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Flávio Cabral: Responsabilização do Estado na crise

A Covid-19 será um divisor de águas para a vida em sociedade como um todo. Com o Direito Administrativo não seria diferente. Entre a gama de cenários jurídicos que emergem fruto dessa pandemia, um que se mostra da mais alta essencialidade diz respeito à responsabilidade extracontratual do Estado, em particular quando se apuram as inúmeras medidas envolvendo restrições ao funcionamento normal de estabelecimentos comerciais (lockdown, toques de recolher, restrição ao horário de funcionamento e/ou ao número de clientes atendidos, imposição de medidas sanitárias, determinação de afastamento social e uso de máscaras, entre outras).

A questão da responsabilidade estatal decorrente de medidas que acabam impondo restrições a liberdades, em especial as afetas ao exercício da atividade comercial, deve ser analisada com cautela. Há situações variadas que precisam ser consideradas. Um primeiro aspecto é quando essas restrições adotadas pelo Estado pairam no campo da ilicitude.

Nesta hipótese a infração ao ordenamento jurídico pode se mostrar de maneiras diversas: a) a violação pode ser decorrente de uma inconstitucionalidade, envolvendo a violação à repartição constitucional de competências. Esse talvez tenha sido um dos grandes problemas enfrentados durante está pandemia, qual seja, compreender os limites e formas de atuação de um Estado federado como o brasileiro, entendendo o conteúdo das competências atribuídas aos entes federados pela Constituição. Há casos reais verificados em que determinado estado estabeleceu a proibição do funcionamento de certa atividade por meio de um decreto e um município deste Estado, por meio também de um decreto, autorizou essa mesma atividade. A qual determinação estatal atender? Aqui resta evidente que algum dos entes políticos extrapolou de alguma forma os limites da regulação no âmbito da sua competência. Em síntese, uma primeira ilegalidade decorrerá da apuração da violação da repartição de competências no que tange à adoção de medidas para fins de contingenciamento da Covid-19; b) um segundo aspecto diz respeito à proporcionalidade das medidas adotadas. Se de um lado é certo que o Estado é detentor do poder de limitar a propriedade e a liberdade, dentro de uma relação de poder de polícia e de supremacia do interesse público, também é correto que esta atuação estatal precisa ser exercida de maneira proporcional, sob pena de se tornar abusiva e, por conseguinte, antijurídica. Será que o fechamento de todo e qualquer estabelecimento, sem que se faculte medidas alternativas de funcionamento, com protocolos sanitários adequados a cada setor, seria proporcional? Além disso, quais as penalidades aplicáveis em caso de não cumprimento dessas medidas restritivas? Estariam limitadas pela proporcionalidade? e c) o abuso pode advir não da medida restritiva em si, mas da forma que ela acaba sendo cumprida e exigida pelo poder público. Imagine-se agentes públicos que vão fiscalizar o atendimento a um toque de recolher imposto pelo Estado. Caso aqueles humilhem os cidadãos, agredindo-os, física ou verbalmente, haverá um evidente abuso de direito (conduta ilícita).

Nesses casos de ilicitude, a responsabilização estatal nos parece mais clara e óbvia. Nos termos do artigo 37, §6º, da Constituição Federal, o Estado responderá na modalidade objetiva, cabendo ao particular comprovar a conduta do Estado, o dano (certo e jurídico) e o nexo de causalidade (direto e imediato).

Por outro lado, em não se averiguando nenhuma ilicitude nas restrições tomadas pelo Estado, haveria como ele ser responsabilizado?

Deve-se lembrar, tratando-se de lição comezinha entre os administrativistas bem como na jurisprudência pátria, que, em tese, o Estado também pode ser responsável pela prática de condutas lícitas. A melhor doutrina aponta que o fundamento de tal responsabilização é o princípio da isonomia, no sentido de que, se uma conduta lícita do Estado gera benefícios a toda a coletividade, não seria isonômico que somente um sujeito ou um grupo de sujeitos determinados arcasse com praticamente todos os ônus decorrentes do ato estatal. A responsabilização do Estado representaria, então, uma repartição desses ônus. Ocorre que, para que haja esse reconhecimento, é necessário que o dano sofrido pelos particulares apresente algumas características próprias. Além de ter que ser certo e jurídico (exigência presente também para a responsabilização do Estado por atos ilícitos), o dano precisaria ser especial (onere determinado ou determinados particulares, não sendo um dano genérico) e anormal (aquele que ultrapassa os meros agravos patrimoniais inerentes ao convívio social).

