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Gustavo Ungaro: A pandemia do descontrole

Em uma situação de crise extrema, diz o senso comum que as instituições revelam sua resiliência e as pessoas, seu real caráter. Parece ser assim mesmo a insólita situação observada na pandemia mundial da Covid-19.

Enquanto agentes da saúde, da segurança pública, da gestão dos serviços essenciais e tantos outros profissionais e voluntários desempenham fundamental papel à superação da desafiadora peste, com foco na preservação da vida humana, alguns inescrupulosos cultores do próprio ego, obcecados pelo poder, e outros, devotos do dinheiro acima de tudo ou defensores de causas ocultas, estão tentando aproveitar a pandemia como biombo para a prática de ilegalidades, seja em busca de maior poder pessoal, subjugando instituições, seja em prol do ganho fácil, ainda que ilícito, fraudando compras públicas emergenciais, como tem noticiado diariamente a imprensa.

Neste tumultuado e dolosamente tensionado cenário, têm aflorado tentativas de dificultar a aplicação de normas de salvaguarda do interesse público, assim como ameaças e ataques a instituições republicanas, entremeadas por propaganda enganosa de panaceias milagrosas de tosco charlatanismo, superfaturamentos e desvios de dinheiro público.

Não bastasse o risco sanitário que já encurtou milhares de trajetórias humanas, a sociedade tem que enfrentar simultaneamente, também, artimanhas voltadas ao enfraquecimento de órgãos de controle, ataques à plenitude de leis fundamentais e desfalques sorrateiros do erário público, em virulenta espiral danosa à coletividade.

O sistema de Justiça está sendo colocado à prova, assim como a democracia encontra-se sob persistente ameaça, pois o jugo de liderança política com tendência extremista autoritária busca erodir por dentro as instituições representativas e esquivar-se das contenções do rule of law, tensionando os limites da legalidade e esgarçando a coesão social em nome de demagógico confronto do stablishment, em fenômeno que estaria a ocorrer em escala global, já detectado por pesquisadores das ciências sociais e políticas, tais como os professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, os quais alertam para o novo modo de mortificar a democracia, não mais por golpes militares necessariamente, senão por gradativa decomposição de regras, procedimentos e instituições erigidas para salvaguardar a divisão de poderes e os direitos fundamentais.

E a necessidade de uma legislação de urgência para autorizar novos gastos públicos e disciplinar as restrições decorrentes da calamidade pública declarada tem sido utilizada, em algumas lamentáveis ocorrências, como espaço para retrocesso normativo no acesso à informação e na responsabilidade administrativa de agentes públicos.

Foi o que se viu na Medida Provisória 928/2020, que buscou tisnar a Lei de Acesso à Informação, praticamente subtraindo sua vigência durante o ano e obrigando ao refazimento dos pedidos de informação no ano seguinte como se a transparência pública pudesse sofrer um inconstitucional hiato de validade, durante extenso lapso temporal, numa crise em que exatamente dados confiáveis mostra-se imprescindível. Recorde-se que é o próprio texto da Constituição da República a ressaltar a centralidade do acesso à informação como um dos direitos humanos sob forte proteção da ordem jurídica, ao insculpi-lo no inciso XXXIII do artigo 5º, fixando a transparência como regra geral e o sigilo como exceção delimitada.

Combatida por diversos partidos políticos e impugnada formalmente por ação direta de inconstitucionalidade postulada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a ilegalidade foi fulminada liminarmente e, em 30 de abril, restou confirmada, por unanimidade, pelo plenário da Suprema Corte, em relevante julgado garantidor da transparência como regra geral inafastável.

Em seguida, após a frustrada tentativa de reduzir a transparência pública, sobreveio outro desserviço, desta feita como ofensa ao princípio da moralidade administrativa e ao zelo com o dinheiro público, pois a Medida Provisória 966/2020, publicada no dia da Lei Áurea, parece ter buscado blindar e alforriar preventivamente autoridades federais, exalando impunidade ao repetir disposições legais já vigentes voltadas apenas a limitar a responsabilização de agentes públicos, sem reforçar a obrigação de primar pelo interesse público nas decisões durante a pandemia. Também foi mitigada pela célere atuação do Supremo Tribunal Federal.

Em âmbito local, mais uma contradição se apresentou, agora na maior cidade do país: em projeto de lei encaminhado pelo prefeito a fim de obter autorização legislativa ao uso de recursos orçamentários de fundos municipais e outras medidas para o enfrentamento da pandemia, foi embutido, no trecho final de emenda apresentada para conceder benefícios a ocupantes de funções comissionadas na área da saúde, descabida alteração na Lei da Controladoria Geral do município, com a pretensão de subtrair a capacidade decisória do órgão técnico especializado e transferi-la a comissão inespecífica de natureza política.

Sem liame de pertinência temática com o assunto da propositura, e tampouco debate prévio ou justificativa específica durante a tramitação legislativa de urgência, a nefasta tentativa de tolher o controle interno da capital paulista foi retratada, em diversas matérias jornalísticas, como algo impertinente e antinatural, tal como um jabuti em cima de uma árvore (algo que não acontece na natureza, pois o cascudo ser rastejante não tem capacidade de escalada se está nas alturas, é por alguém interessado tê-lo colocado lá, contra a normalidade e de modo inconsequente).

Patente o desrespeito ao devido processo legislativo, inclusive em razão de não poder criar, por iniciativa própria, procedimento e estrutura no Poder Executivo, em virtude da separação de poderes decorrente da Constituição, além da violação à autonomia técnica, administrativa e orçamentária, bem como à ruptura da vinculação direta ao chefe do Poder Executivo e do status de secretaria municipal, prerrogativas institucionais estipuladas pela recente Lei Municipal nº 16.974/2018, dotada de disposições adequadas à garantia da modelagem de controladoria apregoada pelos Tribunais de Contas, difundida pelo Conselho Nacional de Controle Interno, consagrada na Controladoria Geral da União e já implementada na maioria dos Estados e capitais de nosso país.

Além disso, ao objetivar mudança que significaria, na prática, burocratizar, retardar, dificultar e politizar o processo administrativo de responsabilização sancionatória de pessoas jurídicas, criando comissão de julgamento acima do órgão de controle interno, a discrepar da modelagem procedimental estipulada em âmbito nacional, o desengonçado e natimorto jabuti normativo afrontou a sistemática nacional de funcionamento da Lei Anticorrupção, norma de fundamental relevância na atualidade, momento histórico de clamor pelo combate à corrupção na Administração Pública, mazela que retira recursos das políticas públicas necessárias à coletividade e os transfere a fortunas ilícitas privadas.

Insustentável defender o óbice à aplicação da Lei Anticorrupção justamente na cidade que mais a aplicava no Brasil, segundo dados do Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). Entre abril de 2018 e março de 2020, foram instaurados, em média, por mês, quatro processos punitivos de empresas e uma sanção administrativa foi aplicada por ato de corrupção administrativamente apurado e comprovado.

A gravidade do perpetrado não poderia passar despercebido, e representação ao Ministério Público Estadual gerou ação direta de inconstitucionalidade prontamente acolhida pelo Tribunal de Justiça, de modo a afastar a validade do dispositivo ilegal e preservando, a um só tempo, a integridade do controle interno da cidade de São Paulo, pela manutenção intocável das prerrogativas da Controladoria Geral do Município, e a plena aplicabilidade da Lei Anticorrupção, pelo impedimento de sistemática descabida a dificultar sua concretização.

Como ilustram as situações aqui retratadas e são apenas algumas entre várias outras investidas antijurídicas em busca de retrocesso, que estão suscitando firme atuação do sistema de justiça em defesa do Estado democrático de Direito —, o vigente ordenamento jurídico contempla o controle e a transparência com absoluta centralidade, inclusive para ser adequado o enfrentamento da grave crise sanitária em curso, mas têm havido ousados ataques ao arcabouço protetivo da probidade administrativa, felizmente invalidados pelo eficaz funcionamento do Poder Judiciário ao menos até o presente momento —, prestigiando-se a transparência, o acesso à informação, a responsabilidade do Estado, de seus agentes e das empresas em face do mandamento republicano de integridade.

Para o desiderato democrático não fenecer, essenciais normas em conformidade com a Constituição, instituições legítimas atuando, imprensa livre, controle social e transparência.

Gustavo Ungaro é advogado, professor, doutor pela USP, ex-controlador-geral de São Paulo e ex-presidente do Conselho Nacional de Controle Interno.

