão como na sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.

E não é só!

Embora o artigo 421-A do CCB expresse que presume-se que os contratos empresariais são paritários e simétricos e que as alocações de riscos neles definidas devem ser respeitadas e preservadas (inciso II do artigo 421-A), também expressa que a revisão contratual poderá ocorrer de maneira excepcional (inciso III do artigo 421-A), justamente o momento em que vivemos da crise da Covid-19.

A redução do valor da parcela (obrigação de pagar) tornou-se possível se extremamente excessiva para a parte com essa obrigação, em razão da perda de receita em virtude do isolamento social e seu efeito cascata. Por certo, os contratos, após firmados, geram expectativa de direito, mas se a obrigação se tornou impossível de cumprir, aplicam-se os artigos 248 c/c 478 c/c 317 todos do CCB, mas se ainda há possibilidade de cumpri-la mediante uma redução proporcional aos impactos financeiros sofridos pela parte com obrigação de pagar, aplicam-se os artigos 479 c/c 480 ambos do CCB, por mais específica que seja a lei de regência do contrato.

Temos também a hipótese do risco de não cumprimento de uma das partes contratantes na obrigação de dar (entregar) coisa certa por perda considerável em seu patrimônio, neste caso, como efeito colateral do isolamento social, pode a outra parte recusar-se a cumprir com a obrigação que lhe incumbe até que o outro contratante satisfaça a obrigação que lhe compete ou lhe dê garantias (artigo 477 do CCB).

Para as pessoas físicas, nas relações de consumo, no que diz respeito ao não cumprimento da obrigação impossível, aplicam-se os artigos 248 c/c 317 c/c 478 do CCB por ser fonte subsidiária do CDC e, também, em razão da teoria do diálogo das fontes. Porém, há permissivo legal no CDC para a revisão dos contratos das prestações que tornarem-se excessivamente onerosas em razão de fatos supervenientes à conclusão do contrato (inciso V do artigo 6° do CDC).

Ademais, as regras de consumo são normas de ordem pública (artigo 1° CDC) e sua política tem por objetivo o atendimento as necessidades do consumidor, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria de sua qualidade de vida, entre outros. Para tanto, exige o código consumerista que haja harmonização de interesses dos participantes das relações de consumo sempre com base na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores (inciso III do artigo 4 do CDC).

Por fim, para os todos os casos em que sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, por mais específica que seja a lei de regência do contrato, isso em razão de sempre o Código Civil ser sua fonte subsidiária, ou mesmo em razão da teoria do diálogo das fontes, ou em razão do que expressa o artigo 5° da LINDB, que determina que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e ás exigências do bem comum.

Contudo, o que se espera não é que TODAS as questões de descumprimento de obrigações causadas pela alteração da ambiência negocial e da quebra da base do negócio jurídico, por questões extraordinárias, imprevisíveis e inevitáveis pelo ser humano, fiquem ao alvedrio de parceiros contratuais oportunistas e que, para defesa de seus interesses, o parceiro contratual que já está com suas forças psicológicas e financeiras prejudicadas pela crise, tenha que suportar os custos da defesa de seus interesses no judiciário com a incerteza de sucesso, vez que, se sua ação for distribuída para um juiz positivista, que adota a teoria da “santidade dos contratos” (pacta sunt servanda) e que entende que todas essas mazelas estão contidas no risco da atividade empresarial, o contrato que fora firmado para ser um bom negócio se tornou, na verdade, em uma sentença de morte financeira. Para se evitar que tal ocorra, é que precisamos ter uma legislação de crise para o direito privado obrigacional e contratual, objetiva e dirigida para o descumprimento de obrigações como forma de proteção do holdup.

 é advogado, professor de graduação e pós-graduação de Direito, presidente de comissão da OAB-RJ e membro de comissão da OAB nacional.

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Jonas Lima: Pagamento antecipado em licitações e outras inovações

A instabilidade de condições comerciais e a dificuldade de obtenção de produtos de combate à epidemia da Covid, nos mercados nacional e internacional, além da oscilação cambial atípica e dos obstáculos logísticos, levaram à edição da Medida Provisória nº 961, de 06 de maio de 2020, que chegou quebrando paradigmas das licitações e contratações públicas.

1 – Elevação de valores para dispensa de licitação
Ante a necessidade de melhor suprir as demandas imediatas de menor porte, corrigindo a defasagem de limites de valores de dispensa de licitação da Lei nº 8.666/93, a medida provisória, em seu artigo 1º, inciso I, eleva, para a administração pública, em todos os entes federativos, de todos os Poderes e órgãos constitucionalmente autônomos, os valores de obras e serviços de engenharia, antes de R$ 33.000,00, para R$ 100.000,00, além dos valores das compras e outros serviços, antes de R$ 17.600,00, para R$ 50.000,00.

Com isso, ficam valores idênticos aos constantes da Lei nº 13.303/2016 (Estatuto das Estatais).

2 – Pagamento antecipado em licitações e contratos
Em meio à pandemia, quando um negócio era tratado, até que ocorressem as etapas formais de contratação e a importação de produtos médico-hospitalares, as condições já não ficaram mais viáveis para a concretização do contrato, que acabava com entrega de produtos não realizada, sendo detectado que um dos principais fatores era a exigência de fabricantes internacionais de que pagamentos fossem feitos de forma antecipada, diante de pressão de demandantes públicos ou privados de vários países.