Feitas essas considerações teóricas preliminares, resta então saber se as restrições à atividade comercial, que sejam enquadradas como lícitas, poderiam ser enquadradas como indenizáveis ou não. Veja que quanto ao aspecto do dano anormal nos parece aceitável que ele se encontre presente. Não se pode ter como algo rotineiro ou esperado da vida em sociedade ter que manter seu estabelecimento comercial fechado por semanas, talvez meses. Ou ter que reduzir para até 30% o número de clientes atendidos por vez, por exemplo.

O ponto-chave reside justamente no quesito da especialidade do dano. Com a proporção que a pandemia atingiu, aliada às medidas estatais adotadas por quase todos os estados e municípios brasileiros, verifica-se que o dano não atingiu só um sujeito ou grupos específicos e determinados de sujeitos. A atividade comercial como um todo foi afetada. Alguns tiveram danos maiores, outros menores, mas aproximadamente todos (com exceção de setores pontuais, como fabricantes de álcool em gel, por exemplo) tiveram algum tipo de dano em razão das medidas de contingenciamento adotadas pelo Estado. Nota-se que o aspecto da especialidade fica fluido, uma vez que temos um dano compartilhado por praticamente toda a população. Além disso, lembrando-se do fundamento da responsabilidade por ato lícito, a igualdade ou isonomia, ela perderia o sentido no momento em que se apura que a sociedade como um todo sofreu danos. Responsabilizar o Estado, neste caso, seria ampliar a repartição do ônus com todos que já estão a sofrer danos.

Ademais, levando-se em consideração a previsão do artigo 21 da LINDB, que traz a necessidade de se levar em conta as consequências jurídicas e administrativas no momento de se proferir uma decisão judicial (dentro dos limites jurídicos, para não se cair em uma ideia puramente pragmatista), apura-se que, caso se permita, de maneira irrestrita, uma responsabilidade do Estado por ato lícito, tendo em vista que as medidas restritivas estatais afetaram praticamente toda a população, o Estado estaria figurando, utilizando-se de uma expressão corrente, como um “segurador universal”, que teria que indenizar cada indivíduo, o que, diante do cenário atual, mostrar-se-ia faticamente impossível, ainda mais quando se recorda que quem financia o Estado, essencialmente, são os cidadãos por meio do pagamento de tributos.

A síntese, portanto, é que, diante do cenário global da pandemia e que as medidas estatais adotadas afetaram a sociedade como um todo, tornando-se fluida a questão da especialidade do dano eventualmente sofrido, como regra não há como se pensar em responsabilização do Estado pelos atos estatais lícitos de contingenciamento. É evidente que a casuística pode trazer novos contornos, porquanto, analisando-se casos concretos específicos, pode-se apurar que as restrições pelo Estado trouxeram a sujeitos determinados danos extremamente gravosos, muito superiores aos sofridos pelo resto da sociedade, o que permitiria analisar (a depender do conjunto probatório) se seria o caso ou não de o Estado vir a ser responsabilizado. Mas, diante do atual cenário, estas hipóteses seriam excepcionais.

De qualquer maneira, a melhor forma de atuação do Estado nesses casos será, sem sombra de dúvida, agir por meio de uma administração consensual. Primeiramente, cabe ao Estado adotar medidas (tributárias, administrativas, previdenciárias, assistenciais etc) que visem a minimizar as perdas sofridas pelos particulares. Por outro lado, também se faz imprescindível que Estado e particulares façam concessões mútuas, na via administrativa, principalmente, de modo a acordarem eventuais pagamentos de cunho indenizatório ou medidas compensatórias, de comum acordo.

Em algumas palavras finais, o cenário implantado pela Covid-19 nos traz novos dilemas e novos desafios. Temos que solucioná-los, levando-se em consideração as particularidades inerentes à situação excepcional vivenciada, mas sem abandonarmos todo embasamento jurídico já construído até então. Pregar uma responsabilização genérica e total do Estado, ademais de não encontrar respaldo em toda a construção jurídica já feita até então, não será a solução mais adequada para a crise pela qual passamos.

