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Uma jurisprudência de família (re)construída na pandemia

O chão de vida das pessoas é normalmente o chão de suas casas, quando ali suas vidas são assentadas a partir da família. Construo essa metáfora indicando-a como um dogma íntimo que orienta o direito familista.

Segue-se, então, que a jurisprudência, ao equacionar a família conforme seu estado de vida experenciado, seja por interesses comuns ou por conflitos intrafamiliares existentes, deve, a tanto, ser o justo meio para uma justa medida do direito. A jurisprudência aperfeiçoa a lei; chega, muitas vezes, antes dela e o seu prestígio é o direito espontâneo.

Jean Cruet explicou: “A lei vem de cima: as boas jurisprudências fazem-se em baixo”, ponderando que “se a lei dissimula de maneira quase completa a vida espontânea do direito, não é verdade que a tenha inteiramente suprido”.

O tema ganha destaque, no tempo da pandemia, com uma jurisprudência da crise da Covid-19, em seara do direito de família, edificando novos paradigmas ou um novo direito sobreprocessual. Diante das atuais situações emergenciais, tempo no Judiciário não é substantivo: transmuda-se ontologicamente em verbo. No Judiciário, o “ser-tempo”, na função de verbo, está no núcleo do princípio de acesso à justiça pelo viés de uma justiça otimizante.

Impõe-se, portanto, assinalar os recentes julgados, com uma jurisprudência (re)construída por novas percepções:

(i) Alimentos e Prisão civil.
1.Tudo começou com a análise prefacial do HC n° 566.021-CE, perante a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. O ministro Paulo de Tarso Sanseverino determinou: “considerando a gravidade da atual situação de pandemia pelo coronavírus — Covid-19 — a exigir medidas para contenção do contágio e em atenção à Recomendação CNJ n. 62/2020, deve ser assegurado aos presos por dívidas alimentares o direito à prisão domiciliar” (23.03.20). Logo a seguir, a pedido da Defensoria Pública da União, a medida liminar foi estendida para todo o território nacional (26.03.20). Importa realçar que a importante decisão atendeu à situação daqueles já encarcerados por dívidas alimentares (02)

Bem de ver, por essencial, que (i) a Recomendação CNJ n. 62/6020, em seu artigo 6º, tratou de considerar “a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos”. A cláusula decisiva: “pessoas presas”; (ii) tratou-se de HC Coletivo apenas Liberatório e não também preventivo.

2. Sucede, adiante, o HC Coletivo nº 551311.7 do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Pernambuco também analisar a situação de demais devedores alimentantes, ainda não presos. Como Relator do pedido, entendi pela suspensão do cumprimento da ordem, sem o implemento imediato de medida substitutiva de prisão civil em regime domiciliar. Nesse passo, ultrapassado o prazo de 90 dias, as dívidas preexistentes e as demais do período protraído, autorizarão a prisão civil das parcelas impagas e acumuladas (26.03.20 e 04.05.20).

3. Nessa mesma linha do TJPE, posicionou-se o Min. Villas Boas Cuevas, do Superior Tribunal de Justiça, perante a 3ª Turma, ao denegar pedido de Habeas Corpus (01.06.20), afirmando, com precisão cirúrgica, que:

a) “Assegurar aos presos por dívidas alimentares o direito à prisão domiciliar é medida que não cumpre o mandamento legal e que fere, por vias transversas, a própria dignidade do alimentando. Não é plausível substituir o encarceramento pelo confinamento social — o que, aliás, já é a realidade da maioria da população, isolada no momento em prol do bem-estar de toda a coletividade”;

b) Como não é possível a concessão da prisão domiciliar, admite-se, excepcionalmente, a suspensão da prisão dos devedores de pensão alimentícia em regime fechado, enquanto durar a pandemia”.

c) Isto é: “A prisão civil suspensa terá seu cumprimento no momento processual oportuno, já que a dívida alimentar remanesce íntegra, pois não se olvida que, afinal, também está em jogo a dignidade do alimentando — em regra, vulnerável”. (03)

4. Pois bem. Afetado o julgamento do HC nº 566.021-CE, à 2ª Seção do STJ, para uniformização de jurisprudência, houve, em sessão de quarta-feira passada (10/06) de ser adiado para o próximo dia 24 de junho. O adiamento proposto pelo relator min. Paulo de Tarso Sanseverino fundou-se em duas premissas de base: a) o prazo de sanção do PL n. 1.779/20 vir a se encerrar naquele dia; b) em editada a lei dispondo sobre a questão, haver de se deliberar terá ela ou não efeitos retroativos (04).