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Reis Friede: O pouco saber não significa nada saber

A atual pandemia da Covid-19 pode ser considerada um dos maiores desafios enfrentados pela humanidade. Já houve outros, como os desastres da peste negra, no final do século XIV (um surto bacteriano transmitido por pulgas e ratos pretos que levou a óbito entre 75 milhões e 200 milhões de pessoas na Eurásia, incluindo um terço da população européia), e, principalmente, as diversas pandemias virais de gripe, com ênfase na chamada espanhola, entre 1918 e 1920 (o primeiro surto de H1N1 registrado na história), que infectou cerca de 500 milhões de pessoas (mais de 25% da população mundial) e matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas.

Trata-se de um vírus perigoso e considerado “inteligente” pela sua elevada capacidade de sobrevivência, em decorrência de seu elevado coeficiente de incidência (número de casos novos/população) que o faz capaz de, a cada vetor humano, infectar outros três. O vírus H1N1, por exemplo, contaminava em média apenas entre 1,2 e 1,3 pessoa. Está associado a um baixo coeficiente de letalidade (capacidade do patógeno de conduzir à morte), permitindo a sobrevida de seu hospedeiro e a sua própria, preservando uma alta capacidade do germe de agredir e de ser letal ao outro organismo.

Sabe-se que baixar a febre do paciente, embora seja um procedimento fundamental, não cura a doença.

A Covid-19 é uma terceira modalidade de coronavírus, da classe SARS (com capacidade de transmissão entre humanos), que desencadeia uma doença infecciosa, supostamente, respiratória (a exemplo do SARS-CoV-1 e do MERS) que pode causar no ser humano dependendo da carga viral contraída e da capacidade individual do sistema imunológico desde um resfriado até pneumonia, insuficiência respiratória e um conjunto de complicações inflamatórias que, transcendendo aos pulmões, pode atingir todos os órgãos do ser humano, levando ao óbito.

O patógeno, que teve origem na China, na cidade de Wuhan, província de Hubei, em meados de novembro de 2019 espalhou-se de forma exponencial, fazendo com que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarasse, em 30 de janeiro de 2020, que o novo coronavírus se constituía em uma emergência de saúde pública de importância internacional. O Brasil foi obrigado, em 4 de fevereiro (data anterior ao Carnaval, que ocorreu entre 22 e 26 de fevereiro), a declarar estado de emergência de saúde pública para prevenir a chegada e, posteriormente, combater a doença.

Em face do agravamento da situação, em 11 de março a OMS decretou que a chamada Covid-19 se havia convertido em uma pandemia, significando que a doença estava sendo transmitida de forma sustentada e disseminada exponencialmente em todos os continentes. Especula-se que, se acaso a OMS não tivesse negligenciado sua principal função de “alerta internacional” (e a decretação da pandemia houvesse ocorrido logo no início da doença, em meados de fevereiro, quando já havia atingido mais de cem países), a suspensão do Carnaval no Brasil teria, por si só, impedido o surto (em sua atual dimensão) em nosso país.

Neste momento crítico, reconhecermos que pouco sabemos sobre como superar esse incrível desafio e é fato que o pouco saber não significa nada saber. A questão central do problema reside em como usar com racionalidade o pouco do que sabemos em prol do combate ao (novo) vírus que ameaça a saúde pública mundial.

 é desembargador federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).

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Tecnologia e educação (jurídica) nos tempos de Covid-19

Dilemas e desafios do uso da tecnologia na educação (jurídica) são levados ao limite nos tempos atuais de Covid-19. A relação entre tecnologia e educação (jurídica) tornou um problema mais real o que, antes de março de 2020, era apenas índice para discussão de paradoxos e possibilidades. A dependência tecnológica deixou de ser dificuldade episódica e tornou-se um problema fundamental. O que era justificativa para o não cumprimento de metas e tarefas (o aprendente não apresentava trabalhos justificando-se com a dificuldade no acesso a rede mundial) tornou-se impossibilidade fática. Sem o “hardware” e sem conectividade não há meios e condições de realização de aulas remotas. A dependência é absoluta. Refiro-me, bem entendido, ao pequeno universo da educação jurídica, o que supõe uma classe média com acesso à tecnologia.

A premissa vale para professores e aprendentes, ou para instrutores e alunos, como preferem outros. O isolamento provoca (também) uma disputa pelo meio material: peleja-se em torno do uso do computador: agora sou eu!  É que, ao mesmo tempo, há tarefas e reuniões de trabalho remoto, aulas para crianças e adolescentes, a par da necessidade de cumprimento de horários mais rigorosos do que os habituais. No contexto da constatação econômica de que necessidades são infinitas e os bens finitos, computadores, redes de “wi-fi” e pacote de dados tornaram-se manifestações do divino.

Com a tecnologia é possível o controle sobre quem ensina, sobre o que é ensinado e a quem se ensina. Nunca se controlou tanto e, ao mesmo tempo, tão pouco. Uma contradição. Há um registro formal de acesso, por parte do aprendente, o que não significa, necessariamente, adesão, acompanhamento, aproveitamento. E como o tempo é de exceção, e não de regra, vale aquela primeira, o que justifica uma premissa em favor do aprendente. Mais do que nunca, do professor exige-se confiança no aluno. E do aluno, autodisciplina e confiança em seu poder de transformação da realidade. Há uma inversão da pedagogia tradicional, centrada na excelência e na onipotência de quem ensina. O foco agora é de fato muito mais centrado em quem se ensina, o que tumultua e confunde o professor convencional. Os tempos mudaram.

O professor enfrenta uma concorrência imediata que ronda a sala de aula virtual como uma assombração do conhecimento. “Youtubers”, “instagramers”, “podcasters”, administradores de grupos de “WhatsApp”, fabricadores compulsivos de “fake News”, blogueiros e palpiteiros de toda ordem estão em todos os espaços virtuais. A onisciência do “google “tornou-se a bibliografia fundamental: randômica, anárquica, multifacetada. O que fazer?

Umberto Eco, em “Apocalípticos e Integrados” colocou (na década de 80) essa questão, em termos inteligentes e propositivos. Apocalípticos veem o fim do mundo na expansão da cibernética: é o fim. Integrados vemos que há alternativas e que o momento é rico em oportunidades. Ao invés de consumir conteúdo de baixa qualidade, o professor deve produzir conteúdo próprio, bem como mediar e estimular o acesso e o consumo ao material de altíssima qualidade que há no espaço virtual. Vale uma mudança de perspectiva, no sentido de que a tecnologia deixe de ser um fator de substituição e passe a ser um indicativo de empoderamento. A tecnologia precisa ser dominada. Ela auxilia. Não pode ser um peso. O professor competente afasta-se do “download” macunaímico e preguiçoso. É agente do “upload” criativo e energizante.

Não podemos abandonar, no entanto, os valores humanistas da educação, centrados na ética e na construção de uma sociedade mais justa, bem como no respeito à condição do próximo. Há uma mente humana por trás de cada programa, aplicativo ou instrumento de facilitação. Ainda que professores tradicionais nos tornemos designers de aprendizagem, curadores de conteúdo ou mediadores de ciberinformações, ou qualquer outra invencionice que queiram nos impor, há um núcleo duro que a bizarrice desses nomes não desconstrói, e que consiste no fato de que conhecimento demanda tempo, atenção, dedicação. Não se aprende alemão dormindo ou direito penal no macete ou dosimetria da pena em aplicativos.

Combate-se o “youtuber” vazio e malicioso com a produção e postagem de vídeos sérios, provocantes e estimuladores. Combate-se o “instagramer” que não consegue postar mais do que imagens vazias, com a veiculação de conteúdo crítico e de provocação intelectual. O momento exige uma militância intelectual inquebrantável, como forma de combate ao obscurantismo, ao ataque às ciências e ao superficialismo tosco. Não adianta reclamar, como Jeremias, autor bíblico de um poema desesperado sobre a destruição de Jerusalém, cujas lágrimas obliteravam seus olhos. É preciso agir. A lógica do processo pedagógico “on line” é substancialmente distinta do processo pedagógico “off line” ou presencial, com o qual somos habituados.

O Padre Antonio Vieira argumentou (no Sermão da Sexagésima) que os pregadores fracassavam porque pregavam para os ouvidos, e não para os olhos. Se os ouvintes ouviam uma coisa e viam outra, como iriam se converter? Sugiro uma adaptação dessa indagação para os desafios educacionais presentes.  

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.