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Clark e Bagno: A conduta dos planos durante a Covid-19

Nos últimos anos no Brasil, as políticas neoliberais de regulação e de austeridade [1] ganhou vozes e ações realizando uma transformação no papel do Estado, via redução drástica do Estado Empresário e modificação da legislação em prol da setor privado,  “revivendo” um suposto e idealizado Estado Mínimo, de Adam Smith, do final do século  18 e do inicio da revolução industrial.

Assim, os questionamentos quantos aos limites dos poderes regulatórios públicos fomentam os debates, cujos argumentos devem ser colhidos e criticados, de modo a verificar a pertinência e veracidade dos modelos implementados.

Especificamente no campo da saúde, há quem argumente que a ação do Estado causou a diminuição da quantidade das operadoras privadas de planos de saúde no país, ou mesmo teria diminuído a flexibilização dos planos comercializados, com limitação à autonomia da vontade do consumidor e ao aumento da eficiência do setor.

Por outro lado, os defensores da presença regulatória do Estado indicam sua necessidade na defesa dos interesses da coletividade e para proteger/viabilizar o direito constitucional à saúde, enquanto serviço público executado pelo setor privado.

Nesse debate, interessante observar o comportamento dos agentes privados do segmento de saúde diante da pandemia do coronavírus (Covid-19), de modo a validar, ou invalidar, as visões apresentadas quanto a ação estatal na saúde ou não.

Assim, após a constatação de que a pandemia da Covid-19 havia chegado ao Brasil, observou-se um considerável movimento por parte da operadoras privadas de planos de saúde no sentido de negar cobertura à realização de exames clínicos para o diagnóstico e aos procedimentos terapêuticos necessários as enfermidades do Coronavírus, bem como impor limites ao período de internação hospitalar.

Nesse sentido, a Diretoria de Fiscalização da ANS elaborou material interativo, disponibilizado em seu sitio eletrônico [2], com a análise numérica dos efeitos da Covid-19 na saúde suplementar. Dentre os dados apresentados, verifica-se que no comparativo de março e abril de 2020, o número de reclamações por negativa de cobertura para exame mais que dobrou — aumento de 150% — e as reclamações por negativa de cobertura para tratamento ou internação aumentaram mais cerca de 600%.

A conduta dos planos privados de saúde chamou a atenção do Ministério Público Federal e em 19 de março de 2020 ele expediu ofício n.º 43/2020/AC/3CCR solicitando à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) providencias garantidoras da manutenção dos serviços médicos aos beneficiários [3].

Igualmente preocupada com postura das operadoras privadas de plano de saúde, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública [4] em desfavor das seis principais operadoras do Estado, com o objetivo de garantir judicialmente os direitos dos beneficiários de acesso aos exames para diagnóstico e procedimentos de tratamentos indispensáveis à Covid-19.

Quanto ao referido pleito ajuizado, o juízo competente proferiu decisão liminar determinando às operadoras rés a liberação imediata de cobertura para o atendimento e tratamento em favor dos beneficiários suspeitos ou portadores da Covid-19, sob pena de multa de R$ 50 mil por paciente.

Dito isso, de pronto o argumento de que a ausência da ação estatal no setor da saúde aumenta sua eficiência passa a se tornar mito, uma vez que diante da pandemia sanitária internacional, a postura dos principais agentes do dito setor privado foi de negar a prestação de serviço e não torná-la mais eficiente e disponível.

Ademais, é necessário apontar que as condutas adotadas acima, no caso da Covid-19, se tornam ainda mais grave, pois a saúde trata-se de um direito social previsto na Constituição de 1988, nos termos do art. 6º, reconhecendo-se, portanto, o seu caráter básico na própria existência humana [5].

Na nossa ordem constitucional, o Estado (art. 196 da CR) é o verdadeiro responsável por assegurar o acesso aos serviços e ações na promoção, proteção e recuperação da saúde de cada indivíduo, bem como da coletividade, estabelecendo uma atuação estatal imprescindível, inclusive quando o setor privado presta tal serviço público.

Paralelamente, o texto constitucional também abriu oportunidade para a participação do setor privado na área do serviço público de saúde, nos termos do art. 197 e seguintes, dando sustentáculo ao já formado segmento da saúde suplementar no Brasil, que se desenvolveu nos últimos vinte anos sob a regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), nos termos da Lei Federal de n. 9.656/98.

No caso da pandemia, os comandos constitucionais e outros dispositivos infraconstitucionais são essenciais para obrigar as operadoras privadas de plano de saúde a cumprirem os contratos anteriormente firmados e garantir a assistência médicas de seus beneficiários.

Especificamente a respeito das medidas observadas no cenário de pandemia, deve-se registrar que a cobertura dos exames de detecção e infecção da Covid-19 já integram os planos de saúde básicos, nos termos do art. 10 da Lei n.º 9.656/98 [6] não havendo de se falar em negativa por parte das operadoras privadas. Igualmente, a limitação do período de internação hospitalar também encontra-se expressamente vedada pelo art. 12 da referida lei [7].

Outro argumento utilizado pelas operadoras privadas para a negativa de cobertura foi em relação ao período de carência dos contratos, contudo, como também se sabe, inclusive nos casos das doenças motivadas pela pandemia, a carência dos planos deve se aplicar os termos da Resolução n.º 259/2011 da ANS [8], ou seja: três dias para exames laboratoriais e tratamento imediato nos casos urgentes ou emergentes.

Por fim, as operadoras privadas de saúde também argumentaram que a Covid-19 não estaria relacionado nas doenças de cobertura obrigatória dos seus planos, e por consequências elas não teriam o dever de oferecerem coberturas nos tratamentos das enfermidades causadas pelo vírus.

Em resposta, a ANS demonstrou que tais doenças estão cobertas no plano básico em vigor e, para sanar qualquer debate, editou a Resolução n.º 453/2020 [9], incluindo de forma expressa os procedimentos e exame de Covid-19 no rol de cobertura de procedimentos obrigatórios.

Assim, se considerada apenas a legislação vigente, não haveria dúvidas de que os beneficiários de planos de saúde privado estariam cobertos, tendo assistência medica e hospitalar garantidas, no cenário de pandemia.

Além disso, a ANS também propôs um termo de compromisso com as operadoras privadas de plano de saúde para que elas mantivessem o pagamento dos profissionais e de estabelecimentos de saúde; abrirem canais de renegociação para os planos individuais, familiares e coletivos com até 29 vidas, administrando inclusive as eventuais inadimplência. Em contrapartida, a ANS flexibilizaria as regras de resgate de cerca de R$ 15 bilhões do fundo de reserva [10]. Fundo esse mantido como garantidor das operações das próprias operadoras privadas, nos termos da Resolução n.º 392/2015 da ANS [11]. Contudo, apenas nove operadoras aderiu ao termo [12].

Ademais, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar, um de cada quatro brasileiros são beneficiários de planos de saúde, sendo que no terceiro trimestre de 2019, a saúde suplementar teria registrado um total de R$ 158,7 bilhões em receita de contraprestações [13]. A título de comparação dos valores, o orçamento federal para a saúde no exercício de 2019 foi de R$ 127,07 bilhões, segundo o portal da transparência [14].

Não obstante, mesmo com a clareza da legislação e as ações da ANS, verificou-se na pratica negativas e abusos cometidos pelas operadoras privadas de planos de saúde. Assim, se constata que, posto a prova, ao menos no segmento da saúde privada brasileira, ficou evidente que a ação estatal é crucial a fim de garantir o direito constitucional da população.

Afinal, tão logo instaurada a pandemia e a ampliação das demandas de assistência médica e laboratoriais da enfermidades da Covid-19 e, consequentemente, o “aumento” no custo da prestação de serviços supostamente não contabilizados nas projeções financeiras realizadas, a reação imediata das operadoras privadas de plano de saúde foi pela negativa de cobertura, haja vista o aumento das reclamações por recusa de cobertura de exame e tratamentos [2].