5. Ocorre, logo em seguida, a edição da Lei nº 14.010/20, de 10 de junho (05).

O seu artigo 15 expressa: “Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528 § 3º e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações”.

Diante do teor do dispositivo, o que se tem de sua teleologia é o propósito incontroverso de impedir a prisão civil em regime fechado, como é de sua característica e essência, quando em atual momento de imensa gravidade de risco o devedor inadimplente ou recalcitrante ao cumprimento de suas obrigações alimentares estaria mais exposto ao coronavírus.

Como será incontroverso também entender que o art. 15 não poderá significar ou atrair estímulo ao inadimplemento do devedor, dentro do mesmo período. Eis a questão decisiva, por dignidade do alimentando.

6. Nessa esteira, questões subjacentes estão postas:

a) implica dizer, por implicitude, que o cumprimento da ordem terá de ser feito imediatamente após o decreto judicial da prisão civil, a sugerir o manejo incontinenti do regime domiciliar?

b) Ou poderá ser protraída a sua execução, suspensos os efeitos do decreto de prisão civil e/ou das demais prisões que venham ser decretadas, como já se posicionou a 3ª Turma do STJ?

c) Em hipótese anterior (b), o cumprimento da ordem terá sua incidência a partir de 31.10.20, ou a suspensão da prisão civil estará condicionada a tempo próprio, segundo o prudente arbítrio do juízo competente, conforme o adequado controle da disseminação do Covid-19, em sua jurisdição?

d) Como interpretar a cláusula “sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações”, diante da exata latitude do Enunciado 309 da Súmula 309 do STJ, uma vez afastado o perigo de contágio?

Reserva-se esse capítulo para o próximo dia 24, no STJ.

7. Lado outro, não há negar acerca da possibilidade combinatória dos ritos de execução, com relevo no Enunciado n. 32 do IBDFAM, aprovado no seu XII Congresso Brasileiro, realizado em outubro de 2019:

“É possível a cobrança de alimentos, tanto pelo rito da prisão como pelo da expropriação, no mesmo procedimento, quer se trate de cumprimento de sentença ou de execução autônoma”.

8. No mais, há de se reconhecer, em nossa ordem jurídica, não existir a figura penal do inadimplemento alimentar, com tratamento específico; embora o elemento obrigacional esteja na espécie do abandono material do art. 244 do Código, em sua atual redação dada pela Lei nº 10.741, de 01.10.2003 (06)

Em Portugal, todavia, enquanto o seu Código Civil preceitua no seu art. 1.675, nº1 que “o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar”, o Código Penal, em seu art. 250, trata, com devida exatidão e maior aplicabilidade, do crime de violação da obrigação de prestação de alimentos.

O elemento objetivo do tipo penal, introduzido no Código Penal português pelo Decreto n° 48/1995, é de criminalizar o devedor que, reunindo condições de adimplir a obrigação queda-se inerte em satisfazê-la. Mas não é só: nas hipóteses em que o alimentando estiver exposto a perigo em suas necessidades fundamentais, a pena de prisão será de até dois anos.

(ii) Alimentos compensatórios

Questão enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, no último dia 2 de junho, em caráter prefacial, no Recurso de Habeas-Corpus nº 117.996-RS – (2019/0278331-0), discutiu a natureza indenizatória e/ou compensatória dos alimentos compensatórios frente à possibilidade de prisão civil em hipótese do inadimplemento da obrigação.