 é professor, procurador da Fazenda Nacional, pós-doutor pela PUC-PR e doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP.

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Cabral e Ramos: Investimento em ciência, tecnologia e inovação

Não há como enfrentar a crise atual sem reconhecer a essencialidade dos investimentos públicos em ciência, tecnologia e inovação (CT&I). É certo que trabalhar para apagar os incêndios é necessário: ampliar leitos de UTI, adquirir respiradores, kits de EPIs e de testagem e os demais insumos médico-hospitalares, de um lado; amparar os grupos sociais mais vulneráveis e evitar a quebradeira generalizada de empresas, de outro. No entanto, retomar imediatamente os investimentos em CT&I é central para respondermos aos desafios sanitários e econômicos suscitados pelo novo coronavírus.

Estudo de Priscila Koller, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que a tendência de queda do dispêndio do governo federal em pesquisa e desenvolvimento (P&D) sobre o Produto Interno Bruto (PIB) remete a 2015 [1]. Trata-se do começo do segundo governo Dilma Rousseff, quando o Brasil entraria em recessão e Joaquim Levy assumiu o Ministério da Fazenda iniciando uma política de cortes de gastos. As políticas de CT&I sentiram na pele.

Em verdade, essa tendência de arrefecimento dos investimentos públicos em CT&I é historicamente observada sempre que há redução de receita decorrente de momentos econômicos de crise [2].

No atual governo, não é possível ignorar o flerte do presidente com posições aparentemente minoritárias no campo científico, que tendem a levar ao isolamento, conforme já reconhecem publicações internacionais [3]. Em termos práticos, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MTIC) foi severamente contingenciado. Em 2019, o MCTIC já tinha a menor previsão orçamentária em 14 anos; como se não bastasse, houve um congelamento de nada menos que 42%, restando apenas R$ 2,9 bilhões para a pasta [4].

Enquanto busca soluções imediatas para cuidar dos seus doentes, a Europa, implacavelmente castigada pela Covid-19, não deixa de considerar o fomento da inovação como estratégico à superação da crise. Em março, chamada foi divulgada pelo Conselho Europeu de Inovação para financiar tecnologias com potencial de contribuir ao tratamento, teste e monitoramento do vírus. As empresas beneficiadas serão startups e pequenas e médias empresas. Só nessa oportunidade, há 164 milhões de euros prometidos [5]. O edital tenta endereçar com tecnologia o drama atual e atende o propósito de estimular empresas de menor porte e de base tecnológica.

O Brasil vem atentando para o papel da CT&I para superarmos a crise? Lenta e, talvez, insuficientemente, mas, sim, a ficha começa a cair.

O Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Ministério da Saúde lançaram edital para financiar pesquisas em distintas áreas de combate ao coronavírus. R$ 50 milhões foram reservados [6]. Voltada para pequenas empresas do estado de São Paulo, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) estruturaram chamada pública para o desenvolvimento de produtos, serviços e processos inovadores que contribuam na luta contra a Covid-19. O financiamento é da ordem de R$ 20 milhões [7]. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) publicou edital de R$ 70 milhões para apoiar projetos de pesquisa em áreas como epidemiologia, infectologia e imunologia [8]. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou cinco linhas de atuação em vista dos efeitos econômicos do coronavírus. Nenhuma delas é explicitamente voltada para o financiamento da inovação, o que é um erro do banco. Contudo, duas parecem amplas e poderiam contemplar projetos inovadores: a “Mais capital de giro” (R$ 5 bilhões) e a “Linha emergencial setor de saúde” (R$ 2 bilhões) [9]. A Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (EMBRAPII) criou canal simplificado para financiar inovações que colaborem no diagnóstico, tratamento ou acompanhamento do vírus. R$ 6 milhões foram disponibilizados, sendo R$ 2 milhões voltados para startups e pequenas empresas [10]. Embora não envolvam propriamente financiamento, duas regulamentações recentes merecem nota: a portaria referente à Lei 13.969/2019, a nova Lei de Informática (Portaria MCTIC 1.294, de 26 de março de 2020), e a Lei da Telemedicina (Lei 13.988, de 15 de abril de 2020).

