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André Nicolitt: Sobre a soberania dos veredictos

Em 2017, publicamos um artigo [1] dando conta de que, em 7 de março daquele ano, a 1ª Turma do STF se debruçou sobre o HC 118.770/SP para decidir sobre a liberdade do paciente que se encontrava preso havia nove anos, cinco meses e 21 dias, aproximadamente, sem que a condenação do tribunal do júri tivesse transitado em julgado. O caso poderia simplesmente ter sido resolvido pelo não conhecimento do Habeas Corpus, ao argumento de que se tratava de HC substitutivo de recurso ordinário, reproduzindo-se os precedentes da corte, também criticáveis, que restringem o manejo do instituto do Habeas Corpus nos tribunais superiores.

Todavia, uma preocupação tomou-nos o pensamento naquela altura. O referido julgado do órgão fracionário do STF possuía estrutura e razões que revelavam certa pretensão de tese a ser estabelecida. Vale transcrever a ementa:

“STF – HC 118.770, Rel. ministro Roberto Barroso.

Direito Constitucional e Penal. Habeas corpus. Duplo homicídio, ambos qualificados. Condenação pelo Tribunal do Júri. Soberania dos veredictos. Início do cumprimento da pena. Possibilidade. 1. A Constituição Federal prevê a competência do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida (artigo 5º, inciso XXXVIII, d). Prevê, ademais, a soberania dos veredictos (artigo 5º, inciso XXXVIII, c), a significar que os tribunais não podem substituir a decisão proferida pelo júri popular. 2. Diante disso, não viola o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso. (…) Tese de julgamento: ‘A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade'”.

Não obstante o resultado das ADCs 43, 44 e 54, a presunção de inocência como princípio de raiz iluminista não tem sossego em tempos de obscurantismo e autoritarismo.

Em fevereiro de 2019, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública apresentou o seu famigerado pacote “anticrime” (PL 882/2019), propondo a execução provisória das decisões condenatórias do júri (artigo 492, I, “e”, CPP).

Em sua justificativa, Sérgio Moro invoca exatamente o julgamento do HC 118.770/SP, cujo acórdão foi redigido pelo ministro Barroso, fundando ainda seu projeto no princípio da soberania dos veredictos:

“Os artigos 421, 492 e 584, na sua nova redação, dizem respeito à prisão nos processos criminais da competência do Tribunal do Júri. A justificativa baseia-se na soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e a usual gravidade em concreto dos crimes por ele julgados e que justificam um tratamento diferenciado. Na verdade, está se colocando na lei processual penal o decidido em julgamentos do Supremo Tribunal Federal que, por duas vezes, admitiu a execução imediata do veredicto, tendo em conta que a decisão do Tribunal do Júri é soberana, não podendo o Tribunal de Justiça substituí-la” (STF, HC nº 118.770/SP, Rel. ministro Marco Aurélio, Rel. para o Acórdão ministro Luís Barroso, j. 7/3/2017 e HC nº 140.449/RJ, Relator ministro Marco Aurélio, Relator para o Acórdão ministro Luís Barroso, j. 6/11/2018).

Também em 2019 (setembro) foi distribuído ao ministro Barroso o RE 1235340, tendo sido reconhecida a repercussão geral em outubro de 2019. No julgamento iniciado em maio de 2020, votaram três ministros e houve pedido de vista pelo ministro Ricardo Lewandowski.

Nessa altura, já se encontra em vigor a nova redação dada ao artigo 492 do CPP em razão do pacote “anticrime”, já desfigurado pelo Congresso, que se converteu na Lei 13.964/2019, transcreve-se:

“Artigo 492  Em seguida, o presidente proferirá sentença que:

I – no caso de condenação:

e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas (…)”.

Note-se que o texto aprovado não prevê a execução provisória em qualquer caso, mas apenas nas condenações cuja a pena aplicada seja igual ou superior a 15 anos de reclusão.

Diante desse cenário vem ocorrendo o julgamento do RE 1235340, no qual já há três votos. Os ministros Roberto Barroso (relator) e Dias Toffoli (presidente) esposam a seguinte tese:

1) “A soberania dos veredictos do tribunal do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.

Diametralmente em sentido oposto, o ministro Gilmar Mendes sustenta a tese:

2) A Constituição Federal, levando em conta a presunção de inocência (artigo 5º, inciso LV), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito de recurso do condenado (artigo 8.2.h), vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do artigo 312 do CPP, pelo juiz-presidente a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos jurados”. Portanto, é inconstitucional a nova redação determinada pela Lei 13.964/2019 ao artigo 492, I, “e”, do Código de Processo Penal.

Tanto no pacote “anticrime” como no voto do ministro Barroso, o fundamento para a execução provisória da pena decorreria da soberania dos veredictos. Segundo o parecer da PGR nos autos do RE 1235340, não obstante o entendimento fixado pelo STF, a soberania dos veredictos confere às decisões do tribunal do júri um especial e próprio caráter de intangibilidade material, o que permite um tratamento jurisprudencial diferenciado.

Ora, essa linha de interpretação é absolutamente equivocada. Ademais, a nova redação dada ao artigo 492, I, alínea “e” do CPP, sequer pode ser incluída na discussão sobre soberania dos veredictos. Vejamos.

O princípio da soberania dos veredictos está previsto na alínea “c” do inciso XXXVIII do artigo 5º da CRF/88, portanto, sob o título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Não há dificuldade alguma em reconhecer em tal princípio a natureza jurídica de direito fundamental [2].

O tribunal do júri é marcado pela plenitude de defesa e pela íntima convicção dos jurados leigos, pelo julgamento do réu por seus iguais e pela soberania da decisão. A soberania refere-se à decisão sobre o fato, até porque a decisão sobre a pena é do juiz-presidente e pode, inclusive, ser reformada pelo tribunal. Assim, a soberania em nada se refere à pena, à prisão cautelar ou ao início da execução..

Por sua vez, a presunção de inocência também está prevista no artigo 5º da CRF/88, no inciso LVII, com a redação de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Além de fixar o ônus da prova para acusação e proclamando o in dubio pro reo, serve como limitação teleológica à aplicação das prisões cautelares vedando a antecipação da pena.

Assim estamos diante de dois direitos fundamentais: presunção de inocência e soberania dos veredictos. São eles fruto do pensamento liberal do século XVIII. Tratava-se de um catálogo de limites que visava à proteção do indivíduo diante do Estado, isto é, um leque de limites ao exercício do poder [3].

Essa noção é essencial para qualquer atividade interpretativa e de aplicação dos direitos fundamentais e, ao que nos parece, foi olvidado no julgamento do HC 118.770 do STF, em dois dos votos até então prolatados no RE 1235340, passando longe do pacto “anticrime”.

A soberania dos veredictos e a presunção de inocência, como direitos fundamentais que protegem o indivíduo, não podem agigantar o Estado em detrimento do homem.

Parece-nos verdadeiro que é inevitável reconhecer a importância da ponderação. Mesmo Ferrajoli, que possui posição crítica ao tema, destaca que há espaços de incidência da ponderação judicial atinentes à interpretação jurídica, espaços estes que se tornam mais amplos quando estamos diante de princípios. Contudo, a crítica que se faz refere-se à excessiva ampliação da ponderação judicial que transforma a ponderação em uma espécie de bolha terminológica, tão dilatada que chega mesmo a esvaziar e tornar inaplicáveis as normas constitucionais [4].

A jurisprudência no Brasil faz uso sem critério algum da teoria de Robert Alexy e transforma a ponderação em um enunciado performático, um álibi teórico, capaz de fundamentar os posicionamentos mais diversos. A ponderação não é colocar dois princípios em uma balança e ver o que pesa mais. Isso está longe de ser a concepção alexyana [5].

Já tivemos oportunidade de assinalar [6] que a dignidade humana é o farol que ilumina a ponderação, ou seja, é o critério para definir o princípio, valor ou interesse prevalente. Ana Paula Barcellos, indicando parâmetros normativos para a ponderação, ensina que a solução deve ser a que “prestigia a dignidade humana”, tendo esta preferência sobre as demais. A centralidade constitucional da pessoa humana, sua dignidade, é a diretriz que indica qual princípio a ser sacrificado no caso concreto e qual deve prevalecer. A dignidade humana é o parâmetro e diante das soluções possíveis que se chocam, deve ser “escolhida” a que fortalece a ideia de dignidade humana [7], e não a que prestigia o direito de punir etc.

A dignidade humana confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. Esse princípio funciona como fonte ética, fazendo da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado [8]. A ideia de unidade de sentido e concordância prática indica claramente sua função de balizar a solução que envolve a colisão entre direitos fundamentais. Aliás, isto está muito evidente na obra “A Nova Interpretação Constitucional” [9], organizada em 2006 pelo então professor, hoje ministro, Luís Roberto Barroso.

Acreditamos que os fundamentos do voto ainda não publicado do ministro Barroso no RE 1235340 não terão contornos muito diversos dos apresentados no HC 118.770, que vê na soberania dos veredictos autorização para antecipar a execução da pena, não sendo a presunção de inocência impeditiva [10].

Ora, a decisão ignora a dignidade como critério de ponderação ou de “escolha” da solução. A soberania dos veredictos, apesar de ser garantia fundamental, é usada em prejuízo do réu. Fazer prevalecer a presunção de inocência restitui a liberdade do paciente, fortalecendo sua dignidade. Ao contrário, a prevalência da soberania dos veredictos implica na execução antecipada da pena, na tutela do interesse do Estado. Na verdade, este último caso não é fazer prevalecer uma garantia em um processo de ponderação, mas, sim, subverter a garantia, aplicá-la onde não é cabível. Direito fundamental usado para se atentar contra a dignidade do acusado.

Já nos antigos manuais de processo penal encontramos solução diversa. Magalhães Noronha já advertia que a soberania dos veredictos não poderia ser óbice ao direito de liberdade do réu [11]. José Frederico Marques ensinava que:

“A soberania dos veredictos não pode ser atingida enquanto preceito para garantir a liberdade do réu. Mas se ela é desrespeitada em nome dessa mesma liberdade, atentando algum se comete ao texto constitucional. Os veredictos do júri são soberanos enquanto garantem o ius libertatis” [12].

Tourinho Filho é preciso:

“Assim, entre manter a soberania dos veredictos intangível e procurar corrigir um erro em benefício da liberdade, obviamente o direito de liberdade se sobrepõe a todo e qualquer outro, mesmo porque as liberdades públicas, notadamente as que protegem o homem do arbítrio do Estado, constituem uma das razões do processo de organização democrática e constitucional do Estado [13].

Com efeito, não há dúvida de que a execução provisória da pena decorrente da condenação do júri é inconstitucional.

Contudo, no que tange à peculiaridade do artigo 492 do CPP, que prevê a execução relativamente às condenações igual ou superior a 15 anos, nem mesmo o equivocado argumento da soberania dos veredictos está em seu socorro, pois a decisão sobre os fatos é que está coberta pela soberania dos veredictos. No júri, a pena é aplicada pelo juiz presidente, cuja decisão não é soberana e está sujeita ao controle pelo segundo grau. A quantidade da pena aplicada não pode fundamentar a antecipação da execução, pois sequer possui o alegado amparo da soberania dos veredictos.

Sintetizando, a tese de que a decisão do júri pode ser executada provisoriamente, independentemente da pena aplicada, tem em seu socorro a aplicação equivocada do direito fundamental à soberania dos veredictos. Já a execução provisória da pena igual ou superior a 15 anos (artigo 492) imposta pelo tribunal do júri não se socorre, sequer, do emprego equivocado da soberania dos veredictos.

Com efeito, a execução provisória da pena decorrente de condenação do júri viola a presunção de inocência, princípio prevalente na hipótese examinada. Ademais, assiste razão a proposta de declaração de inconstitucionalidade da alínea “e” do inciso I do artigo 492 do CPP, na linha do que já ficou decidido nas ADCs 43, 44 e 54 do STF.

Oxalá o STF reafirme o compromisso com a tutela dos direitos fundamentais, explicitando, mais uma vez, a correta dimensão da presunção de inocência como princípio basilar do Estado democrático de Direito.

 


[1] NICOLITT, André. Habeas Corpus 118.770 do STF: Direitos fundamentais contra direitos fundamentais. Mais uma violência à presunção de inocência. Revista dos Tribunais | vol. 983/2017 | p. 155 – 175 | Set / 2017.

[2] MÉDICE, Sergio de Oliveira. Revisão Criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 200.

[5] STRECK, Lenio. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. . In: FERRAJOLI, Luigi et al (org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 60-64.

[7] BARCELLOS, Ana Paul de. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (org.). A Nova Interpretação Constitucional. Renovar, 2006, p. 108-113.

[8] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000. t. IV, p. 180-181.

[13] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 2, p. 369.

 é juiz de Direito titular do Juizado Especial Criminal de São Gonçalo (RJ), doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor do PPGD – Faculdade Guanambi (BA), professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim) e membro do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).

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Gustavo Ungaro: A pandemia do descontrole

Em uma situação de crise extrema, diz o senso comum que as instituições revelam sua resiliência e as pessoas, seu real caráter. Parece ser assim mesmo a insólita situação observada na pandemia mundial da Covid-19.

Enquanto agentes da saúde, da segurança pública, da gestão dos serviços essenciais e tantos outros profissionais e voluntários desempenham fundamental papel à superação da desafiadora peste, com foco na preservação da vida humana, alguns inescrupulosos cultores do próprio ego, obcecados pelo poder, e outros, devotos do dinheiro acima de tudo ou defensores de causas ocultas, estão tentando aproveitar a pandemia como biombo para a prática de ilegalidades, seja em busca de maior poder pessoal, subjugando instituições, seja em prol do ganho fácil, ainda que ilícito, fraudando compras públicas emergenciais, como tem noticiado diariamente a imprensa.

Neste tumultuado e dolosamente tensionado cenário, têm aflorado tentativas de dificultar a aplicação de normas de salvaguarda do interesse público, assim como ameaças e ataques a instituições republicanas, entremeadas por propaganda enganosa de panaceias milagrosas de tosco charlatanismo, superfaturamentos e desvios de dinheiro público.

Não bastasse o risco sanitário que já encurtou milhares de trajetórias humanas, a sociedade tem que enfrentar simultaneamente, também, artimanhas voltadas ao enfraquecimento de órgãos de controle, ataques à plenitude de leis fundamentais e desfalques sorrateiros do erário público, em virulenta espiral danosa à coletividade.

O sistema de Justiça está sendo colocado à prova, assim como a democracia encontra-se sob persistente ameaça, pois o jugo de liderança política com tendência extremista autoritária busca erodir por dentro as instituições representativas e esquivar-se das contenções do rule of law, tensionando os limites da legalidade e esgarçando a coesão social em nome de demagógico confronto do stablishment, em fenômeno que estaria a ocorrer em escala global, já detectado por pesquisadores das ciências sociais e políticas, tais como os professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, os quais alertam para o novo modo de mortificar a democracia, não mais por golpes militares necessariamente, senão por gradativa decomposição de regras, procedimentos e instituições erigidas para salvaguardar a divisão de poderes e os direitos fundamentais.

E a necessidade de uma legislação de urgência para autorizar novos gastos públicos e disciplinar as restrições decorrentes da calamidade pública declarada tem sido utilizada, em algumas lamentáveis ocorrências, como espaço para retrocesso normativo no acesso à informação e na responsabilidade administrativa de agentes públicos.

Foi o que se viu na Medida Provisória 928/2020, que buscou tisnar a Lei de Acesso à Informação, praticamente subtraindo sua vigência durante o ano e obrigando ao refazimento dos pedidos de informação no ano seguinte como se a transparência pública pudesse sofrer um inconstitucional hiato de validade, durante extenso lapso temporal, numa crise em que exatamente dados confiáveis mostra-se imprescindível. Recorde-se que é o próprio texto da Constituição da República a ressaltar a centralidade do acesso à informação como um dos direitos humanos sob forte proteção da ordem jurídica, ao insculpi-lo no inciso XXXIII do artigo 5º, fixando a transparência como regra geral e o sigilo como exceção delimitada.

Combatida por diversos partidos políticos e impugnada formalmente por ação direta de inconstitucionalidade postulada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a ilegalidade foi fulminada liminarmente e, em 30 de abril, restou confirmada, por unanimidade, pelo plenário da Suprema Corte, em relevante julgado garantidor da transparência como regra geral inafastável.

Em seguida, após a frustrada tentativa de reduzir a transparência pública, sobreveio outro desserviço, desta feita como ofensa ao princípio da moralidade administrativa e ao zelo com o dinheiro público, pois a Medida Provisória 966/2020, publicada no dia da Lei Áurea, parece ter buscado blindar e alforriar preventivamente autoridades federais, exalando impunidade ao repetir disposições legais já vigentes voltadas apenas a limitar a responsabilização de agentes públicos, sem reforçar a obrigação de primar pelo interesse público nas decisões durante a pandemia. Também foi mitigada pela célere atuação do Supremo Tribunal Federal.

Em âmbito local, mais uma contradição se apresentou, agora na maior cidade do país: em projeto de lei encaminhado pelo prefeito a fim de obter autorização legislativa ao uso de recursos orçamentários de fundos municipais e outras medidas para o enfrentamento da pandemia, foi embutido, no trecho final de emenda apresentada para conceder benefícios a ocupantes de funções comissionadas na área da saúde, descabida alteração na Lei da Controladoria Geral do município, com a pretensão de subtrair a capacidade decisória do órgão técnico especializado e transferi-la a comissão inespecífica de natureza política.

Sem liame de pertinência temática com o assunto da propositura, e tampouco debate prévio ou justificativa específica durante a tramitação legislativa de urgência, a nefasta tentativa de tolher o controle interno da capital paulista foi retratada, em diversas matérias jornalísticas, como algo impertinente e antinatural, tal como um jabuti em cima de uma árvore (algo que não acontece na natureza, pois o cascudo ser rastejante não tem capacidade de escalada se está nas alturas, é por alguém interessado tê-lo colocado lá, contra a normalidade e de modo inconsequente).

Patente o desrespeito ao devido processo legislativo, inclusive em razão de não poder criar, por iniciativa própria, procedimento e estrutura no Poder Executivo, em virtude da separação de poderes decorrente da Constituição, além da violação à autonomia técnica, administrativa e orçamentária, bem como à ruptura da vinculação direta ao chefe do Poder Executivo e do status de secretaria municipal, prerrogativas institucionais estipuladas pela recente Lei Municipal nº 16.974/2018, dotada de disposições adequadas à garantia da modelagem de controladoria apregoada pelos Tribunais de Contas, difundida pelo Conselho Nacional de Controle Interno, consagrada na Controladoria Geral da União e já implementada na maioria dos Estados e capitais de nosso país.

Além disso, ao objetivar mudança que significaria, na prática, burocratizar, retardar, dificultar e politizar o processo administrativo de responsabilização sancionatória de pessoas jurídicas, criando comissão de julgamento acima do órgão de controle interno, a discrepar da modelagem procedimental estipulada em âmbito nacional, o desengonçado e natimorto jabuti normativo afrontou a sistemática nacional de funcionamento da Lei Anticorrupção, norma de fundamental relevância na atualidade, momento histórico de clamor pelo combate à corrupção na Administração Pública, mazela que retira recursos das políticas públicas necessárias à coletividade e os transfere a fortunas ilícitas privadas.

Insustentável defender o óbice à aplicação da Lei Anticorrupção justamente na cidade que mais a aplicava no Brasil, segundo dados do Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). Entre abril de 2018 e março de 2020, foram instaurados, em média, por mês, quatro processos punitivos de empresas e uma sanção administrativa foi aplicada por ato de corrupção administrativamente apurado e comprovado.

A gravidade do perpetrado não poderia passar despercebido, e representação ao Ministério Público Estadual gerou ação direta de inconstitucionalidade prontamente acolhida pelo Tribunal de Justiça, de modo a afastar a validade do dispositivo ilegal e preservando, a um só tempo, a integridade do controle interno da cidade de São Paulo, pela manutenção intocável das prerrogativas da Controladoria Geral do Município, e a plena aplicabilidade da Lei Anticorrupção, pelo impedimento de sistemática descabida a dificultar sua concretização.

Como ilustram as situações aqui retratadas e são apenas algumas entre várias outras investidas antijurídicas em busca de retrocesso, que estão suscitando firme atuação do sistema de justiça em defesa do Estado democrático de Direito —, o vigente ordenamento jurídico contempla o controle e a transparência com absoluta centralidade, inclusive para ser adequado o enfrentamento da grave crise sanitária em curso, mas têm havido ousados ataques ao arcabouço protetivo da probidade administrativa, felizmente invalidados pelo eficaz funcionamento do Poder Judiciário ao menos até o presente momento —, prestigiando-se a transparência, o acesso à informação, a responsabilidade do Estado, de seus agentes e das empresas em face do mandamento republicano de integridade.

Para o desiderato democrático não fenecer, essenciais normas em conformidade com a Constituição, instituições legítimas atuando, imprensa livre, controle social e transparência.

Gustavo Ungaro é advogado, professor, doutor pela USP, ex-controlador-geral de São Paulo e ex-presidente do Conselho Nacional de Controle Interno.

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TCU lança painel com informações sobre auxílios emergenciais

Questão de transparência

Painel do TCU permite acompanhar informações sobre auxílios emergenciais

Para dar transparência aos gastos públicos, o Tribunal de Contas da União lançou, nesta segunda-feira (15/6), um painel com informações sobre benefícios sociais.

Até o momento, R$ 76,9 bilhões foram usados para pagar o auxílio emergencial
Divulgação/TCU

A ideia do tribunal de contas é oferecer ao cidadão acesso à informações sobre o auxílio emergencial de R$ 600 e sobre o benefício emergencial, que foi instituído pela Medida Provisória 936/2020, que trata do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.

Pela plataforma é possível acompanhar o andamento do programa e seu efeito no mercado de trabalho, assim como a implementação e o alcance do auxílio emergencial. 

De acordo com as informações publicadas no painel, até o momento, R$ 76,9 bilhões foram usados para pagar o auxílio emergencial a 58,5 milhões de brasileiros. Já em relação à concessão do benefício emergencial para pagar 8,4 milhões de trabalhadores habilitados, o governo já desembolsou R$ 11,1 bilhões.

O painel usa dados disponibilizados pelos Ministérios da Economia e Cidadania e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O TCU analisa, efetua cruzamentos com outros bancos disponíveis e consolida as informações.

A iniciativa atende decisão do Plenário da corte no acórdão 1.428/2020, de relatoria do ministro Bruno Dantas. A iniciativa integra as ações do Coopera (Programa especial de atuação no enfrentamento à crise da Covid-19), que consiste no acompanhamento de 28 ações desenvolvidas por oito ministérios, além da efetivação de parcerias com outros órgãos para apoio às ações e troca de conhecimento e capacitação técnica. Com informações da Assessoria de Imprensa do TCU.

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Revista Consultor Jurídico, 16 de junho de 2020, 13h34

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TRF-5 determina que Caixa adote medidas para organizar filas

Filas para saque do auxílio emergencial geram risco de contaminação por coronavírus
Marcelo Casal/Agência Brasil

Atendendo a recurso apresentado pela Procuradoria Geral de Pernambuco, o presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, desembargador Vladimir Carvalho, determinou, nesta sexta-feira (1º/5), que Caixa Econômica Federal adote uma série de medidas para organizar o atendimento em suas agências no sentido de evitar aglomeração e colocar em risco a saúde dos que precisam sacar benefícios e auxílios emergenciais.

Filas têm se formado dentro e fora de agências de todo o país, principalmente por quem pretende tocar o auxílio emergencial de R$ 600 concedido pelo governo como forma de enfrentamento à epidemia de Covid-19.

O presidente do TRF-5 determinou que a Caixa amplie o horário de funcionamento das agências e viabilize o seu funcionamento aos sábados e domingos, caso os atendimentos no período de segunda-feira a sexta-feira não se mostrem suficientes.

O banco também deverá organizar as filas, com o apoio do estado de Pernambuco, observando a manutenção de distância mínima de um metro entre os clientes em atendimento, “inclusive entre aqueles que aguardam na parte externa das agências, devendo utilizar, com o apoio do estado, sinalização disciplinadora”. 

A decisão judicial, de caráter liminar, foi dada no âmbito de ação civil pública, que havia sido proposta pelo governo de Pernambuco contra a Caixa. Os pedidos nesse processo foram negados pela primeira instância da Justiça Federal. Mas o tribunal acabou atendendo aos pedidos não só para adoção de providências pela Caixa, mas também pelo próprio governo estadual.

Conforme a decisão, o banco deve também realizar a triagem, de forma a verificar, preliminarmente, se a demanda pode ser solucionada sem ingresso do cliente na agência, além de realizar agendamento antecipado para atendimento presencial.

Clique aqui para ler a decisão

0804533-89.2020.4.05.0000