Sob a relatoria do ministro Marco Aurélio Bellize, da 3ª Turma do STJ, resultou assente que:

“O inadimplemento dos alimentos compensatórios (destinados à manutenção do padrão de vida do ex-cônjuge que sofreu drástica redução em razão da ruptura da sociedade conjugal) e dos alimentos que possuem por escopo a remuneração mensal do ex-cônjuge credor pelos frutos oriundos do patrimônio comum do casal administrado pelo ex-consorte devedor não enseja a execução mediante o rito da prisão positivado no art. 528, § 3º, do CPC/2015, dada a natureza indenizatória e reparatória dessas verbas, e não propriamente alimentar”. (07)

O tema é relevante e recorrente, a distinguir a finalidade do tipo-espécie dos alimentos, em seu caráter ressarcitório, com aqueles destinados à subsistência do alimentando, valendo referir os excelentes estudos de doutrina, a respeito, dos juristas Zeno Veloso, José Fernando Simão, Rolf Madaleno e Otávio Luiz Rodrigues Júnior (08).

(iii) Medidas do art. 139, IV, CPC

O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento da Reclamação n° 37.521, por sua 3ª Turma, sob a relatoria da Min. Nancy Andrigui, admitiu a aplicação das medidas preconizadas pelo art. 139, IV, do Código de Processo Civil, em ações investigatórias de paternidade, dimensionando o devido e adequado alcance da nova norma processual trazida pelo CPC/2015 (09).

A posição coincide com a doutrina do jurista Flávio Tartuce defendendo a utilização de medidas coercitivas atípicas do art. 139, inciso IV, do CPC nas ações de família em tempos pandêmicos e pós-pandêmicos (10).

O entendimento jurisprudencial sufragado, na extensão de suas latitudes, destacou:

“A impossibilidade de condução do investigado “debaixo de vara” para a coleta de material genético necessário ao exame de DNA não implica na impossibilidade de adoção das medidas indutivas, coercitivas e mandamentais autorizadas pelo art. 139, IV, do novo CPC, com o propósito de dobrar a sua renitência, que deverão ser adotadas, sobretudo, nas hipóteses em que não se possa desde logo aplicar a presunção contida na Súmula 301/STJ ou quando se observar a existência de postura anticooperativa de que resulte o non liquet instrutório em desfavor de quem adota postura cooperativa, pois, maior do que o direito de um filho de ter um pai, é o direito de um filho de saber quem é o seu pai”.

E com maior e elogiável alcance construtivo determinou:

“Aplicam-se aos terceiros que possam fornecer material genético para a realização do novo exame de DNA as mesmas diretrizes anteriormente formuladas, pois, a despeito de não serem legitimados passivos para responder à ação investigatória (legitimação ad processum), são eles legitimados para a prática de determinados e específicos atos processuais (legitimação ad actum), observando-se, por analogia, o procedimento em contraditório delineado nos art. 401 a 404, do novo CPC, que, inclusive, preveem a possibilidade de adoção de medidas indutivas, coercitivas, sub-rogatórias ou mandamentais ao terceiro que se encontra na posse de documento ou coisa que deva ser exibida”.

Como se observa do alinhamento jurisprudencial em ordem da atual crise da pandemia do Coronavid-19, uma nova jurisprudência está sendo apresentada, em prol da efetividade dos direitos e da instrumentalidade processual.

O presente momento é auspicioso para uma postura de jurisdição concretizada pelo sacramento de justiça perante a vida.

Na lição de Nelson Hungria tem-se que a vida, por ser uma variedade infinita, uma verdade difícil, nunca lhe assentam com irrepreensível justeza as roupas feitas da lei e os figurinos da doutrina.

Abner de Vasconcelos realçou o problema, reconhecendo que, não obstante a lei represente a fonte imediata do direito, a jurisprudência “é talvez a corrente mais rica da sua formação”, por refletir a necessidade sentida ao contato da vida real, sendo um fator eficiente na fixação de princípios.

Nessa nova produção de justiça, coloque a jurisprudência mais direito na vida e mais vida na vida da justiça. Que seja dita a justiça feita, dissipando as manifestações de carências e as tensões sociais; eficiente e imediata.

Ao modo dos ingleses:

“Justice must not only be done but also be seen to be done” (“A justiça não deve apenas ser feita, é preciso também que seja visto que ela foi feita”)

Anotações:

(01) CRUET, Jean. “A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis”. Lisboa: Editorial Ibero-Americana, 239 p., p. 57.