Esses, entre outros, são passos importantes que, porém, não devem ignorar uma agenda mais estrutural de retomada do papel do Estado como incentivador e promotor da CT&I, como estabelece a Constituição de 1988 e como fizeram os países que conseguiram alcançar desenvolvimento tecnológico e econômico.

Entre as medidas, precisamos de:

 Recuperação dos investimentos em escolas, institutos, universidades e demais Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICTs) públicas, o que passa não só por recursos para a infraestrutura material, mas também por valorização do professor e do pesquisador público, até para mitigar o êxodo científico (brain drain);

II  Destinação robusta de recursos aos órgãos de fomento à pesquisa, como CNPq, CAPES e Finep, blindando-os, na medida do possível, das políticas de corte;

III — Assunção do financiamento da inovação como uma das estratégias centrais da atuação do BNDES;

IV  Reabilitação do debate a respeito da política industrial, notadamente quanto ao Complexo Industrial da Saúde [11], a fim de pensar a dinamização tecnológica de setores relevantes aos desafios atuais, mantendo no radar temas como indústria 4.0, inteligência artificial, internet das coisas e 5G [12];

 Utilização das encomendas tecnológicas para fomentar o enfrentamento do risco tecnológico pertinente ao desenvolvimento de medicamentos, vacinas e novos materiais;

VI  Busca de mais parcerias entre os setores público e privado, lançando-se mão, por exemplo, dos mecanismos de compartilhamento de laboratórios e equipamentos ou mesmo de capital intelectual de ICTs públicas, previstos na Lei de Inovação;

VII  Ampliação da presença do Estado em ambientes promotores da inovação, como parques tecnológicos e incubadoras, de modo a mapear as necessidades (de amparo financeiro e facilitação burocrática) de empresas de base tecnológica, especialmente startups;

VIII  Simplificação do acesso aos incentivos tributários da Lei do Bem, inclusive com alteração legal para que se deixe de exigir lucro real das empresas interessadas, sem prejuízo da discussão acerca de outras formas de estímulo fiscal à inovação;

IX  Manutenção dos investimentos em P&D das empresas estatais;

Esforço para a constituição da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, reconhecendo-se que, em tempos de distanciamento físico, a economia se torna, ainda mais, movida a dados, que também alimentam boa parte das soluções tecnológicas utilizadas no combate à pandemia, devendo-se coibir abusos e, ao mesmo tempo, refletir sobre como os dados podem contribuir à superação da crise [13];

XI  Ações no sentido da inclusão digital (ampliação da oferta de internet gratuita, políticas para a compra de smartphones por pessoas de baixa renda, implantação da identidade digital gratuita [14], etc.) e da inclusão financeira (permitindo à população de baixa renda acesso a serviços financeiros aqui, as fintechs e os caixas eletrônicos multibancos podem desempenhar relevante papel). Tais ações se mostram fundamentais para facilitar o alcance dos benefícios sociais do governo e aquecer as economias locais;

XII  Aproveitamento da inteligência de instituições como o Ipea para desenvolver estudos relacionados aos caminhos, do ponto de vista da inovação tecnológica, que podem ser trilhados para a recuperação econômica.

A falta de entendimento nos últimos anos por distintos governos, acentuando-se no atual de que CT&I devem estar entre as prioridades permanentes vai cobrar um preço. Como estamos constatando, optar pelo sucateamento da CT&I sai muito caro.

O Brasil está longe de participar da fronteira tecnológica em numerosos segmentos econômicos. Isso expressa nossa dependência tecnológica. Fruto da herança colonial e do lugar periférico em que nossa economia historicamente se situa, acostumamo-nos a exportar bens primários e importar tecnologia. Esquecemos que garantir investimentos estatais em CT&I é investir em autonomia tecnológica, a partir da dinamização do mercado interno, como consigna o artigo 219 da Constituição de 1988. Buscar mais autonomia tecnológica nos dará condições para o enfrentamento da presente crise e das próximas. Mais do que isso: é pressuposto para sermos soberanos.

