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LRF chega a 20 anos em busca de algum resgate da nossa humanidade

Insegurança é substantivo que bem resume os presentes dias. A efeméride dos 20 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal, ocorrida ontem, não mereceu maior celebração, talvez porque nosso tempo atual esteja marcado por profunda angústia e, sobretudo, medo.

O filme Dunkirk[1], dirigido por Christopher Nolan, vem à mente… Estamos como as tropas inglesas acuadas, na costa francesa, entre o risco de morte pelo exército nazista e a escolha pelo desesperado suicídio nas águas do Canal da Mancha. O relato cinematográfico aborda a Operação Dínamo, quando cerca de 340 mil soldados das tropas aliadas foram evacuados sob intenso bombardeio alemão, entre 26 de maio e 4 de junho de 1940, da cidade francesa de Dunquerque até a cidade inglesa de Dover.

O que mais chama a atenção na nossa vida real, a partir do filme de Nolan[2], é a própria síntese do diretor sobre a estratégia extremada de tentar resgatar aqueles soldados — sob risco iminente de morte — por meio do uso não só de navios militares, mas também de pequenos barcos civis: “Dunkirk não fala de heroísmo, mas de humanidade. O único [anseio] que você quer desses caras é que sobrevivam.”

A realidade brasileira se assemelha ao trágico cenário da 2ª Guerra Mundial: de um lado, há o risco de aceleração de centenas de milhares de mortes evitáveis pela pandemia da Covid-19; enquanto, de outro, impera o caos político decorrente da falta de coordenação nacional que nega respostas fiscais adequadas às crises sanitária, social e econômica em que nos encontramos.

À espera da morte pela doença ou pela fome, a sociedade brasileira se vê miseravelmente diante do espelho da sua desigualdade brutal, que opera simbolicamente como uma espécie de nazismo tupiniquim, a negar aos cidadãos pobres e vulneráveis o reconhecimento da sua dignidade humana.

Apontar restrições fiscais e econômicas para negar proteção a todos os cidadãos brasileiros em plena pandemia é agravar o risco da ocorrência de mortes evitáveis. Infelizmente, contudo, não se trata de fenômeno novo. Há décadas, a barbárie da nossa realidade tão desigual impõe cotidianamente limites fiscais presumidamente insuperáveis ao esforço civilizatório trazido pela Constituição de 1988.

Como bem dizia Eli Diniz[3], no conflito entre estabilização monetária e efetividade dos direitos fundamentais trazidos por nossa Constituição Cidadã, a falsa dicotomia quase sempre fora resolvida em prol de uma limitada concepção de política econômica:

a prioridade atribuída aos programas de estabilização econômica e o acirramento dos conflitos em torno da distribuição de recursos escassos terminaram por esvaziar importantes itens da agenda pública, sobretudo aqueles relacionados com as reformas sociais. Não só a definição de uma estratégia de crescimento econômico, como as perspectivas de atenuação das desigualdades sociais tornaram-se metas cada vez mais distantes. A urgência do controle da inflação se fez acompanhar do abandono dos projetos igualitários, tão enfatizados pela Aliança Democrática responsável pela instauração da Nova República, crescentemente avaliados sob o ângulo de sua extemporaneidade. De acordo com a nova orientação, em nome de um enfoque racional e não populista da pauta de prioridades, a exigência de maior inflexibilidade na gestão dos recursos públicos viria a desaconselhar qualquer postura favorável ao aumento de gastos sociais. Em consequência, privilegiou-se uma agenda minimalista, em franco desacordo com a dinâmica democratizante, esta alargando a participação, diversificando as demandas e multiplicando os canais de vocalização à disposição dos diferentes segmentos da sociedade.”

Desde 1988 e a pretexto de uma enviesada noção de responsabilidade fiscal, ajustes têm sido propostos sobre despesas primárias, como se elas, por definição, fossem um mal em si mesmo e como se nosso Estado precisasse ser encolhido ao mínimo espaço de garantia tão somente de liberdade e propriedade privadas.

Cínica e paradoxalmente, nenhum ajuste até agora foi feito em relação à falta de balizas mínimas para controlar as despesas financeiras, tampouco nenhuma reforma estrutural foi proposta quanto à nossa regressiva matriz tributária, ou ainda, quanto às renúncias fiscais e aos créditos subsidiados que fomentam nosso capitalismo de compadrio.

Como dizia Cazuza, “eu vejo o futuro repetir o passado” em nossa falta de humanidade recente. Empurrar brasileiros para a volta ao trabalho, sem qualquer segurança sanitária, é obrigá-los ao risco de morte por afogamento seco. A guerra se repete e a morte por incapacidade de respirar é uma imagem forte para os 20 anos da LRF em nosso país: brasileiros morrem como desesperados soldados o fizeram em Dunquerque.

Infelizmente, ao longo dos 20 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal e mesmo ao longo das três décadas de vigência da nossa Constituição, não ousamos exercitar a mesma humanidade que os marinheiros civis da Inglaterra.

Em tempos de pandemia da Covid-19, era preciso que permanecêssemos em casa em prol uns dos outros. Era preciso que houvesse o debate de revisão da regressividade tributária por meio de uma maior tributação sobre patrimônio e renda. Era preciso que fosse reduzida a rentabilidade de quem dispõe de liquidez no mercado financeiro, sobretudo porque a depressão econômica será severa, tampouco há risco de inflação e a necessidade de endividamento público é incontornável. Era preciso unificar a regulação de leitos públicos e privados no âmbito do nosso Sistema Único de Saúde. Era preciso ampliar a oferta dos serviços públicos essenciais nos Estados e Municípios e resguardar sua continuidade, mediante a expansão da dívida pública federal.

Mas o senso de humanidade dos nossos agentes públicos e privados parece quimera quando vemos disputas político-partidárias de curtíssimo prazo eleitoral, quando vemos carreatas elitistas que pregam o retorno ao trabalho dos mais vulneráveis, quando vemos o míope estrangulamento fiscal dos Estados e Municípios por parte da União, quando vemos o desvio de recursos públicos em atos de corrupção persistentes e indiferentes à crise sanitária, enfim, quando não ousamos nos apoiar solidariamente uns aos outros.

Neste aniversário de 20 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal, o desespero só não é total, porque ela própria previu a suspensão das suas balizas nucleares em seu artigo 65. Ali depreendemos o forte sentido finalístico de que responsabilidade fiscal é instrumento de promoção dos direitos fundamentais. Jamais é um fim em si mesmo.

Defender tese contrária seria jogar todos os brasileiros às águas do suicídio fiscal coletivo, caso insistíssemos em atender a limites, metas e balizas de riscos fiscais em meio à calamidade pública reconhecida pelo Congresso.

Fato é que a fragilidade do nosso pacto civilizatório se revela no orçamento público. Somos incapazes de uma agenda pública nacional que confira resposta sanitária coordenada e racional, exatamente porque não conseguimos promover equitativamente a distribuição dos custos da ação estatal entre os que economicamente mais são capazes de fazê-lo. Esses mesmos agora pressionam pelo afrouxamento do isolamento social e apostam na seletividade econômica da morte trazida pela pandemia.

Estamos todos diante desse mar pandêmico que traz o risco iminente de um tsunami de mortes, mas alguns se recusam ao desafio de nos salvarmos uns aos outros. Que não usem a LRF, porém, como pretexto egoísta para se ausentarem do próprio dever de humanidade.

À espera da morte, sempre podemos escolher coletivamente entre nos apoiarmos ou nos entregarmos ainda mais velozmente à barbárie. Peço a todos que nos movamos em busca do exemplo do “milagre de Dunquerque” nas praias brasileiras.

 


[3] Como se pode ler em DINIZ, Eli. Governabilidade, governance e reforma do estado: considerações sobre o novo paradigma. Revista do Serviço Público. Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público , v. 120, n. 2, p. 05-21, maio/ago. 1996, p. 8, grifos nossos.

 é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Barros Barreto: A LGPD e a inevitável prorrogação da sua vacatio (2)

Continuação da Parte 1: A lei também cuida de maneira taxativa do tratamento de dados pessoais sensíveis (art. 11), seja quando o titular ou seu representante legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas (I), seja independentemente de consentimento, quando, v.g., for indispensável para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador (II, a). O § 4º veda “a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis referentes à saúde com objetivo de obter vantagem econômica”, exceto nos casos de portabilidade de dados consentida pelo titular (I) ou “necessidade de comunicação para a adequada prestação de serviços de saúde suplementar” (II).

Igualmente mereceu atenção da LGPD o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, que “deverá ser realizado em seu melhor interesse” (art. 14), contando com o consentimento específico e em destaque por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal (§ 1º).

O art. 15 da lei estipula que o término do tratamento de dados pessoais se dará quando (I) a finalidade tiver sido alcançada ou os dados tiverem deixado de ser necessários; (II) se der o fim do período do tratamento; (III) houver comunicação do titular, “inclusive no exercício de seu direito de revogação do consentimento”; e (IV) a autoridade nacional assim determinar, quando houver violação ao disposto na LGPD.

Muito embora o art. 16 estabeleça que os dados pessoais serão eliminados após o término de seu tratamento, ele permite a sua conservação para os seguintes fins: (I) cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador; (II) estudo por órgão de pesquisa, “garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais”; (III) transferência a terceiro, uma vez observados os requisitos legais para tanto; e (IV) “uso exclusivo do controlador, vedado seu acesso por terceiro, e desde que anonimizados os dados.

Nos arts. 17 e seguintes, a LGPD cuida dos direitos do titular dos dados pessoais, garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade, bem como, a qualquer momento (art. 18), (I) o direito de obter do controlador a confirmação da existência de tratamento; (II) o acesso aos dados; (III) a correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados, como visto; (IV) a anonimização, o bloqueio ou a eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em dissonância com a lei, dentre outros.

O tratamento de dados pessoais também poderá ser feito por pessoas jurídicas de direito público (art. 23), tendo os serviços notariais e de registro o mesmo tratamento dispensado àquelas pessoas (§ 4º), tais como os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público, além de autarquias, fundações e empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Interessante notar que a lei em comento permite a transferência internacional de dados pessoais observadas determinadas circunstâncias (art. 33), como (I) “para países ou organismos internacionais que proporcionem grau de proteção de dados adequado ao previsto nesta Lei”; e (II) o controlador oferecer e comprovar garantias de cumprimento dos princípios dos direitos do titular e do regime de proteção de dados constantes da norma, na maneira de (a) cláusulas contratuais específicas para determinada transferência; (b) cláusulas-padrão contratuais; (c) normas corporativas globais; e (d) selos, certificados e códigos de conduta regularmente emitidos.

No cenário legal, são figuras que merecem destaque o titular, o controlador, o operador, o encarregado pelo tratamento de dados pessoais, o órgão de pesquisa e autoridade nacional. Reiterem-se aqui, porquanto pertinentes, os respectivos conceitos, constantes do art. 5º da LGPD:

“V – titular: pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento;

VI – controlador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais;

VII – operador: pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador;

VIII – encarregado: pessoa indicada pelo controlador para atuar como canal de comunicação entre o controlador, os titulares dos dados e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados; (…)

XVIII – órgão de pesquisa:órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no País, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico; e

XIX – autoridade nacional: órgão da administração pública responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento desta Lei.” (Grifou-se.)

Mas os agentes de tratamento também estão sujeitos a duras sanções administrativas (art. 52), que vão desde advertência à multa simples de até 2% (dois por cento) do faturamento de pessoa jurídica de direito privado, grupo ou conglomerado no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, limitada, no total, a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) por infração.

Inequivocamente relevante que se adotem as melhores práticas para que não haja a aplicação das referidas penalidades, observando-se as normas dispostas nos arts. 46 a 51, que tratam da segurança e do sigilo de dados e das boas práticas e da governança.

O mencionado art. 46 impõe aos agentes de tratamento a obrigação de se adotarem medidas de segurança, técnicas e administrativas, para proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, inclusive evitando-se qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito.        O parágrafo primeiro relega à autoridade nacionaldispor sobre padrões mínimos para tornar aplicável o disposto no artigo, enquanto o parágrafo segundo determina que as medidas sejam observadas desde a fase de concepção do produto ou do serviço até a sua execução, devendo os agentes de tratamento garantir a segurança da informação e o controlador comunicar à autoridade nacional e ao titular a ocorrência de incidente de segurança que possa acarretar risco ou dano relevante aos titulares  (arts. 47 e 48).

Quanto às boas práticas e à governança, os sistemas utilizados para o tratamento de dados pessoais devem atender a essas condições, juntamente com os requisitos de segurança, observando-se, ainda, os princípios gerais previstos na lei e as demais normas regulamentares pertinentes (art. 49).

A LGPD permite, ainda, aos controladores e operadores que formulem regras a esse respeito, estabelecendo “as condições de organização, o regime de funcionamento, os procedimentos, incluindo reclamações e petições de titulares, as normas de segurança, os padrões técnicos, as obrigações específicas para os diversos envolvidos no tratamento, as ações educativas, os mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos e outros aspectos relacionados ao tratamento de dados pessoais” (art. 50).

Quanto à criação, sem aumento de despesa, da Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD pela Medida Provisória nº 869, como órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República (art. 55-A), foi-lhe assegurada, como não poderia deixar de ser, autonomia técnica (art. 55-B), sendo ela composta por (I) Conselho Diretor, órgão máximo de direção; (II) Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade; (III) Corregedoria; (IV) Ouvidoria; (V) órgão de assessoramento jurídico próprio; (VI) unidades administrativas e unidades especializadas necessárias à aplicação do disposto na lei.

Como se percebe, estar preparado para o cumprimento da norma demandará um minucioso trabalho por parte de todos os envolvidos no processo. Desde o modelo a ser adotado para regular as relações entre o controlador e o titular dos dados pessoaisaté a elaboração do ato que cuidará da estrutura regimental da ANPD, um longo caminho deverá ser percorrido para que a LGPD atinja os seus devidos fins.

No país, estima-se que um número ainda pequeno estava pronto ou estaria pronto até agosto para o cumprimento da norma. Neste grupo, incluem-se as multinacionais e empresas com contratos internacionais com terceiros já sob a tutela do General Data ProtectionRegulation, o GDPR europeu, fonte de inspiração da nossa LGPD.

Fora a pendente criação da ANPD, o país – nem o mundo! – contava com a pandemia que viria a ser causada pelo Coronavírus (COVID-19). Os números, a escalada, de infectados e mortos são impressionantes, tudo a impor o fechamento de quase todos os estabelecimentos e o isolamento pessoal para se evitar o contágio de mais e mais indivíduos.

Além das vidas humanas, o cenário econômico que se instaurou é assustador. Por exemplo, com o comércio fechado – apenas atividades essenciais estão autorizadas a funcionar, como farmácias e mercados –, a quantidade de empresas que se encontrarão em situação de insolvência é relevantíssima, cabendo ao Estado, aqui em sentido lato – dispor e aprovar medidas, com velocidade, para minimizar esse caos.

Dentre essas ações, é de se indagar: deve a lei ser mais uma vez postergada diante do quadro atual? A mim meparece que não haverá alternativa, sobretudo considerando a necessidade de interação pessoal entre a equipe escolhida para traçar o plano de trabalho e o cliente, não sendo suficiente o contato apenas por meios digitais. E esse parece ser o caminho natural que se seguirá, com a aprovação, nesta data, pelo Senado, do Projeto de Lei nº 1.179/2020, que suspende normas de Direito Privado enquanto perdurar a epidemia no país.

Como destacado pela ConJur, “[um] dos pontos centrais do projeto é o artigo 65, que trata do adiamento da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Pelo texto aprovado nesta sexta, a lei passa a viger apenas a partir do dia 1º de janeiro de 2021. As multas e sanções para as empresas que não consigam se adequar à lei passam a valer em 15 de agosto de 2021 (…)”. A proposta, fruto de trabalho entre o Judiciário e Legislativo em regime de emergência, aprovada por unanimidade, agora segue para votação na Câmara dos Deputados.

Contudo, isso não quer dizer que a atividade de adequação deva ficar esquecida até o fim deste cenário. Não e não. Muito pelo contrário, o momento é profícuo para se aprofundar no tema e, no que for possível, adiantar a missão virtualmente, sendo vários os meios hoje disponíveis para tanto.

Nesse diapasão, temos que falar em como se preparar para a lei o quanto antes, considerando ou não eventual alteração na sua vacatio. Pelo que vimos até aqui, podemos utilizar como exemplo de sua plena aplicação a relação existente entre o empregador e o seu colaborador. Quando da contratação ou para fins de atender ao disposto na LGPD, o empregador deverá disponibilizar em cláusula destacada no contrato de trabalho ou em documento suplementar autorização específica, jamais genérica, para o tratamento de dados pessoais ou dados pessoais sensíveis.

O conceito de tratamento é amplo: “toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração” (art. 5º, X).

Feito o instrumento adequadamente, haverá, se for o caso, uma integração entre as figuras acima, ainda mais considerando que o descumprimento de qualquer disposição da lei ensejará, ao controlador ou ao operador, até mesmo em caráter solidário, a obrigação de reparar o dano causado ao titular, seja ele patrimonial ou moral, individual ou coletivo, na linha dos arts. 42 e seguintes, que também permitem a inversão do ônus da prova no processo civil, havendo verossimilhança da alegação e hipossuficiência para fins probatórios (§ 2º).

Mas eu diria que o passo principal a ser tomado é o de se estabelecer, caso ainda não estabelecido, uma comissão, um grupo, para estudar as peculiaridades da norma, que, a meu ver, deverá ser formada por pessoas ligadas às áreas de recursos humanos, tecnologia da informação e jurídica.

Esse grupo ficaria encarregado de dividir as tarefas de cada qual, as suas atribuições e o controle do tratamento das informações, sobretudo no que diz respeito ao operador e ao encarregado.

A sociedade deverá ter um contrato ou termos específicos em um contrato de trabalho, por exemplo, que cuide do tratamento dos dados, na parte em que trate da confidencialidade e do uso responsável das informações profissionais.

Cabível alertar que a lei fez uma distinção entre dados e dados pessoais sensíveis, os quais podemos citar como informações de saúde, raça, política, religião, orientação sexual e por aí vai. As informações sobre a saúde do indivíduo, vejam só, encontram-se em voga por conta do Coronavírus.

Como se vê, as empresas terão um novo enfoque quanto à sua responsabilidade, preservando o consentimento do seu colaborador, os seus direitos, zelando pela segurança das informações que lhes são prestadas no âmbito de um contrato de trabalho ou de prestação de serviços.

Nessa linha, sugere-se a atribuição a determinado indivíduo da missão de protetor desses dados, o chamado Data Protection Officer, o DPO, que funcionará como um canal entre a sociedade e os seus empregados, para tomar as medidas que forem cabíveis, inclusive comunicando-se com a ANPD no caso de violação das obrigações legais.

Essa pessoa será encarregada, ainda, de treinar o pessoal envolvido no processamento de dados, conduzindo auditorias a fim de evitar qualquer problema relacionado ao assunto, que, eventualmente, poderá levar a pesadas sanções à empresa. Ressalte-se que o encarregado poderá ser uma pessoa natural ou jurídica, ou, ainda, um grupo de pessoas.

Para pontuar de uma forma mais clara, destacam-se, enfim, as seguintes orientações:

1. Conhecer a lei a fundo;

2. Identificar as principais lacunas para interpretar a LGPD, tanto no que diz respeito ànorma quanto à própria empresa;

3. Envolver todas as equipes – Jurídico, Compliance, Negócios, RH, TI, Risco e outras – para que se comprometam a compartilhar a responsabilidade pelo plano de implementação e pela adequação à nova lei – criação de grupos de estudo;

4. Nomear os técnicos do time: controlador, operador e DPO, que poderá não ser exigido, mas é recomendado;

5. Definir o escopo do programa LGPD e determinar com clareza o que deverá estar pronto até junho de 2020, eis que ainda não sabemos se a sua vigência será adiada – adaptação de contratos de trabalho, criação de termos específicos etc.;

6. Construir um registro de cada atividade de processamento de dados pessoais na organização, para garantir a sua conformidade e rastreabilidade;

7. Identificar quais informações gerenciar; quais são os dados pessoais; verificar se os dados são compartilhados ou não; se há dados sensíveis para posteriormente permitir o enquadramento dessas operações em uma das hipóteses de tratamento permitida pela lei;

8. Analisar os contratos da empresa e adequá-los para que contenham disposições que protejam a empresa nos termos da lei;

9. Adotar tecnologias que garantam maior segurança contra o vazamento de dados. A anonimização, a criptografia e o controle de acesso são as mais indicadas. Em 2017, apenas 3% dos dados que vazaram em incidências divulgadas estavam criptografados adequadamente. No Fórum Econômico Mundial de Davos 2019, foi apresentado um gráfico de gestão de riscos indicando que os riscos cibernéticos e a fraude ou o furto de dados aparecem como de alto impacto e alta probabilidade de ocorrência nas empresas. Ou seja, segurançaé fundamental neste momento;

10. Envolver advogados para garantir que a interpretação legal seja pragmática e realista, com o profundo conhecimento da lei;

11. Criar um caminho claro para comunicar e classificar incidentes, incluindo o Departamento Jurídico, de TI e de Relações Públicas;

12. Eliminar os dados não utilizados pela empresa, mas que acabam circulando entre as áreas internas. Cuidado especial com as informações não estruturadas, guardadas em planilhas físicas ou eletrônicas;

13. Retirar do banco de dados as informações que não sejam necessárias à finalidade;

14. Criar um programa de gerenciamento para a perda de dados. O que fazer em caso de vazamento? Errou? Assuma e corrija com rapidez; e

15. Monitorar as respostas dos indivíduos, isto é, dos titulares que contratam um serviço ou compram um produto.

Em linhas gerais — e como pôde ser visto —, há muito a ser feito, mas nada que não possa ser organizado desde logo, através de e-mails, vídeo conferências, telefonemas, deixando aquilo que exija contato pessoal para breve, assim torcemos – nem poderia ser diferente.