(02) Web:

https://ww2.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=107921477&tipo_documento=documento&num_registro=202000728103&data=20200325&formato=PDF

(03) Web:

http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Terceira-Turma-nega-regime-domiciliar–mas-suspende-prisao-de-devedor-de-alimentos-durante-a-pandemia.aspx

Web: https://www.conjur.com.br/2020-jun-02/devedor-pensao-prisao-suspensa-fim-epidemia

(04) Web: https://www.conjur.com.br/2020-jun-10/sancao-lei-adia-definicao-prisao-pensao-pandemia

(05) Web: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14010.htm

(06) Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo:

(07) Web: Web: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1948444&num_registro=201902783310&data=20200608&formato=PDF

(08) Web: https://www.conjur.com.br/2014-jan-08/direito-comparado-alimentos-compensatorios-brasil-exterior-parte

Web: https://www.conjur.com.br/2014-jan-15/direito-comparado-alimentos-compensatorios-brasil-exterior-parte

Web: https://www.conjur.com.br/2014-jan-22/direito-comparado-alimentos-compensatorios-brasil-exterior-parte

Web: https://www.conjur.com.br/2014-fev-05/direito-comparado-alimentos-compensatorios-brasil-exterior-parte

(09) Web: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1941100&num_registro=201900610800&data=20200605&formato=PDF

(10) Web: http://www.flaviotartuce.adv.br/

 é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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STF deve julgar possibilidade de anular acordos de delações dia 17

O Estado pode firmar acordo com colaborador e depois desistir? Essa é uma das questões que o Supremo Tribunal Federal começa a responder, dia 17 próximo, quando inicia o julgamento do pedido de rescisão, pela Procuradoria-Geral da República, da colaboração feita por acionistas e executivos da JBS.

A defesa alega que cumpriu sua parte. A PGR invoca supostas omissões como pagamento feito ao senador Ciro Nogueira, a contratação do ex-procurador da República, Marcelo Miller e a prática de insider trading — que seria o uso de informações privilegiadas no mercado financeiro. Os advogados repelem: apresentam o anexo da delação apresentado sobre Ciro Nogueira, documentos indicando que Miller não trabalhou na empresa e que não faziam a menor ideia de quando ocorreria a homologação do acordo.

Segundo o advogado de Joesley Batista, André Callegari, não houve omissão. “Não havia nenhum fato ilícito a ser informado quanto à conduta do ex-procurador Marcelo Miller, o que foi depois confirmado pela Justiça e pelo próprio Janot, e todos os anexos sobre os políticos foram entregues dentro do prazo acordado com a PGR”, afirma.

Manobra
O pedido de rescisão do então procurador-geral Rodrigo Janot foi uma manobra para salvar sua gestão. Para impedir a indicação e nomeação de Raquel Dodge, adversária de seu grupo político, Janot acreditou ter forças para derrubar o presidente Michel Temer. Depois de estimular a delação, que vinha sendo criticada, o procurador-geral achou que recuperaria o prejuízo perdido anunciando a rescisão — o que só poderia ser determinado pelo STF.

Para instigar os ministros, Janot chegou a anunciar, em rede nacional, falando em quebra de confiança e que descobrira, nas gravações dos colaboradores, “fatos gravíssimos”, indicando até mesmo corrupção de integrantes do STF. Não era verdade, como se constatou depois.

Lealdade processual
Desde o pedido de rescisão de Janot, o número de delações premiadas caiu verticalmente. A ideia de que um colaborador, em troca de benefícios, possa confessar erros próprios e alheios — e, depois do contrato assinado, descubra que só fez produzir provas contra si próprio, fez essa ferramenta de combate à corrupção entrar em compasso de espera.

Desde que foi fechada a colaboração da JBS com a PGR já foram abertos cerca de 100 inquéritos e ações penais a partir do material entregue pelos colaboradores. Segundo os advogados, foram apresentados mais de 4 mil documentos encaminhados a autoridades em todo o país, além de centenas de depoimentos.