 é advogado e doutor em Direito pela USP com doutorado-sanduíche na Universidade Bielefeld (Alemanha) e Fox Fellow pela Universidade Yale.

 é advogado, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em Direito Econômico pela USP.

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Ramos e Cabral: Investimento em ciência, tecnologia e inovação

Não há como enfrentar a crise atual sem reconhecer a essencialidade dos investimentos públicos em ciência, tecnologia e inovação (CT&I). É certo que trabalhar para apagar os incêndios é necessário: ampliar leitos de UTI, adquirir respiradores, kits de EPIs e de testagem e os demais insumos médico-hospitalares, de um lado; amparar os grupos sociais mais vulneráveis e evitar a quebradeira generalizada de empresas, de outro. No entanto, retomar imediatamente os investimentos em CT&I é central para respondermos aos desafios sanitários e econômicos suscitados pelo novo coronavírus.

Estudo de Priscila Koller, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que a tendência de queda do dispêndio do governo federal em pesquisa e desenvolvimento (P&D) sobre o Produto Interno Bruto (PIB) remete a 2015 [1]. Trata-se do começo do segundo governo Dilma Rousseff, quando o Brasil entraria em recessão e Joaquim Levy assumiu o Ministério da Fazenda iniciando uma política de cortes de gastos. As políticas de CT&I sentiram na pele.

Em verdade, essa tendência de arrefecimento dos investimentos públicos em CT&I é historicamente observada sempre que há redução de receita decorrente de momentos econômicos de crise [2].

No atual governo, não é possível ignorar o flerte do presidente com posições aparentemente minoritárias no campo científico, que tendem a levar ao isolamento, conforme já reconhecem publicações internacionais [3]. Em termos práticos, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MTIC) foi severamente contingenciado. Em 2019, o MCTIC já tinha a menor previsão orçamentária em 14 anos; como se não bastasse, houve um congelamento de nada menos que 42%, restando apenas R$ 2,9 bilhões para a pasta [4].

Enquanto busca soluções imediatas para cuidar dos seus doentes, a Europa, implacavelmente castigada pela Covid-19, não deixa de considerar o fomento da inovação como estratégico à superação da crise. Em março, chamada foi divulgada pelo Conselho Europeu de Inovação para financiar tecnologias com potencial de contribuir ao tratamento, teste e monitoramento do vírus. As empresas beneficiadas serão startups e pequenas e médias empresas. Só nessa oportunidade, há 164 milhões de euros prometidos [5]. O edital tenta endereçar com tecnologia o drama atual e atende o propósito de estimular empresas de menor porte e de base tecnológica.

O Brasil vem atentando para o papel da CT&I para superarmos a crise? Lenta e, talvez, insuficientemente, mas, sim, a ficha começa a cair.

O Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Ministério da Saúde lançaram edital para financiar pesquisas em distintas áreas de combate ao coronavírus. R$ 50 milhões foram reservados [6]. Voltada para pequenas empresas do estado de São Paulo, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) estruturaram chamada pública para o desenvolvimento de produtos, serviços e processos inovadores que contribuam na luta contra a Covid-19. O financiamento é da ordem de R$ 20 milhões [7]. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) publicou edital de R$ 70 milhões para apoiar projetos de pesquisa em áreas como epidemiologia, infectologia e imunologia [8]. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou cinco linhas de atuação em vista dos efeitos econômicos do coronavírus. Nenhuma delas é explicitamente voltada para o financiamento da inovação, o que é um erro do banco. Contudo, duas parecem amplas e poderiam contemplar projetos inovadores: a “Mais capital de giro” (R$ 5 bilhões) e a “Linha emergencial setor de saúde” (R$ 2 bilhões) [9]. A Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (EMBRAPII) criou canal simplificado para financiar inovações que colaborem no diagnóstico, tratamento ou acompanhamento do vírus. R$ 6 milhões foram disponibilizados, sendo R$ 2 milhões voltados para startups e pequenas empresas [10]. Embora não envolvam propriamente financiamento, duas regulamentações recentes merecem nota: a portaria referente à Lei 13.969/2019, a nova Lei de Informática (Portaria MCTIC 1.294, de 26 de março de 2020), e a Lei da Telemedicina (Lei 13.988, de 15 de abril de 2020).

Esses, entre outros, são passos importantes que, porém, não devem ignorar uma agenda mais estrutural de retomada do papel do Estado como incentivador e promotor da CT&I, como estabelece a Constituição de 1988 e como fizeram os países que conseguiram alcançar desenvolvimento tecnológico e econômico.

Entre as medidas, precisamos de:

 Recuperação dos investimentos em escolas, institutos, universidades e demais Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICTs) públicas, o que passa não só por recursos para a infraestrutura material, mas também por valorização do professor e do pesquisador público, até para mitigar o êxodo científico (brain drain);

II  Destinação robusta de recursos aos órgãos de fomento à pesquisa, como CNPq, CAPES e Finep, blindando-os, na medida do possível, das políticas de corte;

III — Assunção do financiamento da inovação como uma das estratégias centrais da atuação do BNDES;

IV  Reabilitação do debate a respeito da política industrial, notadamente quanto ao Complexo Industrial da Saúde [11], a fim de pensar a dinamização tecnológica de setores relevantes aos desafios atuais, mantendo no radar temas como indústria 4.0, inteligência artificial, internet das coisas e 5G [12];

 Utilização das encomendas tecnológicas para fomentar o enfrentamento do risco tecnológico pertinente ao desenvolvimento de medicamentos, vacinas e novos materiais;

VI  Busca de mais parcerias entre os setores público e privado, lançando-se mão, por exemplo, dos mecanismos de compartilhamento de laboratórios e equipamentos ou mesmo de capital intelectual de ICTs públicas, previstos na Lei de Inovação;

VII  Ampliação da presença do Estado em ambientes promotores da inovação, como parques tecnológicos e incubadoras, de modo a mapear as necessidades (de amparo financeiro e facilitação burocrática) de empresas de base tecnológica, especialmente startups;

VIII  Simplificação do acesso aos incentivos tributários da Lei do Bem, inclusive com alteração legal para que se deixe de exigir lucro real das empresas interessadas, sem prejuízo da discussão acerca de outras formas de estímulo fiscal à inovação;

IX  Manutenção dos investimentos em P&D das empresas estatais;

Esforço para a constituição da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, reconhecendo-se que, em tempos de distanciamento físico, a economia se torna, ainda mais, movida a dados, que também alimentam boa parte das soluções tecnológicas utilizadas no combate à pandemia, devendo-se coibir abusos e, ao mesmo tempo, refletir sobre como os dados podem contribuir à superação da crise [13];

XI  Ações no sentido da inclusão digital (ampliação da oferta de internet gratuita, políticas para a compra de smartphones por pessoas de baixa renda, implantação da identidade digital gratuita [14], etc.) e da inclusão financeira (permitindo à população de baixa renda acesso a serviços financeiros aqui, as fintechs e os caixas eletrônicos multibancos podem desempenhar relevante papel). Tais ações se mostram fundamentais para facilitar o alcance dos benefícios sociais do governo e aquecer as economias locais;

XII  Aproveitamento da inteligência de instituições como o Ipea para desenvolver estudos relacionados aos caminhos, do ponto de vista da inovação tecnológica, que podem ser trilhados para a recuperação econômica.

A falta de entendimento nos últimos anos por distintos governos, acentuando-se no atual de que CT&I devem estar entre as prioridades permanentes vai cobrar um preço. Como estamos constatando, optar pelo sucateamento da CT&I sai muito caro.

O Brasil está longe de participar da fronteira tecnológica em numerosos segmentos econômicos. Isso expressa nossa dependência tecnológica. Fruto da herança colonial e do lugar periférico em que nossa economia historicamente se situa, acostumamo-nos a exportar bens primários e importar tecnologia. Esquecemos que garantir investimentos estatais em CT&I é investir em autonomia tecnológica, a partir da dinamização do mercado interno, como consigna o artigo 219 da Constituição de 1988. Buscar mais autonomia tecnológica nos dará condições para o enfrentamento da presente crise e das próximas. Mais do que isso: é pressuposto para sermos soberanos.

 é advogado e doutor em Direito pela USP com doutorado-sanduíche na Universidade Bielefeld (Alemanha) e Fox Fellow pela Universidade Yale.

 é advogado, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor em Direito Econômico pela USP.