Para superar a dificuldade em relação ao pagamento, que para estrangeiros e brasileiros tinha um fator de risco de recebimento, o que afastava muitos fornecedores, houve a necessidade de ceder e aceitar as condições do mercado atual, como se encontra não apenas no Brasil, mas no exterior, de onde a maioria dos produtos, como testes de diagnóstico e outros, além de insumos, ainda estão sendo trazidos.

Assim, o artigo 1º, inciso II, da medida provisória, autoriza o pagamento antecipado nas licitações e nos contratos pela Administração em duas hipóteses:

a) represente condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço (no mercado atual, diante da pandemia, muitos fornecedores, especialmente estrangeiros, somente trabalham dessa forma); OU

b) propicie significativa economia de recursos (o estado consegue ganho ao passo que incentiva o particular a fechar o negócio).

Mas para que o pagamento antecipado possa ser adotado foram estabelecidos requisitos a cargo da administração, como cautelas obrigatórias:

I – prever a antecipação de pagamento em edital ou em instrumento formal de adjudicação direta (para que se tenha vinculação e segurança jurídica desde início do processo de compra); e

II – exigir a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto (algo que espelha jurisprudência de anos do Tribunal de Contas da União, no sentido de que, para adiantar pagamentos, superando normas da Lei nº 4.320 e da Lei nº 8.666, se deveria exigir garantia do valor antecipado com recursos públicos).

Facultativamente, como se depreende do termo “poderá”, segundo o parágrafo segundo da norma, algumas medidas podem ser adotadas, para a segurança da contratação, que devem ser hábeis a reduzir o risco de inadimplemento contratual, tais como (rol exemplificativo):

I – a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente (pagamento com sinal, o que flexibiliza a aceitação por parte dos fornecedores e vai além do que se tem de promessa firme de compra);

II – a prestação de garantia nas modalidades de que trata o art. 56 da Lei nº 8.666, de 1993, de até trinta por cento do valor do objeto (nesse ponto vai além da tradicional jurisprudência do Tribunal de Contas da União ao fixar um percentual específico de garantia, menor que aquele valor adiantado, mas medida justificável agora em face da realidade de mercado na pandemia);

III – a emissão de título de crédito pelo contratado (embora no Brasil isso possa ser factível, para o mercado exterior, nas importações diretas pelos entes públicos, isso pode não ser simples, pois alguns fabricantes e fornecedores não aceitam essa condição e a garantia de outro país vai precisar de segurança de um banco garantidor no Brasil, que possa conferir credibilidade para a execução daquela garantia);

IV – o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração (como enviar previamente técnicos ou autoridades sanitárias brasileiras ao local do embarque no exterior para aferir as características técnicas e as outras especificações e quantidades dos produtos embarcados em uma compra internacional, por exemplo, sendo medidas de mesma natureza muito mais simples para uma compra nacional, para verificação dos produtos, na logística local); e

V – a exigência de certificação do produto ou do fornecedor (esse ponto diz respeito, mais precisamente, a registros como os de ANVISA a agências internacionais congêneres, bem como, certificação de certificação de boas práticas de fabricação de cada unidade fabril).

3 – Ampliação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas
O artigo 1º inciso III, da medida provisória autoriza a aplicação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, de que trata a Lei nº 12.462/2011, para licitações e contratações de quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações, quando antes isso era delimitado aos projetos dos grandes eventos esportivos (Copa, Olimpíadas e outros), aeroportos, PAC, SUS, unidades prisionais, ações em segurança pública, mobilidade urbana, infraestrutura logística e contratos de locação de imóveis comprados, construídos ou com reforma substancial para aquela finalidade específica da demanda da Administração.

Agora, a ampliação do RDC para “quaisquer obras, serviços, compras, alienações e locações” leva a mais consequências inovadoras, como a possibilidade de inversão a fases das licitações e da expansão da idéia de projetosturn key” (“chave na mão”), nos quais o particular tem a liberdade de trabalho desde a concepção de projetos, mas também arca com o conjunto de etapas até a entrega completa de algo funcional, como um hospital por inteiro, com a entrega das chaves.

4 – Vigência limitada mas resultados que se prolongam adiante
Apesar de constar no artigo 2º da medida provisória que as medidas previstas em seu texto se aplicam aos atos realizados durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020 (pandemia da Covid-19), é importante notar que, de acordo com o seu parágrafo único, o disposto na nova norma aplica-se aos contratos firmados no período de que trata o “caput”, do artigo, independentemente do seu prazo ou do prazo de suas prorrogações.

Isso significa fazer até o final do ano contratos em novo ambiente de regulação de contratações pública, mas deixar legados para o futuro, o que chama atenção.

5 – Conclusões
Em síntese, o direito das licitações e contratações públicas tem um novo momento, que deve deixar com pouca expressividade a maioria dos antigos conceitos e normas e até projetos de lei em andamento, porque resultados das inovações dessa medida provisória podem acabar motivando mudanças definitivas.

 é advogado, especialista em licitação pública internacional, sócio do escritório Lima & Curvello Rocha Advogados.