Desse modo, considerando-se a pandemia um cenário teste das políticas econômicas neoliberais [15] brasileiras, a partir dos anos 90 do século 20 (regulação e austeridade), constatou-se a evidente necessidade do planejamento de política pública de saúde, e nesse caso concreto, com ações coordenadas e democráticas no combate à pandemia, devendo envolver o setor de saúde suplementar, mas sob a coordenação, regulação e atuação dos poderes públicos nacionais.

REFERÊNCIAS:

[1] CLARK, Giovani. CORRÊA, Leonardo Alves. NASCIMENTO, Samuel Pontes do. A Constituição Econômica entre a Efetivação e os Bloqueios Institucionais. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n, 71, p. 677-700, jul/dez 2017.

[2] Estudo disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNTMzYjNmZDQtODczOC00ZTFmLWJhNzUtNjdlM2FkMjZjMGJmIiwidCI6IjlkYmE0ODBjLTRmYTctNDJmNC1iYmEzLTBmYjEzNzVmYmU1ZiJ9. Acesso em 06/05/2020.

[3] Ofício n. 43/2020/AC/3CCR, expedido pelo Ministério Público Federal, em 19 de março de 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/3CCR_OficioANS.pdf. Acesso em 03/05/2020.

[4] Petição inicial dos autos de n.º 1029663-70.2020.8.26.0100, protocolada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Disponível em https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=2S0018NBY0000&processo.foro=100&processo.numero=1029663-70.2020.8.26.0100&uuidCaptcha=sajcaptcha_2029764602c44b8e8ee31731dee07194. Acesso em 03/05/2020.

[5] SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

[6] Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto:

§ 4o A amplitude das coberturas, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será definida por normas editadas pela ANS.

[7] Art. 12. São facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, nas segmentações previstas nos incisos I a IV deste artigo, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência de que trata o art. 10, segundo as seguintes exigências mínimas: I – quando incluir atendimento ambulatorial: a) cobertura de consultas médicas, em número ilimitado, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina; (…)  I – quando incluir internação hospitalar: a) cobertura de internações hospitalares, vedada a limitação de prazo, valor máximo e quantidade, em clínicas básicas e especializadas, reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, admitindo-se a exclusão dos procedimentos obstétricos;(…)

[8] Art. 3º A operadora deverá garantir o atendimento integral das coberturas referidas no art. 2º nos seguintes prazos: (…) IX – serviços de diagnóstico por laboratório de análises clínicas em regime ambulatorial: em até 3 (três) dias úteis; (…).

[9] [1] Resolução n.º453/2020 da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Art. 1º A presente Resolução altera a Resolução Normativa – RN nº 428, de 07 de novembro de 2017, que dispõe sobre o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde no âmbito da Saúde Suplementar, para regulamentar a utilização de testes diagnósticos para infecção pelo Coronavírus.

Art. 2º O Anexo I da RN nº 428, de 2017, passa a vigorar acrescido do seguinte item, “SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – pesquisa por RT – PCR (com diretriz de utilização)”, conforme Anexo I desta Resolução.

Art. 3º O Anexo II da RN nº 428, de 2017, passa a vigorar acrescido dos itens, SARS-CoV-2 (CORONAVÍRUS COVID-19) – PESQUISA POR RT-PCR cobertura obrigatória quando o paciente se enquadrar na definição de caso suspeito ou provável de doença pelo Coronavírus 2019 (COVID-19) definido pelo Ministério da Saúde, conforme Anexo II desta Resolução.

[10] Informação disponível em: http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/coronavirus-covid-19/coronavirus-todas-as-noticias/5481-ans-divulga-termo-de-compromisso-para-liberacao-de-recursos-as-operadoras. Acesso em 06/05/2020.

[11] Informação disponível em: http://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=MzE1M. Acesso em 06/05/2020.

[12]Informação disponível em: https://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/coronavirus-covid-19/coronavirus-todas-as-noticias/5497-coronavirus-ans-divulga-operadoras-que-aderiram-ao-termo-de-compromisso. Acesso em 06/05/2020.

[13] Informação disponível em: https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor/sala-de-situacao. Acesso em 05/05/2020.

[14] Dados do Portal da Transparência. Disponível em:http://www.portaltransparencia.gov.br/funcoes/10-saude?ano=2019. Acesso em 03/05/2020.

[15] SOUZA, Washignton Peluso Albino. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6ª edição. São Paulo: LTr, 2017.

 é professor de Direito Econômico das faculdades de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da PUC Minas.

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Yun Ki Lee: Não-discriminação versus saúde pública no STF

Posto assim, nua e crua, a escolha acaba por recair, fatalmente, na segunda. Afinal, a vida deve se sobrepor a tudo.

A bem da verdade, ainda que em tese, questão assim jamais deveria ser posta deste modo, tão despida de qualquer circunstância, a ponto de inibir até um simples começo de raciocinar. É artimanha de encerrar uma discussão, que sequer é iniciada, pois demanda respostas absolutas, não se permitindo argumentar.

O seu responder clama volver à própria questão em si, a fim de capturar 3 elementos cruciais: (i) as circunstâncias envoltas, isto é, de tudo que cerca o caso, hipotético ou concreto, desde as razões de fato, inclusive elementos morais e fatores técnicos e científicos, até as de direito (normas nacionais, supranacionais e internacionais); (ii) a necessidade de se escolher entre um direito fundamental e humano ou outro; e (iii) a adequação do caminho eleito, evitando-se, a todo custo, o completo exaurir de qualquer direito apresentado de igual quilate.

Pois é por esta modelagem que se propõe a destacar o importante precedente recém firmado pelo Supremo Tribunal Federal (7×4), com efeitos erga omnes, de sacar do campo de validade a proibição de doação de sangue por homens homossexuais, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543-DF.

Para a corrente majoritária — ministros Edson Fachin (relator), Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Carmén Lúcia e Dias Toffoli —, o que deve prevalecer para restringir uma pessoa de doar sangue é a conduta sexual de risco, ou seja, o contato sexual que envolva riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue, e não a orientação sexual. O fato de um homem manter relações sexuais com outro homem, per se, não é suficiente para caracterizar prática sexual de risco a justificar sua rejeição, de plano, como doador, devendo-se seguir os mesmos procedimentos aplicáveis a homem heterossexual, que queira doar sangue.

Mesmo nos votos vencidos, não se pugna pela supremacia de um (saúde pública) sobre outro (não-discriminação) — ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Marco Aurélio. Apenas não vislumbraram como ato discriminatório a restrição porque fundada em dados técnicos e científicos, e não na orientação sexual.

Acrescente-se às circunstâncias fáticas que envolvem o caso levado a julgamento, que o recrudescimento da inaptidão temporária, por 12 meses, para doar sangue de homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes remonta à década de 1980, quando da eclosão da epidemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, a AIDS, causada pelo vírus HIV. Foi a forma mais eficaz, menos custosa e replicável para todos países que, então, a ciência pode dispor para auxiliar no combate à propagação desta terrível doença. De lá para cá, os avanços da tecnologia e dos protocolos de coleta, processamento, estocagem, distribuição e aplicação do sangue e seus derivados, bem como a exigência de exames laboratoriais, inclusive de HIV, conferem, atualmente, um grau alto de segurança aos doadores, profissionais de saúde, recipientes e, também, à toda sociedade.

Ainda no seio das circunstâncias envoltas, mas, agora, das jurídicas, destacam-se os já citados direitos fundamentais e humanos da igualdade a vedar atos discriminatórios e da saúde pública a resguardar a vida e segurança, além da previsão constitucional a determinar que lei disponha sobre sangue e seus derivados, e também as leis, decretos e atos administrativos a vedarem homens homossexuais de doar sangue (Constituição Federal: arts. 3º, IV, 5º e 199, § 4º / Convenção Americana sobre Direitos Humanos: arts. 1, 4, 5, 7 e 24 / Declaração Universal dos Direitos Humanos: arts. I, II, III e VII / Leis Federais 7.649/1988 e 10.205/2001 / Decretos Federais 95.721/1988 e 3.990/2001 / Portaria do Ministério da Saúde 158/2016, art. 64, IV / Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional da Vigilância Sanitária RDC-ANVISA 34/2014, art. 25, XXX, “d”).

A necessidade de se escolher entre um direito fundamental e humano ou outro decorre da materialização da disputa, pois a discussão passou do campo abstrato para o mundo concreto, pela submissão do caso ao Judiciário a reclamar resposta, uma decisão, a valer para todos, já que com efeitos erga omnes, inclusive, sobre eventuais legislações futuras.

O caminho eleito pelo Supremo Tribunal Federal, em sua decisão, de varrer do mundo jurídico a restrição para homens que mantêm práticas sexuais homossexuais de doar sangue, aplicando-se-lhes o mesmo procedimento legal a recair sobre homens heterossexuais, apresenta-se perfeitamente adequado. Tornar sem nenhum efeito para fins de doação de sangue a ordem de “considerar-se-á inapto por 12 (doze) meses homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes” (Portaria do Ministério da Saúde 158/2016, art. 64, IV e RDC-Anvisa-MS 34/2014, art. 25, XXX, d) é consentâneo com as melhores circunstâncias fáticas e jurídicas hodiernas, na medida em que prestigia a igualdade, afasta situação discriminatória que não mais se sustenta e, ainda, salvaguarda a saúde pública e a segurança de todos, desde doadores a recipientes e profissionais de saúde, e até a sociedade em geral, face aos avanços técnicos e científicos já atingidos e tendo em vista que o sangue coletado deve, peremptoriamente, ser submetido a testes imunológicos de toda sorte, praticados em nosso país com elevada eficácia. Não por acaso, instada a se pronunciar, a própria Organização Mundial da Saúde, em 2018, reconheceu que suas orientações a respeito foram elaboradas em uma época um tanto longínqua, mas que, com o grande progresso técnico e científico dos últimos anos, já é possível traçar um denso mapeamento de segurança do sangue coletado. E, em conclusão, informa sobre necessidade de rever tais orientações, inclusive, aquelas relativas a doações de sangue por homens que têm relações sexuais com outros homens.

Muito mais que deixar de exaurir um direito fundamental e humano ao escolher um outro para fins de solução de um caso concreto a julgar, neste histórico e relevante precedente, o Supremo Tribunal Federal, a um só tempo, prestigiou ambos, convertendo o “não-discriminação versus saúde pública” em “saúde pública sem discriminação” e até em “segurança com igualdade”.

O teste de aderência à realidade do posicionamento firmado pela nossa Corte pode ser aferido no quanto uma pessoa tem ferido sua liberdade de realizar ato humanitário de doar sangue, mas ser barrada pela orientação sexual, e não por comportamento sexual de risco. É corroer a alma, a dignidade da pessoa humana. Não só de quem doa, mas também do recipiente, dos profissionais da saúde e de cada um de nós, por razão já superada.

À magistral lição de como bem aplicar a proporcionalidade neste caso real e concreto, e ao meio eleito adequado e razoável de solução, rendem-se os mais efusivos aplausos.

Yun Ki Lee é advogado, sócio fundador da Lee, Brock, Camargo Advogados (LBCA), mestre em Direito Econômico pela PUC-SP, presidente da OKTA-SP e membro efetivo da Comissão de Relações Internacionais da OAB-SP.

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Opinião: O papel orientador dos tribunais de contas

O cenário de grave crise epidemiológica exige ações emergenciais dos gestores públicos. Dentre os desafios trazidos pela doença, a flexibilização de normas que pautam a execução dos gastos públicos influencia diretamente na atuação dos tribunais de contas, sobretudo quando se leva em conta que a tônica tem sido no sentido evitar que atuação desses órgãos seja um entrave à ajuda humanitária.

Em relação ao gasto de recursos públicos em medidas e ações para combater a doença, presenciamos no Congresso propostas usando como base para dar sustentação a necessidade de dar mais segurança jurídica para os gestores no cenário pós-crise.

Nesse contexto, é importante ressaltar que o exercício das competências dos tribunais de contas, inclusive no contexto de calamidade pública causada pela Covid-19 e na interpretação da Lei nº 13.979, de 2020, deve observar o ordenamento jurídico vigente, de alicerce constitucional, que impõe uma colegialidade processual-decisória, de forma a não colocar em risco a situação jurídico-funcional dos agentes públicos. Sendo imprescindível garantir o devido processo legal de controle externo e a atuação independente, imparcial e apartidária das cortes de contas, mesmo no momento atípico vivenciado no país.

Num momento em que o país necessita efetivar inúmeras ações emergenciais, a função pedagógica dos tribunais para orientar os gestores é fundamental. Ela deve ser materializada por meio do processo de consulta, que pode se dar em rito simplificado, a partir da redução de prazos para oferta de pareceres e submissão a julgamento colegiado, observado o disposto no art. 1º, §3º, inciso I da Lei n. 8.443/1992, cujo teor dispõe que as decisões são integradas pelo voto do relator, do qual deverão constar as conclusões das unidades técnicas de fiscalização e instrução processual e o parecer do Ministério Público Especial, comando legal que é reproduzido em leis orgânicas dos Tribunais de Contas de entes subnacionais.

Essas normas estabelecem o rito processual capaz de garantir o caráter pedagógico dos integrantes da função de auditoria, ministerial e judicante. Cuja colegialidade processual-decisória oportunizará aos gestores segurança jurídica na adoção de procedimentos e tomada de decisões, em estrita consonância com o disposto no art. 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

Esse rito simplificado, inclusive, já tem previsão regimental em Tribunais de Contas, e, para além disso, o próprio artigo 4-G da Lei n.13.979, de 2020, ao reduzir prazos em procedimentos licitatórios da modalidade pregão, é indutor de simplificação por meio da redução de prazos, sem, contudo, suprimir fases, com vistas ao ideal de alcance da vantajosidade das contratações.

Para atendimento dos pressupostos necessários à segurança jurídica dos agentes controladores e controlados, é necessário que as competências constitucionalmente outorgadas aos tribunais de contas sejam regularmente exercidas, nos termos do ordenamento jurídico aplicável, de modo que a função pedagógica, em formato de orientação aos gestores, deve ser concretizada mediante processos de consulta, cujo rito não pode ser desfigurado, mas simplificado a partir da redução de prazos para oferta de pareceres e submissão a julgamento colegiado.

A simplificação do rito dos processos de consulta mediante redução de prazos é capaz de atender a celeridade e a urgência requeridas pela situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (Espin), mas sem se apartar do ordenamento vigente e nem desfigurar a forma como devem ser exercidas as competências institucionais dos tribunais de contas.

Não se pode olvidar que entendimentos manifestados pelos tribunais sobre a aplicabilidade e rota de alcance e sentido da Lei nº 13.979, de 2020, podem afetar a política pública de saúde e sobrecarregar o sistema incumbido de prestar esses serviços, caminho que vai na contramão das ações essenciais à manutenção do pacto federativo brasileiro.

A crise motivada pela pandemia obrigou os órgãos de controle dos gastos públicos, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) a considerarem as dificuldades reais dos gestores, o que impulsionou a modificação, durante esse período de anormalidade, dos próprios parâmetros do controle, especialmente aqueles pautados na rigidez, mas o desafio é que essas mudanças não transformem a ponto de desfigurar os sistemas de controle do Brasil e o sensível trato com os recursos públicos.

 é auditor de Controle Externo (TCE-PE) e presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC).