Categorias
Notícias

Chaves e Cavalcante: As ciências sociais em tempos de crise

O avanço da pandemia da Covid-19 e o espraiamento de suas consequências ocasionaram uma série de impactos sobre as mais diferentes realidades: social, econômica, política, jurídica, etc.

Essa marcha de acontecimentos, por um lado, produziu um cenário de flutuações, instabilidades e incertezas; por outro, descortinou novas e inúmeras interrogações de variadas ordens.

A perplexidade de todos diante da intensificação desses efeitos e perturbações, difíceis de entender e de superar, conduziu as ciências e a academia a um movimento de reflexões em busca do oferecimento de respostas a esses problemas.

Desde as primeiras referências à possibilidade de disseminação do vírus a uma escala global, ativou-se um fluxo de produção intelectual sem precedentes na história da humanidade, que teve a sua dispersão potencializada pelas tecnologias digitais contemporâneas que possibilitam a circulação em massa dos pensamentos, sob velocidade jamais imaginada.

Proliferaram, principalmente no campo das ciências sociais, colaborações intelectuais sob a forma de artigos de opinião decorrentes da expressão de sensos e intuições particulares a respeito da crise e de suas consequências, de construção e racionalidade frequentemente baseadas em visões fragmentadas da realidade e com oferecimento de respostas simples para problemas complexos.

Essas formulações, em grande parte, revelaram uma situação de falta de articulação do conhecimento e do pensamento que assinala, de certo modo, a necessidade de empreendimento de uma reflexão mais ampla sobre as ciências e suas possibilidades em meio à crise.

Propõe-se, assim, uma breve retrospectiva histórica sobre o contexto de surgimento e trajetória das ciências, para uma reflexão (principalmente) sobre o papel das ciências sociais e dos cientistas sociais.

A ciência moderna surge a partir das atualmente denominadas ciências da natureza, na transição entre os séculos XVI e XVII. Teve como elaborações seminais os estudos astronômicos e alquímicos nos mosteiros da idade média, que partiam de uma releitura da obra de Aristóteles com foco em seus escritos sobre filosofia natural. Foram tempos marcados pelo manejo de novos procedimentos de investigação (observação e experimentação), descobertas de novos fenômenos e construção de teorias que buscavam explicá-los.

Na idade moderna, começou-se a projetar a separação entre fé e razão e assim emergiu um embrião da filosofia moral que se cristalizaria nos questionamentos iluministas e contratualistas. Desses questionamentos e reflexões acerca dessa nova sociedade que se forjava no final do século XVIII, que teve teóricos ilustres como Montesquieu, Adam Smith, Condorcet e Herder, surgiria o impulso de uma nova ciência como filha rebelde da filosofia moral.

Constituiu-se a sociedade como objeto de estudo daquela então recém-inaugurada nova ciência, forjada nos movimentos políticos, na revolução industrial e nas ideias desenvolvidas no final do século XVIII, e que se diferenciava das ciências da natureza.

A sociedade, enquanto conjunto de pessoas que estabelecem relações sociais em suas atividades cotidianas, não surge, naturalmente, no século XVIII, mas este é o período histórico no qual começa a se reconhecer como uma nova dimensão do mundo.

Os primeiros usos da ideia e do termo “ciência social” datam do início do século XIX. Foram os chamados socialistas utópicos, Fourier, Saint-Simon e Comte, a partir de outra tradição do pensamento, que primeiro trabalharam com a noção de uma ciência sobre a sociedade. Já em meados do século XIX, o conceito de uma ciência social chegaria à Inglaterra através de Stuart Mill, sob a influência da obra de Comte.

Em sua trajetória, a ciência social seguiu um impulso de subdivisão em disciplinas do pensamento social como a Sociologia, a Antropologia, a História, a Ciência Política, a Economia e o Direito, portanto, uma orientação de especialização do conhecimento e de sua produção. O caminho trilhado desaguou numa tendência de fechamento de portas a outros saberes e, consequentemente, ao encapsulamento dentro de uma realidade particular e à fragmentação do próprio pensamento.  

No momento atual, a sociedade se vê diante de uma ameaça biológica até então não controlada ou compreendida adequadamente pelas ciências da natureza. Seus impactos incidem sobre as mais diferentes realidades, mais do que nunca, complexas e interligadas.

Especialmente em tempos de crise, ao Estado, enquanto consolidador de um contrato social, cabe o uso de instrumentos econômicos, jurídicos e de política social no sentido de proteger as pessoas e garantir uma mínima estabilidade da ordem social. Para tanto, além das imprescindíveis ações e estudos conduzidos pela “linha de frente” (áreas da saúde, por exemplo) no combate ao vírus e na mitigação de seus impactos sobre as pessoas, será necessário um profundo conhecimento das estruturas sociais e dos mecanismos de atuação institucionais, não apenas para organizar a sociedade durante a pandemia, mas principalmente para reestrutura-la depois.

Está posto, assim, o maior desafio das ciências sociais e dos cientistas sociais neste início de século XXI: contribuir com o oferecimento de soluções adequadas para o enfrentamento e a mitigação dos efeitos da pandemia sobre as mais variadas realidades.

Prognósticos sobre a dimensão exata, o desenvolvimento futuro ou o resultado desta pandemia são arriscados. Mais arriscadas (e limitadas!), contudo, parecem ser as tentativas de compreensão e, principalmente, de oferecimento de soluções para esse problema, complexo e multidimensional, tão somente a partir de opiniões fragmentadas decorrentes da expressão de sensos e intuições particulares a respeito da crise e de suas consequências.

Os problemas decorrentes da pandemia demandam não apenas respostas transdisciplinares, mas principalmente o reconhecimento dos limites e possibilidades da própria ciência em seu sentido mais amplo, que abarca não apenas a dimensão biológica da vida, mas também a dimensão social.

Não é momento, portanto, para o pensamento humano medir forças ou para se estabelecer hierarquias entre as ciências e os saberes. Apresenta-se, sim, uma ocasião propícia a uma reunião sem precedentes de esforços contra um inimigo comum, um vírus que, ao mesmo tempo em que ameaça a nossa vida biológica, permite a expressão maior daquilo que nos une enquanto humanidade.  

Faz-se, assim, uma exortação às ciências sociais e, principalmente, aos cientistas sociais, a um esforço de desvendamento conjunto, um convite à reflexão sobre a necessidade, conveniência e oportunidade de estabelecimento de canais mais amplos de interfaces e diálogos, fluxos intelectuais mais unificados resultantes da associação e articulação de conhecimentos, pensamentos e visões sobre a realidade e seus desdobramentos.

 é professor permanente do PPGD da Unesa, professor adjunto de Direito Comercial da FND/UFRJ, professor adjunto de Direito Comercial da UFF e doutor em Direito pela UERJ.

Categorias
Notícias

Willians Pires: O seguro-garantia e a recente decisão do CNJ

No último dia 27 de março, em meio à intensificação das medidas restritivas de circulação de pessoas e da economia decorrente do avanço da pandemia da Covid-19 no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu um importante precedente para empresas de todos os setores, confirmando a possibilidade de substituição do depósito recursal já efetuado em dinheiro por seguro garantia judicial ou fiança bancária.

Tal decisão foi proferida nos autos de Procedimento de Controle Administrativo nº 0009820-09.2019.2.00.0000, ajuizado pelo Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil). O conselheiro Mário Guerreiro, que abriu divergência, teve seu voto declarado vencedor para declarar nulos os artigos 7º e 8º do Ato Conjunto nº 1/2019 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho (CGJT) [1].

O contexto da Covid-19 parece ter esmaecido, infelizmente, a merecida divulgação desta relevante decisão. A gravidade da pandemia, ainda vivenciada na data em que se escrevem estas linhas, não poderia mesmo ser mitigada por qualquer outra razão. De qualquer forma, a análise mais detalhada dos fundamentos da decisão proferida pelo CNJ e sua repercussão na esfera jurídico-trabalhista é o que se propõe no presente artigo.

Definição
seguro-garantia é uma das modalidades de contrato de seguros que tem como finalidade garantir o fiel cumprimento de determinadas obrigações assumidas em ações e/ou contratos.

O tomador é o contratante do seguro, potencial devedor da obrigação que se pretende garantir. O segurado, por sua vez, é o credor da obrigação garantida, o destinatário da indenização.