Os empresários também aceitaram pagar cerca de R$ 11 bilhões em multas, o valor mais alto já registrado para acordos deste tipo. “Esse julgamento é maior que Joesley, Wesley ou mesmo a PGR. É o momento de o país reafirmar o instrumento da colaboração premiada pelos seus benefícios no combate à criminalidade”, afirma o advogado Eugênio Pacelli, que representa Wesley Batista.

Na mesma linha, o advogado André Luís Callegari, defensor de Joesley, afirma que está em jogo a segurança jurídica das colaborações premiadas. “O Estado não pode rasgar um acordo feito com um cidadão que cumpriu sua parte”, defende. “Se isso acontecesse, seria o fim das colaborações premiadas e de tudo o que elas construíram nos últimos anos”, completa.

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Leonardo Costa: Achatemos a curva das ações judiciais!

Existe um alarmante cenário que não está tendo o devido destaque neste polarizado debate dos temas envoltos à pandemia: já está prenunciado o colapso do Poder Judiciário caso não se fomentem outras soluções que não o ajuizamento de ações judiciais! Vamos nos atentar aos indícios deste anúncio antecipado!

Em recente artigo [1], Bruno Daleffi, Julio Trecenti e Marcelo Guedes Nunes, nacionalmente conhecidos pelo trabalho de Jurimetria, compararam os números de novas ações judiciais no Estado de São Paulo nos meses imediatamente anteriores à quarentena. 

De tais dados, chama a atenção o aumento em 20% no ajuizamento de ações judiciais na quinzena que imediatamente antecedeu o fechamento dos tribunais, indicando, já naquele momento, que o cenário de pandemia incitaria o maior volume de processos.

Na quinzena de fechamento, porém, houve uma esperada diminuição, seja pelo ineditismo da situação, cujas consequências ainda não se poderia prever, seja pela necessidade de “ficar em casa”.

Passada, no entanto, essa fase inicial de isolamento absoluto, ou, com mais razão, prolongado o isolamento por mais dias, dilatando, em igual proporção, os efeitos nefastos à economia, os números voltam a crescer de modo absolutamente preocupante.

Entre os dias 16 e 20 de março foram ajuizados mais de 180 pedidos de recuperação judicial só na capital do estado de São Paulo [2]. Se compararmos o número de recuperações judiciais no ano passado [3], 1.387, com a expectativa de pedidos neste ano, 2,5 mil [4], a preocupação é ainda mais reforçada.

O quadro, entrementes, vai além!

Se os números já alarmam no tocante à recuperação judicial, alarma maior haveria se conseguíssemos reunir tais dados relativamente ao número de ações em que, apoiando-se nos efeitos pandemia, pleiteia-se a suspensão de pagamentos, a revisão de obrigações e a resolução de contratos.

O CNJ até está louvavelmente tentando reunir tais informações, criando um Painel de ações relacionadas à Covid-19 [5], porém esse painel é alimentado voluntariamente pelos tribunais e pelas partes, de modo que ainda possui dados “subnotificados” (termo corriqueiro no cenário que vivemos).

Seja como for, são números igualmente assustadores e que nos levam a uma inevitável conclusão: também há que se achatar a curva das ações judiciais, sob pena de colapsar o Judiciário o Hospital das Empresas, como alguns têm preciosamente o adjetivado e disseminar a enfermidade empresarial!

Toda vez que uma empresa se enferma, é natural que ela se socorra perante o Poder Judiciário, seja para receber uma medicação mais branda como uma ação judicial isolada, ou para uma internação em leito de UTI pedido de recuperação judicial. Se um número descontrolado de empresas, porém, necessitar de medicação e de leitos de UTI, não precisa ser médico ou jurista para se presumir o caos que será instaurado!

Daí a necessidade de se pensar também no achatamento da curva de ações judiciais! É preciso se pensar em outros tratamentos! Mudar nossa cultura, sem temer que isso pese em nosso bolso (“órgão do corpo humano” mais sensível para alguns).

Não é momento de incentivarmos, irresponsavelmente, uma avalanche de ações judiciais desnecessárias (quando o forem, óbvio) se isso vai colapsar o sistema e aniquilar os suprimentos de todos, inclusive, ao final, de nossos próprios clientes.

