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Aragão: A crise no Direito contratual e obrigacional

Crise no Direito privado contratual e obrigacional é a perturbação extrema e suprema dos equilíbrios obrigacionais e contratuais em determinado período de tempo, em razão de uma desarticulação global da economia nacional, que causa assimetria e holdup entre os parceiros contratuais, com elevação de custos obrigacionais imprevisíveis e a impossibilidade de se cumprir o que fora tratado em tempos de normalidade, com a consequente alteração da ambiência negocial e quebra da base do negócio jurídico, pondo em risco a sobrevivência financeira de um dos contratantes. Tais fatores justificam medidas legislativas supremas, genéricas e objetivas para salvar o contratante mais fraco e evitar as incertezas e altos custos de uma demanda judicial.

Apesar das relações privadas entre empresas e consumidor resultarem, invariavelmente, em relações obrigacionais contratuais e, porquanto, reguladas pelo mercado privado e pela autonomia da vontade, em tempos de crise econômica e financeira nacional, é preciso que se crie legislação temporária para a proteção das partes contratantes mais fracas (empresas de porte financeiro inferior, Empresas endividadas, consumidores, inquilinos etc) quanto aos contratos firmados anteriormente ao período da crise da Covid-19 e cujos efeitos obrigacionais se projetam para os tempos de crise atual.

Para esses contratos, deve haver legislação de proteção contra os efeitos do descumprimento das partes desfavorecidas no contrato, ainda que a legislação civil brasileira tenha mecanismos de proteção, é importante as regras ficarem claras para se evitar a chuva de ações na Justiça e aumento dos custos com defesa dos interesses da parte, já fragilizada, por sua situação financeira declinante.

A legislação temporária da crise, se faz necessária no direito privado contratual e obrigacional, para se evitar o oportunismo contratual causado pelo aumento dos custos do cumprimento da obrigação e dos custos com disputas judiciais em razão da quebra da base da base do negócio jurídico anteriormente firmado, o que chamamos de holdup.

A legislação ordinária da crise também é uma forma de se evitar o capitalismo selvagem, em que o mais forte aniquila o mais fraco. É de se ressaltar que o contrato que fora estudado e pensado em tempos de normalidade, ainda que com os riscos ordinários devidamente calculados (risco da atividade negocial), não pode se transformar numa sentença de morte ou mesmo em uma roleta russa, quando ocorrem eventos imprevisíveis, extraordinários e inevitáveis, ainda que expectativas de direito tenham sido criadas. É a preservação da igualdade negocial sobre a realidade da desigualdade do fato, causada pela desfactualização dos tempos de normalidade.

Sem uma solução legislativa para a crise, as discussões e argumentações sobre o Direito na crise levarão ao inchaço do Judiciário em razão da inexistência de alternativas legislativas com solução temporária e essa discussão nos tribunais de caso a caso, além de custosa para as partes e para o poder público, tornar-se-ia inconveniente e de impossível solução no curto prazo, se arrastando durante anos, mesmo após o término da crise. Ademais, devemos considerar que, no Judiciário, temos juízes positivistas que decidirão de acordo com o Direito positivo posto, diga-se, Direito este pensado e criado para tempos de normalidade, e outros magistrados que se importam mais com os efeitos econômicos e transcendentais de suas decisões junto aos jurisdicionados. Trata-se, na verdade, quando temos a ausência de legislação específica e temporária da crise para regular os descumprimentos, de uma loteria jurídica, que será decidida pelo setor de distribuição dos tribunais. Para se evitar o inchaço do Judiciário, é preciso que a legislação da crise deixe muito claras as formas de solução dos conflitos nos casos de descumprimento de obrigações contratualmente assumidas em tempos de normalidade.

Nos tempos de crise há, inevitavelmente, confronto com o Direito e princípios jurídicos criados em tempos de normalidade, em razão do caráter de urgência que se impôs. Porém, as partes favorecidas pela crise, os oportunistas contratuais, alegam em seu favor que a legislação da crise é um verdadeiro ataque aos direitos adquiridos e ao princípio da confiança contratual.

Segundo Jorge Barcelar Gouveia e Nuno Piçarra [1], temos os argumentos contra legislação da crise que se assentam numa presunção de normalidade ou continuidade que é o seguinte: bondade em manter as situações; consolidação das situações perfeitas (direitos adquiridos, coisa julgada e força normativa do habitual consumado); assimilação entre o real e o previsível; respeito pelas expectativas de direito. Temos, em contrapartida, a argumentação a favor da legislação da crise, com base na argumentação do imprevisto e do extraordinário: mudança dos fatos; imprevisibilidade da mudança e singularidade da mudança.

Contudo, resta claro que a assertiva de que o que valeu antes deve valer depois, são mitigados pelos seguintes argumentos: o Direito em tempos de normalidade somente não será suspenso ou mitigado se o contexto factual de aquisição desse direito não se alterou nos tempos de crise (ceteris paribus e rebus sic stantibus) e que a legislação dos tempos de normalidade deve ser modificada em correspondência com as modificações que ocorram na hipótese fática da aquisição do direito específico (mutatis mutandis) [2].

A mensagem de veto 331 de 10 de junho de 2020, foi a seguinte [3]:

“Capítulo IV, artigos 6º e 7º

DA RESILIÇÃO, RESOLUÇÃO E REVISÃO DOS CONTRATOS

Artigo 6º — As consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no artigo 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.

Artigo 7º  Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário.

§1º  As regras sobre revisão contratual previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e na Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, não se sujeitam ao disposto no caput deste artigo.

§2º  Para os fins desta Lei, as normas de proteção ao consumidor não se aplicam às relações contratuais subordinadas ao Código Civil, incluindo aquelas estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários”.

Razões dos vetos
“A propositura legislativa, contraria o interesse público, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva”.

De fato a legislação brasileira tem mecanismos de proteção para esses tempos de crise. Os decretos de calamidade pública federal e os decretos de estado de emergência editados pelos Estados e municípios já caracterizam a força maior prevista no artigo 393 e seu parágrafo único do Código Civil Brasileiro. O isolamento social, necessário, ressalte-se, tornou muitas obrigações impossíveis de serem cumpridas e, assim sendo, aplica-se o artigo 248 do Código civil.

O pacto social de convivência e boa-fé, em que não se permite ninguém lesar ninguém, faz com que as cláusulas penais dos contratos sejam mitigadas neste momento e repactuadas em razão da imprevisibilidade (artigo 317 do CCB). O que se espera é que o seu parceiro contratual, seja leal, compreensivo, compassivo e solidário, pois não pode o contrato, assinado em uma outra ambiência social e negocial, tornar-se uma sentença de morte financeira ou econômica (aplica-se aqui para a interpretação dos contratos, também para momentos de crise, os incisos III e V do §1° do artigo 113 do CCB).

O artigo 422 do Código Civil expressa que os parceiros contratuais devem guardar tanto na conclusão como na sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.

E não é só!

Embora o artigo 421-A do CCB expresse que presume-se que os contratos empresariais são paritários e simétricos e que as alocações de riscos neles definidas devem ser respeitadas e preservadas (inciso II do artigo 421-A), também expressa que a revisão contratual poderá ocorrer de maneira excepcional (inciso III do artigo 421-A), justamente o momento em que vivemos da crise da Covid-19.

A redução do valor da parcela (obrigação de pagar) tornou-se possível se extremamente excessiva para a parte com essa obrigação, em razão da perda de receita em virtude do isolamento social e seu efeito cascata. Por certo, os contratos, após firmados, geram expectativa de direito, mas se a obrigação se tornou impossível de cumprir, aplicam-se os artigos 248 c/c 478 c/c 317 todos do CCB, mas se ainda há possibilidade de cumpri-la mediante uma redução proporcional aos impactos financeiros sofridos pela parte com obrigação de pagar, aplicam-se os artigos 479 c/c 480 ambos do CCB, por mais específica que seja a lei de regência do contrato.

Temos também a hipótese do risco de não cumprimento de uma das partes contratantes na obrigação de dar (entregar) coisa certa por perda considerável em seu patrimônio, neste caso, como efeito colateral do isolamento social, pode a outra parte recusar-se a cumprir com a obrigação que lhe incumbe até que o outro contratante satisfaça a obrigação que lhe compete ou lhe dê garantias (artigo 477 do CCB).

Para as pessoas físicas, nas relações de consumo, no que diz respeito ao não cumprimento da obrigação impossível, aplicam-se os artigos 248 c/c 317 c/c 478 do CCB por ser fonte subsidiária do CDC e, também, em razão da teoria do diálogo das fontes. Porém, há permissivo legal no CDC para a revisão dos contratos das prestações que tornarem-se excessivamente onerosas em razão de fatos supervenientes à conclusão do contrato (inciso V do artigo 6° do CDC).

Ademais, as regras de consumo são normas de ordem pública (artigo 1° CDC) e sua política tem por objetivo o atendimento as necessidades do consumidor, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria de sua qualidade de vida, entre outros. Para tanto, exige o código consumerista que haja harmonização de interesses dos participantes das relações de consumo sempre com base na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre fornecedores e consumidores (inciso III do artigo 4 do CDC).

Por fim, para os todos os casos em que sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, por mais específica que seja a lei de regência do contrato, isso em razão de sempre o Código Civil ser sua fonte subsidiária, ou mesmo em razão da teoria do diálogo das fontes, ou em razão do que expressa o artigo 5° da LINDB, que determina que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se destina e ás exigências do bem comum.

Contudo, o que se espera não é que TODAS as questões de descumprimento de obrigações causadas pela alteração da ambiência negocial e da quebra da base do negócio jurídico, por questões extraordinárias, imprevisíveis e inevitáveis pelo ser humano, fiquem ao alvedrio de parceiros contratuais oportunistas e que, para defesa de seus interesses, o parceiro contratual que já está com suas forças psicológicas e financeiras prejudicadas pela crise, tenha que suportar os custos da defesa de seus interesses no judiciário com a incerteza de sucesso, vez que, se sua ação for distribuída para um juiz positivista, que adota a teoria da “santidade dos contratos” (pacta sunt servanda) e que entende que todas essas mazelas estão contidas no risco da atividade empresarial, o contrato que fora firmado para ser um bom negócio se tornou, na verdade, em uma sentença de morte financeira. Para se evitar que tal ocorra, é que precisamos ter uma legislação de crise para o direito privado obrigacional e contratual, objetiva e dirigida para o descumprimento de obrigações como forma de proteção do holdup.

 é advogado, professor de graduação e pós-graduação de Direito, presidente de comissão da OAB-RJ e membro de comissão da OAB nacional.

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Carlos Abrão: 15 anos da Lei de Recuperação e Falências

Pajardi, saudoso jurista italiano, diria que vivemos um tempo da falência da falência, exatamente o contraponto que veio a ser instaurado a partir da pandemia na economia. O Diploma nº 11.101/05 teve o principal e inegável mérito de encontrar uma solução legal a fim de que o estado de crise empresarial fosse superado, porém, o grande teste da legislação teve início em 2015, com a entrada de grandes companhias em recuperação judicial, e a derrocada maior aconteceu por força da operação “lava jato”.

Numa escala vetor e de valores, a legislação necessita alteração, não como se apresenta na conjuntura atual, mas pensada, refletida e adaptada. Pequenas e médias empresas não têm fluxo de caixa para pagamentos elevados do administrador e demora excessiva no processamento, a recuperação extrajudicial se revelou tímida e pouco adstrita aos interesses do empresário em dificuldade financeira.

Tínhamos uma lei muito divorciada do seu contexto, mas com o avanço da pandemia o quadro mudou drasticamente, setores como turismo e aviação foram arrebentados e a recuperação não se fará de forma esperada, comércio bem reduzido, aumentando o eletrônico, e uma complicação enorme no setor de serviços. Precisamos destruir os nós que demonstram formalismo e transformar a recuperação em procedimento, e não simples processo municiado de recursos que sobem às instâncias e paralisam a recuperação.

Boa a entrada do produtor rural na recuperação, preenchidos os seus requisitos, mas o que assistimos é a universalização da recuperação invadindo escolas, estabelecimentos de ensino, e até atividades sem fins lucrativos e sem registro de comércio. O futuro marca-se incerto e indeterminado, mas a grande incógnita é, não apenas a mudança legal, marco revolucionário, mas a efetiva aplicação pela Justiça na interpretação dos aspectos de soerguimento da empresa.

Entendemos que o rastro de boa-fé tem sido deixado de lado, raros os casos de afastamento do controlador ou dos maus administradores, e no mais das vezes não podemos conviver com planos que excedem o tempo de duração, sejam constantemente alterados e signifiquem o calote, nos quais a finalidade é de pagar apenas valor simbólico do macro endividamento. Estudos de viabilidade são necessários, não no início do requerimento e seu deferimento, mas o administrador judicial deve ser pró-ativo e evidenciar ao juízo as deformidades do plano e sua consequente impossibilidade de cumprimento.

Um vasto rosário de dúvidas nos identifica com uma legislação moderna mas ao mesmo tempo que se definha rápida e diariamente, na medida em que os problemas contemporâneos são muito mais do que falta de capital de giro ou de caixa, mas envolvem consumo, clientela, ponto, renegociação de luvas e do próprio locativo, já que muitos locadores não ensejam perdas, além do que shopping centers fechados meses a fio terão que abrir mão de participação e mudarão substancialmente as estruturas para se evitar aglomeração mantendo permanente higienização, a exemplo de salas de cinema com menor frequência e público com distância mínima.

O treinamento e a especialização de magistrados é inadiável, a máquina judiciária precisa de investimentos e corpo técnico à altura, muitas cidades pequenas, cujos prefeitos concederam benefícios fiscais para atrair empresas naquelas localidades, o juízo é carente de infraestrutura, donde a circunscrição manteria ao menos um juízo empresarial especializado. A dialética rompe o momento de mera mudança do marco legal, mas sugere um conjunto de medidas para permitir que o devedor se recupere, mas ao mesmo tempo que o credor não seja o único sacrificado. A expressão fortuito ou força maior não pode ter o condão de reescrever completamente o contrato mediante cláusulas e condições que favoreçam apenas uma das partes, a acentuada elevação da moeda estrangeira preocupa aqueles que tem contratos de câmbio e ainda as operações de importação de produtos, já que somos dependentes de insumos. O decálogo produtivo e real do momento atual sinaliza a implementação de medidas tendentes à recuperação do negócio por meio de medidas legais estruturantes

A partir dessa catalogação e consubstanciando o problema maior de não sobrecarregar a máquina judiciária, é essencial não decapitar empresas ou trucidar empresários de forma maquiavélica. A propósito, e considerando a forma sazonal de muitos setores afetados pelo momento de paralisação, temos a ponderar o seguinte:

1) Prazo de 90 dias finda a pandemia para reestruturação amigável;

2) Intervenção das câmaras setoriais para incremento das medidas profiláticas;

3) Devedores que se socorrerem da autofalência poderão ter continuidade automática dos seus negócios com novo ciclo de vida empresarial;

4) Setorialmente as entidades de classe fariam um relatório sobre o reaquecimento econômico e a expectativa de alteração de planos extrajudiciais;

5) Suspensão de todos os processos em curso e de obrigações vencidas por até 180 dias;

6) Pedidos coletivos por setor para fins e efeitos da recuperação judicial obtendo-se uma sentença coletiva que poderia ter execução singular na hipótese de não cumprimento dos padrões globais definidos pelo juízo;

7) Aumento do período de blindagem para as empresas envolvendo sócios e garantes solidários;

8) Convolação de parte substancial da dívida em participação no negócio sem repercutir na responsabilidade solidária ou subsidiária na hipótese de quebra;

9) Pedidos de recuperação durante o período pós pandemia poderão ser publicizados pela rede mundial e registrados na Junta Comercial para conhecimento de terceiros e respectivas impugnações;

10) Contrapartida da redução dos prazos destinados à recuperação de micro e médias empresas até três anos e grandes companhias, cinco anos.

O modelo francês, que tem peculiaridades e maior adaptabilidade, fornece ferramentas para diversas extensões de recuperação, bem diferente da legislação brasileira; chegou o momento e o tempo assim preside que devemos marchar a passos largos para a reconstrução da economia, do cenário do fomento empresarial e prudencialmente de regras inovadoras em termos de possibilitar que empresas saudáveis não se submetam ao regime de extinção fruto da quebra. E uma das conclusões vitais a qual chegamos é que até a pandemia o número de recuperações nos últimos 15 anos superou 25 mil pedidos e doravante o quadro será sombrio no sentido de maior número de quebras e menor recuperação.

Em tempo de recessão, depressão e falta de consumo com a real perda do poder aquisitivo, o Diploma 11.101/05 encerrou um ciclo auspicioso, cabe aos brasileiros vocacionados permitir que a fundação não seja abalada para redimensionar normas econômicas e jurídicas, instrumentos seguros para que não tenhamos terremotos ou tsunamis que causem graves problemas sociais. E para tanto já estamos no limite de buscarmos reformular a lei sem ambicionar milagres econômicos ou recuperações impossíveis, mas pluralmente uma racionalidade maior dentro do contexto adverso contingenciado por um contexto imprevisível e duração indeterminada.

Arregacemos as mangas das camisas e mudemos o que é possível para o monitoramento constante do que pode ser aperfeiçoado e melhorado em termos de ferramentas em prol da atividade produtiva.

 é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, doutor pela USP com especialização em Paris, professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg e autor de obras e artigos.

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Negociação pode ser resposta para recorde de recuperações judiciais

De acordo com algumas consultorias, a crise econômica gerada pela epidemia de Covid-19 pode levar a uma queda significativa do PIB brasileiro — estimada em 8% pelo Banco Mundial. Consequentemente, é provável que haja novo recorde de pedidos de recuperação judicial. O número mais alto havia sido registrado em 2016: 1.872 pedidos, em decorrência dos efeitos da operação “lava jato”.

Para Bryan Mariath  Lopes, recuperação extrajudicial é saída para a atual crise
Divulgação 

As projeções para este ano variam de 2 mil a 4 mil novos pedidos de recuperação judicial até dezembro. As negociações extrajudiciais, contudo, podem constituir uma medida eficaz  para credores e devedores, além de  ajudar a desafogar o Judiciário. Nesse sentido, o CNJ editou a Recomendação 63, com orientações aos juízos para adoção de medidas de mitigação no julgamento de recuperação empresarial e falência diante da realidade do novo coronavírus.

Para o advogado Bryan Mariath  Lopes, ainda não é possível divisar um  aumento exponencial nos pedidos de recuperação judicial  porque as dívidas  das empresas só vão se materializar depois de encerrada a epidemia, mas certamente será em grande número e é necessário saber o momento certo.

“Se a empresa entra em recuperação judicial agora, não vai conseguir incluir todo o prejuízo suportado durante a pandemia, uma vez que para que a dívida seja concursal, deve ter sido contraída até a data do pedido de recuperação judicial. Em contrapartida, se a empresa aguardar o término da pandemia para pedir a recuperação judicial, pode ser tarde demais, pois, para entrar em recuperação judicial, é importante ter caixa, mas a situação atual de paralisação das atividades tem sido um momento de queima do caixa”, afirma.

Para Bryan, a crise da Covid-19 trouxe um cenário novo de “pré-insolvência” para as empresas de todos os portes; a negociação extrajudicial pode ser um caminho para a solução para todos os envolvidos, inclusive o Judiciário.

Ele cita como positivo o dispositivo do PL 1.397/20, que estabelece medidas emergenciais para empresas em recuperação judicial durante o  estado de calamidade pública (20/3 a 31/12/20). O substituto do projeto, já aprovado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado, cria o Sistema de Prevenção à Insolvência, pelo qual credores e devedores devem buscar extrajudicialmente renegociar suas obrigações.

“Sem dúvida é uma excelente alternativa para enfrentar a crise econômica. Esse instituto  da recuperação extrajudicial também está previsto no artigo 161, da Lei 11.101/05, mas ainda é pouco utilizado pelas empresas brasileiras, mas tem muito potencial  nesse momento de crise”, afirma Bryan.

O advogado cita como exemplo de sucesso na recuperação extrajudicial a reestruturação da empresa Tecis Tecnologia, uma das principais  fabricantes e fornecedoras de pás para o setor de energia eólica do mundo.

Na época, possuía uma dívida que ultrapassava o valor de R$ 770 milhões  e teve o seu plano de recuperação extrajudicial aprovado pelos credores, com a posterior homologação pelo juízo da 2ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais de São Paulo. Ele também exemplifica o caso  da empresa Restoque (dona das marcas Le Lis Blanc, Dudalina e John John), que firmou acordo com seus credores através da recuperação extrajudicial, com valor renegociado na ordem de R$ 1,5 bilhão em dívidas.

Segundo Bryan, o caminho extrajudicial  no horizonte da recuperação judicial deve ser sempre levado em conta, pois envolve um procedimento mais ágil, mais flexível, com menos burocracia, o que evita a morosidade inerente à judicialização. “Permite também  maior celeridade na negociação das dívidas; baixos custos; quóruns simplificados, mantém o acesso da empresa ao mercado de crédito e permite que haja negociação apenas com uma determinada classe de credores, para a qual serão definidas novas condições de pagamento, ou seja, há a possibilidade de ser cirúrgico atuando apenas naquela classe de credores que foi afetada pela crise”, comenta.

Na avaliação do advogado, a recuperação extrajudicial representa ainda a possibilidade de os credores receberem os seus créditos através de uma renegociação, com novas condições de pagamentos, o que, no atual cenário, torna-se uma boa alternativa para o credor. E alerta que, ao conceder um novo fôlego para a empresa em dificuldade, o credor assegura o recebimento do seu crédito, pois se ocorrer a quebra da empresa, muito provavelmente não receberia o seu crédito”.

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Fernando Mendes: Ministro Marco Aurélio, 30 anos de STF

Quem é do meio jurídico certamente já ouviu uma história que, embora não verdadeira, ficou folclórica porque se encaixa perfeitamente ao bom humor de sua personagem principal. Um jovem advogado, acompanhado de seu cliente, entra em um elevador e, surpreso, encontra o Ministro Marco Aurélio. Querendo aproveitar a oportunidade para impressionar o cliente, não pensa duas vezes e pergunta: “E aí, Ministro Marco Aurélio, quais são as novidades?”.  Ao que o ministro responde: “Novidade, novidade para mim é essa nossa intimidade”. É impossível não tentar reconstruir a cena mentalmente imaginando a resposta do ministro na entonação de voz que lhe é característica.

Quando fui convidado pela ConJur para escrever esse artigo logo lembrei dessa história pelo fato de ela, de alguma forma, simbolizar o bom humor e espontaneidade que caracterizam o modo com qual o Ministro Marco Aurélio tem atuado nesses 30 anos no Supremo Tribunal Federal, completados no último sábado (13/6).

Ao longo desses últimos dias, várias personalidades do mundo jurídico usaram este espaço para expressar a importância do Ministro Marco Aurélio para a história do Supremo Tribunal Federal, em particular, e do Direito brasileiro, no geral. Vou tentar não ser repetitivo e procurar fazer um recorte e, de tudo o que poderia ser dito em relação ao papel do Ministro Marco Aurélio no STF, chamar a atenção para dois aspectos de sua trajetória profissional que, como juiz federal que sou, me marcam e me servem de modelo: a coerência e o bom humor e espontaneidade no exercício da judicatura.

A coerência da atuação jurisdicional do Ministro Marco Aurélio fez com que ele ficasse durante muito tempo conhecido como “o voto vencido”. Em entrevista que deu à ConJur por ocasião dos seus 25 anos de STF, o ministro afirmou que antes de os julgamentos serem transmitidos pela TV Justiça “(…) certamente deviam imaginar: ‘esse rapaz não entende de nada. Ele está sempre vencido, quase sempre isolado’. Mas fiquei vencido porque tenho, e sempre tive, uma forma de atuar a partir apenas da minha ciência e consciência e da minha formação humanística. E sou muito voluntarioso, como sempre fui, em toda a vida. E não me falta coragem de levantar o dedo e exteriorizar o que penso sobre a matéria em discussão” [1].

A divergência no plenário do Supremo Tribunal Federal é salutar. Se não pela máxima de Nelson Rodrigues recentemente citado pelo ministro em um de seus votos, quando reconheceu que “o subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos” [2], e para quem “toda unanimidade é burra” por tornar as decisões tomadas mais ponderadas.

Em artigo em que estudam a importância dos votos vencidos na história Suprema Corte Americana, Gabriel Wedy e Juarez Freitas [3] relatam que está demonstrado estatisticamente que a possibilidade de dissenso tende a produzir decisões mais ponderadas nos órgãos colegiados do Poder Judiciário americano. Segundo os autores “nas Cortes Federais, por exemplo, compostas de três membros por painel de julgamento, tal fenômeno pode ser comprovado. Quando as decisões são tomadas por painéis compostos apenas por democratas ou só por republicanos, existe boa chance de decisões extremadas no sentido de posições ora liberais, ora conservadores, muito mais radicais do que seriam se os juízes decidissem a causa sozinhos. É que três magistrados ao pensarem em uníssono (liberais ou conservadores), sofrem a propensão de radicalizar se não receberem o contraponto de visão divergente”.

No Brasil ainda não são estudados, com a importância que mereceriam, os chamados votos divergentes no Supremo Tribunal Federal [4]. Nos Estados Unidos, por exemplo, o tema provoca grandes reflexões e importantes obras foram escritas sobre os chamados dissents

Mark Tushnet [5] ao estudar o tema e perguntar “por que divergir?”, lembra que na tradição do Direito Constitucional americano os grandes dissenters, como John Marshal Harlan, Oliver Wendell Holmes, Willian O. Douglas, são celebrados por uma razão clara: foram capazes de ver além de seu tempo e foram reconhecidos pela sabedoria de suas visões constitucionais que destoavam de entendimentos majoritários que acabaram sendo superados.

Dos muitos temas que poderiam ser lembrados em que o voto divergente do Ministro Marco Aurélio acabou, posteriormente, formando a posição majoritária, destacarei dois: o que reconheceu a inconstitucionalidade da proibição da progressão de regime na Lei de Crimes Hediondos e o que impediu a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado.

Exemplo do primeiro voto é o proferido no julgamento do HC 69.657-1, julgado em 18/12/92, há quase 28 anos, em que o ministro afirmou que “Por sinal, a Lei 8.072 ganha, no particular, contornos contraditórios. A um só tempo dispõe sobre o cumprimento da pena no regime fechado, afastando a progressividade, e viabiliza o livramento condicional, ou seja, o retorno do condenado à vida gregária antes mesmo do integral cumprimento da pena e sem que tenha progredido de regime”.

Muito embora esse posicionamento tenha sido vencido à época, foi mais pelo papel que os ministros entendiam que cabia ao Supremo Tribunal Federal e menos pela concordância que tinham com a regra que impedia a progressividade de regime. Tanto que o ministro Francisco Rezek, naquele julgamento, afirmou que “(…) também aqui me parece-me que o raciocínio do relator é o mais percuciente e sensato. Mas não somos uma casa legislativa. Não temos autoridade que tem o legislador para estabelecer a melhor disciplina. Nosso foro é corretivo, e só podemos extirpar do trabalho do legislador ordinário bem ou mal avisado, primoroso ou desastrado aquilo que não pode coexistir com a Constituição.

Quase 14 anos depois, em 23/2/2006, entendendo que essa regra não podia mais coexistir com a Constituição que era a mesma —, o STF deferiu, por 6 a 5, o pedido do HC 82.959 em favor do paciente reconhecendo a inconstitucionalidade do artigo 2º, §1º, da Lei nº 8.072/1990, pela violação do princípio constitucional da isonomia e da individualização da pena.

O segundo tema que merece ser lembrado é a questão da prisão a partir da decisão de segundo grau. Meu posicionamento pessoal sempre foi pela possibilidade do cumprimento da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado e esse foi o entendimento que prevaleceu no STF por mais de 20 anos depois da Constituição Federal de 1988, sendo modificado no julgamento do HC 84.078, em 5/2/2009. Essa foi interpretação que também defendi ao longo dos anos na diretoria da Ajufe, em nome da necessidade de um sistema penal que respeite o devido processo legal mas que seja efetivo e que acabou sendo vencida no julgamento das ADCs 43, 44 e 54, em 7/11/2019. E exatamente por pensar diferente é que faço questão de homenagear e reconhecer a coerência e a integridade do Ministro Marco Aurélio na discussão desse tema.

Ao votar no HC 72.077-3, em 14/2/95, há mais de 25 anos, o ministro afirmou que “Por tais razões, reafirmando a minha crença no texto da Carta Política da República, que em boa hora o Dr. Ulisses Guimarães apontou como Carta Cidadã, no que homenageante da proteção dos que vivem em sociedade conta as garras, por vezes impiedosas, do Estado, conheço do recurso interposto e o provejo, a fim de, assegurar ao Recorrente a liberdade, a proteção quanto ao não vir cumprir a sentença até que se opere a coisa julgada e, portanto, venha à balha a certeza sobre a culpa, o que pressupõe a preclusão maior, a teor do princípio insculpido no inciso LVII do rol das garantias constitucionais. É como voto na espécie, conclamando os componentes da Turma a uma reflexão sobre o enfoque até aqui prevalente”.

O voto divergente, ainda que de modo indireto, é o caminho democrático que se abre para a revisão da decisão majoritária.

De acordo com Mark Tushnet, “as divergências podem importar, mas de forma bastante indireta: a divergência pode ser encampada por um movimento social porque a expressa algo que o movimento já tem em sua visão constitucional; a visão constitucional do movimento social pode afetar um partido político e seus candidatos; candidatos bem-sucedidos podem nomear juízes e ministros pelas visões constitucionais que defendem; e esses novos juízes podem concluir que a divergência até agora, talvez anos no passado — forneça um relato melhor de nossa Constituição do que a opinião majoritária” [6].

A segunda característica marcante da atuação do ministro é o seu bom humor e espontaneidade no exercício da judicatura, o que atribuo à genuína satisfação e alegria que sente ao desempenhar, a cada dia, o papel de juiz.

E por essa razão termino este texto lembrando de um episódio que afirmo que é verdadeiro porque o presenciei. Como presidente da Ajufe, estava acompanhando uma tarde a sessão da 1ª Turma do STF em razão de uma ação de interesse da associação estar pautada. Durante o julgamento de um dos processos, um advogado visivelmente alterado, sem que se possa saber exatamente o porquê —, ao concluir sua sustentação oral, quis fazer um elogio ao Ministro Marco Aurélio. Mas o fez de forma tão desconexa e atabalhoada que pareceu muito mais que estava lançando uma suspeição contra o ministro. Criou-se um clima de apreensão porque não se imaginava a reação que o ministro teria. Mas ele nada falou. Coube ao ministro Luiz Fux, que presidia a sessão, advertir o advogado pelo absurdo que ele tinha dito. O advogado, aparentemente surpreso e revoltado com a bronca que levou, deixou o plenário aos berros dizendo, “mas eu só quis elogiar o ministro, dizendo que ele é honesto”. Mas não acabou por ai, não. Ânimos serenados e o julgamento de um outro caso iniciado, uma jovem advogada, após o Ministro Marco Aurélio ler o relatório, começou a fazer a sustentação oral e foi interrompida pelo ministro em razão de um questão técnica. Ela estava defendendo o mérito de um mandado de segurança quando estava em julgamento apenas a possibilidade da intervenção do representado, na qualidade de terceiro. Após alguma discussão entre os ministros, foi autorizado que a advogada concluísse a sustentação oral. Finalizada, o Ministro Marco Aurélio começou a votar e, para surpresa e espanto de todos os presentes, foi abruptamente interrompido pela advogada, que disse: “não é isso, o senhor está votando errado”.

Se o ministro havia conseguido ouvir calado a confusão criada pelo primeiro advogado, não perdeu a oportunidade de se manifestar com bom humor sobre os dois fatos pitorescos daquela tarde dizendo: “Presidente, hoje eu já fui chamado de honesto nesta tribuna. Agora a jovem advogada, ao que parece, pretende me ensinar a votar. Então seria melhor que ela assumisse a relatoria e concluísse o voto”.

Ao que tudo indica, o Ministro Marco Aurélio seguiu à risca a lição de Confúcio: “Escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nenhum dia na tua vida.”.

 é juiz federal e ex-presidente da Associação Nacional dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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Refis é solução cíclica e pouco eficiente para gargalos tributários

Discute-se no Congresso Nacional um novo programa de Refinanciamento das Dívidas Tributárias (Projeto de Lei 2735/2020). Desde o Programa de Recuperação Fiscal, mais conhecido como Refis (Lei 9.964, de 2000), o Brasil já adotou cerca de 40 políticas de regularização fiscal, considerando os programas genéricos e os setoriais. Os sucessivos programas, que adotaram o nome fantasia de REFIS, tiveram resultados dúbios e controversos. Conforme relatório da Receita Federal de dezembro de 2017, os parcelamentos especiais não tem alcançado o objetivo pretendido. Afirma a Receita Federal ao final do relatório:

29. Os elevados percentuais de exclusão de contribuintes dos parcelamentos especiais e o expressivo aumento do passivo tributário administrado pela Receita Federal evidenciam que os parcelamentos não são instrumentos eficazes para a recuperação do crédito tributário, além de causar efeitos deletérios na arrecadação tributária corrente, posto que o contribuinte protela o recolhimento dos tributos na espera de um novo parcelamento especial. Frise-se que as regras oferecidas nesses programas tornam muito mais vantajoso para o contribuinte deixar de pagar os tributos para aplicar os recursos no mercado financeiro, já que num futuro próximo poderão parcelar os débitos com grandes descontos e outras vantagens. Caso opte por aplicar os recursos em títulos públicos, por exemplo, que são remunerados pelo Governo Federal pela taxa Selic (os mesmos juros cobrados sobre os débitos em atraso), essa opção será muito vantajosa para o contribuinte, pois ele poderá, num futuro próximo, resgatar esses títulos públicos e pagar à vista seus débitos, obtendo grande ganho devido aos descontos, inclusive dos mesmos juros adquiridos com a aplicação (que poderão até mesmo serem liquidados integralmente com PF/BCN).

30. Portanto, conclui-se que a instituição de parcelamentos especiais não tem atingido os objetivos deles esperados: incrementar a arrecadação (diminuindo o passivo tributário) e promover a regularidade fiscal dos devedores, devendo qualquer medida proposta nesse sentido rejeitada.

Mesmo reconhecendo a crítica intuitiva de que os parcelamentos especiais fomentam um comportamento negativo por parte do contribuinte que leva a um crescente descumprimento ordinário das obrigações tributárias e, portanto, ao incentivo à inadimplência, tal constatação é insuficiente para explicar tal realidade.

No entanto, devemos olhar a recorrência dos diversos Refis sobre outra perspectiva que não apenas a proposta pela Receita Federal. Em primeiro lugar, os múltiplos programas tem sido uma constante por ser uma importante fonte de receita extraordinária. É necessário reconhecer o baixo ingresso de recursos nos sistema de arrecadação ordinário, baseado em um sistema indutivo com altas sanções e restrições e em um processo de execução fiscal de baixa efetividade. O relatório PGFN em Números divulgado no início de 2020 indica que a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional conseguiu resgatar para os cofres públicos 24,4 bilhões de reais, mas que representa apenas 1% do estoque consolidado de 2,436 trilhões de reais.

Acredito que este ponto tem que ser examinado de forma mais profunda para entender a razão da inadimplência. Da mesma forma que um avião não cai por apenas uma causa, a inadimplência das obrigações tributárias (acessórias e principais), não tem apenas um motivo. Existente uma recorrência nas escolhas interpretativas da legislação tributária por parte dos contribuintes e por parte da administração tributária a gerar constantes pontos de discórdia e conflito que resultam em intermináveis ações judiciais.

Assim é que, em um sistema profundamente litigiosos, a execução fiscal alcança um destaque desconfortável no volume de acervos existentes. Segundo o relatório Justiça em Números, na Justiça Federal e Estadual as execuções fiscais representam 45% e 42% dos respectivos acervos. Caso o relatório considerasse o volume de disputas tributárias em curso no Poder Judiciário, incluindo também os processos de conhecimento, certamente este resultado retrataria uma litigiosidade cuja intensidade ultrapassaria o volume de 50% dos acervos existentes.

Da mesma forma, a demora na implementação pelo Estado das soluções saneadoras da jurisprudência emanada do Poder Judiciário é invariavelmente retardada por uma burocracia excessivamente formalista, deficitária de meios e refém de limites e necessidades de resultados fiscais. É o caso, por exemplo, da resistência colocada na já conhecida e reafirmada decisão do Supremo Tribunal Federal em relativa à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Decisão tomada em 15 de março de 2017, mas ainda hoje não implementada na sua totalidade pela administração tributária.

Por fim, a total dependência do modelo de sanções elevadíssimas, acompanhadas de restrições às atividades da vida civil e comercial, tem sido ponto de intensa discórdia e de geração de passivos que incham o estoque dos valores em cobrança na administração tributária federal. O sistema de sanção elevada já encontrou repúdio no Supremo Tribunal Federal, como indica o julgamento do AgRg no RExt 833.106/GO, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que foi sedimentado que a multa não pode exceder 100% da obrigação principal cobrada. Mesmo assim, por não ter ainda nenhuma lei federal sido objeto de exame pelo STF, resiste a administração tributária federal em implementar o entendimento já fixado. Esse ponto tem importância singular nos parcelamentos especiais, já que são as multas e os juros os principais alvos de redução.

Tudo considerado, enquanto não alterarmos o modelo na relação substancial entre a administração tributária e o contribuinte, em que, de parte a parte, substituamos o litigio pela cooperação, continuaremos com um sistema que gera, reproduz e normaliza distorções, e cujos resultados em valores e volumes clamam soluções igualmente tópicas que acostumamos chamar de Refis.

Luís Inácio Adams é advogado, ex-procurador da Fazenda Nacional, foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).