A Superintendência de Seguros Privados (Susep) regula e fiscaliza qualquer modalidade de seguro oferecido no mercado. No caso do seguro-garantia, a regulamentação se encontra na Circular nº 477/2013 da Susep, sem prejuízo de outras leis ou regulamentos sobre o tema.

O seguro garantia pode ser dividido em setor público e setor privado, conforme os seus artigos 4º e 5º Circular nº 477/2013. No setor público, pode ser aplicado nas obrigações assumidas pelo tomador em processos administrativos; judiciais, inclusive execuções fiscais; parcelamentos administrativos de créditos fiscais, inscritos ou não em dívida ativa; e/ou regulamentos administrativos. Já no setor privado, sua aplicação se verifica nos contratos em geral.

Constata-se a relevância do seguro-garantia pelo fato de ser previsto em diversas leis. No âmbito licitatório, por exemplo, a apresentação de garantias é importante na medida em que protege o adimplemento contratual pelos vencedores dos certames e, consequentemente, o erário. Nesse sentido é o artigo 6º, inciso VI, da Lei de Licitações (nº 8.666/93).

Já a Lei n.º 6.830/80 (Lei das Execuções Fiscais), por meio dos artigos 7º, inciso II, 9º, inciso II, §2º e §3º, 15, inciso I, e 16, inciso II, faz previsão do seguro garantia. A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) regulamentou sua utilização por meio da Portaria nº 164/2014.

Na esfera das relações privadas, a relevância do seguro-garantia não é menor, pois viabiliza relações jurídicas que, de outro modo, não se concretizariam. Seu uso é comum em contratos de locação e de fornecimento em que as prestações são continuadas e o pagamento, diferido.

O seguro-garantia e a fiança bancária representam, ainda, meios mais baratos para que o devedor possa garantir o débito judicial enquanto discute se este é devido ou não, o seu mérito. A utilização desse tipo de apólice é historicamente aceita pelo Poder Judiciário.

 

Breve histórico do seguro-garantia na Justiça do Trabalho
A substituição do dinheiro para garantia do valor executado é prevista desde a redação original da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que, nos artigos 880 e 882, já utilizava as expressões garanta a execução, sob pena de penhora” e “garantir a execução nomeando bens à penhora, ou depositando a mesma importância”, respectivamente.

Logo, no Processo do Trabalho sempre foi possível a substituição do depósito em dinheiro. A alternativa mais comum era a nomeação de bens à penhora e a sub-rogação do autor-credor em direitos do réu-devedor.

Ocorre que a nomeação de bens à penhora dá início a uma série de atos processuais para localização, avaliação e posterior praceamento, nem sempre exitoso. Sem nos esquecermos de que o valor da arrematação pode ser menor que o da avaliação, que por sua vez costuma ser menor que o valor de mercado, o que gera prejuízos ao devedor e ao credor.

O legítimo exercício, pelo réu, da ampla defesa e do contraditório, conforme o artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, pode prolongar as discussões quanto aos atos expropriatórios.

Diante da maior liquidez do dinheiro, o artigo 655 do Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73) já estabelecia uma ordem de preferência entre os bens apresentados à penhora. O primeiro lugar, presumivelmente, era ocupado pelo próprio dinheiro, seguido de títulos da dívida pública, ações, bens móveis, imóveis e assim sucessivamente.

Embora a Justiça do Trabalho já adotasse este entendimento em razão da subsidiariedade do processo comum, conforme artigo 769, da CLT, em setembro de 2000 a Seção Brasileira de Dissídios Individuais 2 do TST editou a Orientação Jurisprudencial nº 59 [2], equiparando expressamente a carta de fiança bancária ao dinheiro na escala do artigo 655 do CPC/73.

A Lei nº 11.382/2006 incluiu o §2º ao artigo 656 do CPC/73, equiparando o seguro garantia e a fiança bancária ao dinheiro na ordem de preferência, desde que contratadas pelo valor bruto da dívida acrescido de 30%, que passou a ser exigido também no âmbito trabalhista.

Com o novo CPC, em 2015, a ordem de preferência passou a ser prevista no artigo 835 [3], tendo sido mantida a previsão de substituição pelo seguro garantia ou carta de fiança e a exigência de majoração do valor em 30% [4]. Em junho de 2016, o TST alterou a OJ nº 59 para adaptá-la ao texto do novo CPC, reiterando as mesmas condições [5].

A Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) introduziu o entendimento da OJ nº 59 no texto legal ao dar nova redação ao artigo 882 da CLT [6]. Porém, sua grande novidade nesse tema foi a inserção do §11 ao artigo 899 da CLT: “O depósito recursal poderá ser substituído por fiança bancária ou seguro garantia judicial”.

Assim, a substituição do depósito em dinheiro por seguro garantia ou carta de fiança bancária não mais se limitou à fase de execução, passando a ser admitida na fase de conhecimento para substituição do depósito recursal, requisito de admissibilidade dos recursos trabalhistas.

O Ato Conjunto nº 1 TST/CSJT/CGJT de 16 de outubro de 2019
Pouco menos de dois anos depois da Reforma Trabalhista, os órgãos superiores da Justiça do Trabalho (TST, CSJT e CGJT) editaram o Ato Conjunto nº 1 de 16 de outubro de 2019 para regulamentar o seguro garantia judicial e da carta de fiança bancária no Processo do Trabalho. Segundo tais órgãos, o ato foi editado para “emprestar maior efetividade às decisões judiciais e às execuções dessas decisões”.

A citada norma estabeleceu, em seu artigo 3º, os requisitos do seguro garantia judicial e da fiança bancária, entre eles:

I) Emissão por seguradora idônea e autorizada a funcionar no Brasil;

II) Valor equivalente ao bruto da condenação acrescido de 30%;

III) Acréscimo de 30% também na substituição do depósito recursal, observados os tetos estabelecidos anualmente pelo TST [7];

IV) Previsão do índice de atualização monetária;

V) Referência ao número do processo;

VI) Manutenção da vigência em caso de inadimplemento do segurado; 

VII) Vigência de, no mínimo, três anos; e

VIII) Cláusula de renovação automática.

A norma indica os documentos que devem instruir o pedido de substituição: I) registro da apólice na Susep; e II) certidão de regularidade da seguradora perante o mesmo órgão. Fixa, ainda, o prazo para apresentação da apólice, que será o mesmo do ato processual que visa garantir.

Presumivelmente, o artigo 6º, inciso II, determina que o não preenchimento dos requisitos implica, se na execução, o não conhecimento dos embargos do devedor e a consequente penhora livre de bens e, se na substituição do depósito recursal, a deserção do recurso.

Os artigos 7º e 8º do ato impunham a rejeição da substituição se a apólice, respectivamente: I) fosse apresentada na execução depois da efetivação do depósito ou da constrição em dinheiro por meio de penhora, arresto ou outra medida judicial; ou II) ocorresse depois da realização do depósito recursal em dinheiro, no caso da interposição de recursos.

No entanto, ao interpretar os artigos 882 e 899, §11, da CLT, a norma estabelecia regra diametralmente oposta à lei, o que foi objeto de impugnação, da qual trataremos a seguir.

A decisão do CNJ e sua importância no contexto de crise
Não obstante as nobres razões declaradas pelos órgãos superiores da Justiça do Trabalho no Ato Conjunto nº 1 TST/CSJT/CGJT de 16 de outubro de 2019, o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (Sinditelebrasil) instaurou Procedimento de Controle Administrativo (PCA) nº 0009820-09.2019.2.00.0000 perante o CNJ, pugnando pela anulação dos artigos 7º e 8º do referido ato.

O conselheiro Mário Guerreiro substituía a relatora designada, conselheira Tânia Reckziegel quando da distribuição do PCA, tendo concedido liminar para permitir a substituição dos depósitos recursais e garantias já apresentadas até o julgamento definitivo da medida.

Em síntese, a petição inicial argumentava que os artigos 7º e 8º do ato afrontavam o princípio da legalidade estrita, além da independência funcional da magistratura. Isso porque, ao vedar a substituição de garantias e depósitos recursais, o ato estabeleceu regra em sentido diametralmente oposto ao do §11 do artigo 899, da CLT, introduzido pela Lei nº 13.467/2017.

O autor alegou, ainda, que o ato afrontava o artigo 40 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional porque vinculava a decisão meritória do juiz independentemente das particularidades do caso e da sua convicção pessoal.

No julgamento de mérito, a relatora Tânia Reckziegel propôs a revogação da liminar concedida e a total rejeição do pedido para manter a validade dos artigos 7º e 8º do ato.

Segundo a conselheira, não seria razoável analisar a regularidade do depósito recursal após a interposição ou julgamento do respectivo recurso, por interpretação literal do artigo 1.007 do CPC. Acrescentava que “uma vez optado pela garantia em dinheiro, a alteração do meio garantidor não é mais admitida à luz do princípio da efetividade da jurisdição”.

Aliás, o voto da relatora reiterou o princípio da efetividade em vários momentos, sempre com explícita preferência pelo dinheiro que, no seu entendimento, em qualquer circunstância ostenta maior liquidez para satisfação do crédito trabalhista.

Com todo respeito, o voto da relatora ignorava as principais características do seguro garantia judicial e da fiança bancária.

Em primeiro lugar, o próprio artigo 10 do ato impugnado já prevê as hipóteses de caracterização do sinistro, que gera o acionamento da apólice e o consequente pagamento.

Em seu inciso I, tratando da execução do título judicial, o sinistro será determinado se houver inadimplemento do devedor ou em caso de não renovação da apólice nos 60 dias anteriores ao fim de sua vigência, por simples despacho do juiz.

Se apresentado para substituição do depósito recursal, determina o inciso II que o sinistro será declarado após o trânsito em julgado da decisão, o julgamento do recurso garantido ou, ainda, em caso de não renovação da apólice a tempo e modo, também por determinação do juiz.

Ademais, o artigo 3º, inciso IV, do qual já tratamos, exige que a apólice contenha cláusula na qual a seguradora se obrigue a não se eximir do pagamento da indenização mesmo se a tomadora estiver inadimplente em relação ao prêmio do seguro. A disposição, aliás, está em conformidade com o artigo 11, §1º da já mencionada Circular nº 477 da Susep [8].

Vale mencionar que o mesmo dispositivo do ato exige a renúncia expressa ao direito previsto no artigo 763 do Código Civil, que confere à seguradora a possibilidade de se recusar a quitar a indenização em caso de mora do segurado no pagamento do prêmio.

No caso do depósito recursal, a relatora afastava a equiparação do seguro garantia ao dinheiro prevista no artigo 835, §2º, do CPC/2015 por entender que “se trata de momento processual distinto, sendo o dispositivo processual comum referente à fase em que já iniciada a execução, ou seja, em etapa já avançada em relação à recursal”.

Ora, se é lícita a equiparação na fase de execução quando a satisfação da obrigação é iminente mais ainda o é na fase recursal, momento em que o crédito sequer está estabilizado.

O voto da relatora não atentava, ainda, para o princípio previsto no artigo 805 e parágrafo único do CPC/2015 [9], qual seja, de adoção nas execuções do meio menos gravoso ao executado.

Nas palavras do conselheiro Mário Guerreiro, cujo voto divergente foi acompanhado pela maioria do colegiado, o ato impugnado “afronta o princípio da legalidade (…) e a independência funcional da magistratura (…) bem como traz consequências econômicas negativas de grande repercussão para as empresas’.

Segundo ele, além dos fundamentos jurídicos, é necessário considerar a relevância da questão econômica. O uso das apólices de seguro tem o potencial de movimentar bilhões de reais “parados” nas contas do Judiciário, que podem promover investimentos e geração de empregos.

Adicionamos a esse argumento mais um: o depósito judicial é remunerado pelo índice da poupança, enquanto qualquer fundo de perfil conservador gera retornos melhores, estando clara, também sob esse prisma, a promoção da execução com a menor onerosidade para o executado.

O próprio Ato Conjunto nº 1 TST/CSJT/CGJT, de 16 de outubro de 2019, promoveu a efetiva equiparação do seguro-garantia e da fiança bancária ao dinheiro ao eliminar entraves para sua conversão em pecúnia e estabelecer as regras mínimas das apólices. Logo, por qualquer ângulo que se analise, não havia razão para proibição da substituição dos depósitos e garantias já realizados em dinheiro pelo seguro garantia ou fiança bancária.

A confirmação da possibilidade de liberação de valores depositados em juízo pelo CNJ se trata de uma excelente notícia para as empresas garantirem a manutenção de suas atividades e evitarem demissões em tempos de crise, gerando efeitos benéficos sobre toda a economia.

 é especialista em Direito do Trabalho pela PUC-SP (2012) e pós-graduando em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp.