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Opinião: Ainda sobre o inquérito judicial e o sistema acusatório

É importante retomarmos o debate sobre a possibilidade do inquérito judicial atípico e sua inserção no sistema acusatório. Falemos, de novo, então, do IP n. 4.781, objeto de muitas polêmicas.

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal autoriza a realização de investigação, presidida pelo Presidente ou por outro Ministro por ele designado, de infrações penais nas hipóteses de envolvimento de autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, assim como para eventual infração penal cometida na sede do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 43, RISTF.

Vale mencionar que o Regime Interno do Supremo Tribunal Federal tem força de lei, isto é, suas disposições normativas constituem lei no sentido material, daí que há uma autorização legislativa expressa para a existência do Inquérito do STF no ordenamento jurídico. E é vigente e válida, até que esta seja retirada.

A questão é a compatibilização do referido instituto com a adoção constitucional do sistema acusatório. Para tanto, é importante lembrarmos que, regra geral, o Ministério Público tem a iniciativa da ação penal, mas o órgão acusatório não tem sua exclusividade, basta ver a existência de ações penais privadas. É o que se vê, também, em torno da investigação preliminar, cuja condução pelo MP foi constitucionalmente autorizada, podendo inclusive ser assumida por outros órgãos, inclusive a própria defesa. Não esqueçamos que o próprio MP investiga seus membros, e o faz por Inquérito (PAD) aberto pelo próprio procurador-geral.

Importante aspecto, então, surge quando há uma eventual alegação de que o próprio órgão investigador poderia ser o órgão julgador. Efetivamente, a condução do Inquérito pelo Ministro Alexandre de Moraes de n. 4.781 deve ser lida de acordo com as garantias constitucionais.

Essa sistemática, contudo, não é desconhecida de nosso sistema processual penal. O Ministro Alexandre de Moraes, caso a denúncia seja promovida no âmbito da competência originária do STF, deveria seguir o princípio acusatório segundo o qual quem toma contato com os elementos de prova no âmbito da investigação preliminar deve dar-se por impedido para julgar, nos termos do art. 277 do RISTF.

É bem verdade que o próprio RISTF prevê hipóteses em que o Tribunal informará eventual delito ao procurador-geral da República, para eventual propositura de denúncia, quando a vítima for o próprio STF, tal como previsto no art. 46, assim redigido:

Art. 46. Sempre que tiver conhecimento de desobediência a ordem emanada do Tribunal ou de seus Ministros, no exercício da função, ou de desacato ao Tribunal ou a seus Ministros, o Presidente comunicará o fato ao órgão competente do Ministério Público, provendo-o dos elementos de que dispuser para a propositura da ação penal.

A questão é interpretar esse artigo à luz de sua sistematização. Em questão, o delito seria de desobediência ou desacato e, regra geral, seria cometido por conduta ou omissão exposta de plano em documentos no exercício da jurisdição, o que prescindiria da existência de investigação preliminar.

Na sequência, o art. 47 do RITSF prevê a hipótese em que o órgão acusatório permanece inerte, ocasião em que a Corte realizará sessão secreta para as “providências necessárias”.

Por providências necessárias deve-se entender que o Supremo Tribunal Federal poderá requerer a responsabilização política do procurador-geral da República, nos termos do art. 52, inc. II da Constituição.

No caso do Inquérito 4.781, como parte no processo penal, cabe ao procurador-geral da República aguardar o término das investigações para, de posse dos elementos informativos, propor a denúncia ou o arquivamento no âmbito do Supremo Tribunal Federal, conforme o art. 1º, da Lei 8.038/90.

Estaríamos violando a Constituição se defendêssemos que, no caso de eventual arquivamento das investigações por parte do PGR, isso autorizasse uma ação subsidiária da pública, coisa que somente seria possível no caso de inércia do MP. Se ele decidir arquivar, nada haverá a ser feito. Carregará, é claro, o ônus político. Mas não podemos sair da legalidade-constitucionalidade.

De qualquer sorte, é bom lembrar — e isso parece que está sendo esquecido na discussão — que a atribuição da presidência dos inquéritos aos ministros do STF permite, inclusive, que os relatores determinem até mesmo o arquivamento de inquérito em curso, mesmo sem requerimento da Procuradoria-Geral da República. Essa possibilidade decorre de previsão expressa do art. 231, § 4º, do Regimento Interno da Corte (emenda de 2011), que tem, como dito, status de lei. Norma processual, portanto. Válida e vigente. Que nunca teve contrariedade do fiscal da lei, o procurador-geral da República. Assim como os demais dispositivos que sustentam o Inquérito, todos vigentes, até agora, válidos. Logo, a legalidade-constitucionalidade está mantida.

Numa palavra: parece adequado, nessas circunstâncias, buscar exemplos na história. Na Prússia, em meados do século XIX, discutiu-se qual seria a solução para o impasse sobre o orçamento, quando a Câmara Baixa recusou aprovar o projeto de lei apresentado por Bismarck. O Kaiser, quem outorgara a Constituição, teria dito: “A Constituição sou eu! Isso que vocês chamam de Constituição é uma mera folha de papel”, despertando a crítica irônica de Lassalle. Pois, a solução jurídica, contudo, veio de Paul Laband: execute-se a lei orçamentária do ano anterior, já vigente, enquanto não for aprovada uma nova lei.

Isto é: a situação que ensejou o Inquérito 4.781 não pode fazer com que nada aconteça a quem praticou Contemp of Court (ataques à Corte). Dodge e Aras nada fizeram (no ano passado, Aras concordou com o Inquérito). Logo, execute-se o orçamento do ano anterior, é dizer, o Direito reclama a sua própria integridade. Existe farta legislação em vigor, como o CPP e RISTF. Usemo-la.

E fiquemos na legalidade.

P.S. Necessário: Aras e os militares!

Tomamos conhecimento que o procurador-geral da República, em entrevista a Pedro Bial, concorda(va) com a tese antirrepublicana e inconstitucional de que o artigo 142 da Constituição atribuiria o papel de “poder moderador” aos militares. Ele disse: “Quando o artigo 142 estabelece que as Forças Armadas devem garantir o funcionamento dos Poderes constituídos, essa garantia é no limite da garantia de cada Poder. Um poder que invade a competência de outro Poder, em tese, não há de merecer a proteção desse garante da Constituição. Se os Poderes constituídos se manifestarem dentro das suas competências, sem invadir as competências dos demais Poderes, nós não precisamos enfrentar uma crise que exija dos garantes uma ação efetiva de qualquer natureza”.

Horas depois, percebendo o perigoso equívoco que cometeu, desdisse-se. Não teria sido bem interpretado ou não teria sido feliz. De nossa parte, a pergunta que deve ser feita é: O que dizer quando o procurador-geral da República desconsidera a própria Constituição e a Lei Complementar n. 97 — que regulamenta a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas —, em favor de um verdadeiro haraquiri institucional? OK. Ele se retratou. Mas o simbólico disso é, e que ficará gravado nas páginas da histórias é: de que modo um procurador-geral da República chega ao ponto de dizer o que disse? A manchete poderia ser: “O dia em que o procurador-geral da República rasgou a Constituição e depois tentou juntar os cacos”. Nada mais a se dizer.

Artigo originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

Marco Aurélio de Carvalho é advogado especializado em Direito Público, sócio-fundador do Grupo Prerrogativas e da  Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e membro do Sindicato dos Advogados de São Paulo.

 é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG, doutor e mestre em Direito pela mesma instituição.

Diogo Bacha e Silva é doutor em Direito pela UFRJ, mestre em Direito pela FDSM, e professor da Faculdade de São Lourenço.

 é advogado criminalista, doutor e mestre em Direito Penal pela USP e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Foi ouvido como perito jurista em nome do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso Herzog.

José Eduardo Cardozo é advogado. Foi ministro da Justiça e Advogado Geral da União. Professor da PUC-SP, mestre em Direito e doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha) e pela USP.

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Consumo pessoal de drogas não obriga revogação do sursis

A instauração de ação penal por posse de droga para consumo próprio, crime descrito no artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) é causa de revogação facultativa — e não obrigatória — da suspensão condicional de outro processo.

dolgachovSTJ discute revogação facultativa da suspensão condicional do processo

Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça cassou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que concluiu que, em tal situação, a suspensão do processo deveria ser revogada obrigatoriamente.

Com a decisão, a 5ª Turma encaminhou o processo para que o juiz de primeira instância analise se é o caso de revogar a suspensão condicional do processo ou de declarar a extinção da punibilidade, caso tenham sido cumpridas todas as obrigações impostas ao acusado.

Após o TJ-SP ter concluído pela revogação obrigatória do benefício, o acusado entrou com recurso especial, no qual apontou as peculiaridades do crime de posse de drogas para consumo próprio, lembrando que o artigo 28 da Lei 11.343/2006, inclusive, tem sua constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal.

O recorrente defendeu que o delito de posse de drogas deve ter o mesmo efeito para a suspensão do processo que a contravenção penal, com a aplicação ao seu caso da regra do parágrafo 4º do artigo 89 da Lei 9.099/1995, pois as consequências da conduta descrita no artigo 28 da Lei de Drogas são até mais amenas do que as de uma contravenção.

Precedentes

O ministro Ribeiro Dantas, relator do recurso, observou que, como registrado pelo acórdão do TJ-SP, a posse de drogas para consumo próprio não foi descriminalizada, mas apenas despenalizada. Em tese, a prática dessa conduta geraria os mesmos efeitos secundários que qualquer outro crime, como a reincidência e a revogação obrigatória da suspensão do processo.

Entretanto, de acordo com o ministro, a 6ª Turma definiu em 2018 que a condenação por posse de drogas para consumo próprio não deve constituir causa de reincidência.

“Vem-se entendendo que a prévia condenação pela prática da conduta descrita no artigo 28 da Lei 11.343/2006, justamente por não configurar a reincidência, não pode obstar, por si só, a concessão de benefícios como a incidência da causa de redução de pena prevista no parágrafo 4º do artigo 33 da mesma lei ou a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos”, explicou o relator ao citar precedentes da 5ª e da 6ª Turmas.

Proporcionalidade

Ribeiro Dantas afirmou que o entendimento pela não caracterização da reincidência se baseia na comparação entre o crime do artigo 28 e a contravenção penal: como a contravenção não gera reincidência, “revela-se desproporcional considerar, para fins de reincidência, o prévio apenamento por posse de droga para consumo próprio”.

Segundo o ministro, igualmente se mostra desproporcional que a mera existência de ação penal por posse de drogas para consumo próprio torne obrigatória a revogação da suspensão condicional do processo, enquanto a ação por contravenção dá margem à revogação facultativa.

Afinal, explicou o relator, embora a posse de drogas ainda seja crime, ela é punida com advertência, prestação de serviços e comparecimento a cursos educativos, enquanto a prática de contravenção leva à prisão simples em regime aberto ou semiaberto. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

REsp 1.795.962

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TJ-SP anula imposição de cautelares por ausência de fundamentação

A ausência de abertura de prazo para a manifestação da defesa acerca da imposição de medidas cautelares à prisão (artigo 282, § 3o, CPP), bem como a ausência de fundamentação concreta relativa à necessidade de cada uma das referidas medidas (artigo 315, § 1o, CPP), gera nulidade da decisão.

CNJTJ-SP anula imposição de medidas cautelares por ausência de fundamentação

Com esse entendimento, a 8ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu em parte um habeas corpus e anulou a imposição das medidas cautelares diversas da prisão a 18 denunciados por crimes contra a administração pública, com determinação de reapreciação do pedido formulado pelo Ministério Público, observando-se o disposto nos artigos 282, § 3º, e 315, § 1º, do CPP.

O relator, desembargador Sérgio Ribas, citou recentes alterações trazidas pela Lei 13.964/19 na redação do artigo 282, do CPP. “Ao receber o pedido de decretação de medidas cautelares diversas da prisão por parte do I. representante do MP, o MM. Juízo a quo deveria ter determinado a intimação das defesas dos denunciados para que se manifestassem no prazo de cinco dias, sendo que tal medida poderia ter sido fundamentadamente dispensada somente nos casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida”, disse.

No caso dos autos, o relator reconheceu que o juízo de origem não intimou a parte contrária para manifestação, nem apresentou qualquer motivo que justificasse o não cumprimento do preceito legal, caracterizando o constrangimento ilegal alegado pelos advogados do paciente. 

Ribas também destacou alterações no artigo 315, do CPP, em função da Lei 13.964/19, e disse que a decisão que deferiu a imposição de medidas cautelares aos denunciados “o fez sem a adequada fundamentação, tendo imposto a 18 réus, de forma genérica, o cumprimento das cinco medidas cautelares nela elencadas, não trazendo qualquer elemento concreto que justificasse a sua imposição a cada denunciado individualmente”.

Sendo assim, o desembargador afirmou que, ainda que se admita que a fundamentação seja feita de forma sucinta, esta não se confunde com a ausência de fundamentação adequada, sob pena de inobservância ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal e ao artigo 315, §§, 1º e 2º, do Código de Processo Penal.

Ribas concluiu, portanto, ser necessária a fundamentação adequada para imposição de medidas cautelares diversas da prisão, assim como se faz com o decreto de prisão preventiva. O HC foi impetrado pelos advogados Jaime Rodrigues de Almeida Neto, Gustavo Henrique Coimbra Campanati e Rafael Ribeiro Silva, do escritório Almeida Neto e Campanati Advogados, em favor de um dos acusados. A decisão também foi estendida aos outros 17 denunciados.

2048385-47.2020.8.26.0000