É certo que as medidas públicas adotadas até então ainda não são suficientes para combater os efeitos econômicos da pandemia. As empresas em sua maioria vão adoecer, em menor ou maior grau. A empresa doente, por óbvio, procurará tratamento! E nós, advogados, devemos, sim, levá-la à internação, até mesmo, se for o caso, em leito de UTI, mas o façamos com responsabilidade!

É preciso, porém, que, antes, tentemos restringir o número de empresas em situações graves! Como? Aprimorando os tratamentos que temos e buscando outros novos!

As previsões existentes na legislação para revisão judicial de contratos e até mesmo de recuperação de empresas, não são suficientes para contornar a situação atual, de crise generalizada! A legislação que temos foi confeccionada para tratar crises de níveis menores que a atual, seja uma crise de um contrato isolado (teoria da imprevisão), seja para crise de uma empresa isolada com seus credores (recuperação judicial).

Não foi, no entanto, pensada para uma crise global e de todo o mercado, como a que vivemos. Afinal, como muito bem pontuado pelo amigo e brilhante advogado Lúcio Flávio Siqueira de Paiva [6], “a riqueza da vida não cabe na pobreza dos códigos”. Assim como neles não cabem as inevitáveis intempéries, como a atualmente vivida.

É preciso, então, desafogar o nosso hospital para que ele continue cuidando, com a precisão habitual, das moléstias mais graves. Indispensável, assim, que se fortaleçam as medidas extrajudiciais de resolução de conflitos que já EXISTEM, não necessita ser a roda inventada e o próprio pagamento das obrigações (circulando riquezas em momento em que isso é de tamanha valia!).

A maioria dos projetos até então apresentados, por mais bem intencionados e redigidos que sejam, encontra-se com olhares voltados a medidas que passam pelo Judiciário. Mais sensível ainda: estão circundando o instituto da moratória, com suspensão generalizada de pagamentos, quando talvez melhor seria fomentá-los!

Não que sejam propostas que não contenham pontos positivos, mas o momento exige que transcendamos!

O que é inquestionável, ou, ao menos, pouco refutado, é que a legislação que temos, não suporta a inédita crise que enfrentamos, de modo que, se todas as empresas se valerem dos tratamentos intensivos, corremos o risco de abarrotarmos nosso valoroso hospital!

É preciso, no entanto, que voltemos nossos olhos, criativamente, para tentarmos encontrar soluções que sejam baratas, rápidas e desjudicializadas, como tem defendido o professor Fábio Ulhoa Coelho, para que consigamos alcançar os pequenos negócios, com a celeridade que o momento exige e, ao mesmo tempo, achatando a curva das ações judiciais, preservando os hospitais das empresas.

Uma proposta com esses rótulos e que, se bem operacionalizada, pode servir de um bom tratamento, é a feita pelo próprio professor Fábio Ulhoa, na mesma linha que propôs Marcelo Guedes, de, por meio de medida provisória, estabelecer um procedimento declaratório, nas Juntas Comerciais, com parâmetros pré-estabelecidos de pagamento das dívidas, com fomento aos valores que sejam pagos nesse período inicial.

Ou mesmo que, enquanto em posições divergentes, colaboremos entre nós, advogados, lançando “mão de um terceiro advogado, um colega de confiança de ambos os profissionais, para realizar uma arbitragem claro, com força decisória vinculante que busque manter, de forma equânime e técnica, o equilíbrio do contrato e a recomposição de suas bases negociais”, como propôs Lúcio Flávio no já mencionado artigo que recentemente escreveu.

Seja como for, o importante é que nós, juristas, tenhamos a compreensão de nosso papel de defesa do Poder Judiciário como instrumento de defesa de nossos clientes, pensando, cada vez mais, em apenas levarmos aos hospitais as empresas que efetivamente necessitarem de tal socorro.

 é advogado, membro fundador do Instituto de Direito Societário de Goiás (IDSG), membro da Jornada de Direito Comercial do STJ, árbitro em conflitos societários, professor de Direito Empresarial em cursos de graduação e pós-graduação e master of laws em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ).