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Gustavo Favero Vaughn: Contra a jurisprudência defensiva

Piero Calamandrei, em seu clássico Elogio, ao tratar de tristezas e heroísmos da vida dos advogados, escreveu que certa vez um velho causídico lhe dizia que, em geral, os advogados trabalham sem se poupar até o último suspiro, para chegar à morte sem pensar nela.[1]

São inúmeras as questões profissionais que preocuparão nós, advogados, até o último suspiro. A jurisprudência defensiva é, sem dúvida, uma dessas questões de rotineira e incessável angústia.

A jurisprudência defensiva consiste, nos dizeres do ministro Humberto Gomes de Barros, em referência ao Superior Tribunal de Justiça, “na criação de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos.”[2] Muitos desses entraves e pretextos são ofensivos a garantias constitucionais basilares, tais como o acesso à justiça e o devido processo legal.

Se se pudesse resumi-la em uma única sentença, poder-se-ia dizer que a jurisprudência defensiva é o arquétipo do que Botelho de Mesquita chamou de processo incivil.[3][4]

O Código de Processo Civil de 2015 exerce papel relevante no combate à jurisprudência defensiva, especialmente porque prevê, como norma fundamental, o princípio da primazia do julgamento do mérito. Isso significa dizer que o legislador deixou claro aos quatro ventos que os intérpretes devem prestigiar a resolução da crise de direito material levada à apreciação do Poder Judiciário, e não se pautarem em filigranas processuais que, sem o enfrentamento da questão posta em juízo, fulminam a pretensão dos jurisdicionados, neles deixando aquele travo de insatisfação de que falou Barbosa Moreira.[5]

Dito protagonismo da lei processual civil surtiu efeitos. É salutar reconhecer que determinadas orientações dos tribunais superiores antes consideradas defensivas hoje não mais subsistem, pelo que parece lícito concluir que o advento do CPC/2015 proporcionou, em alguma medida, o enfraquecimento da jurisprudência defensiva.

Mas o atual Código não foi suficiente para exterminá-la. Essa prática perversa, para se valer aqui das palavras de José Rogério Cruz e Tucci, remanesce entre nós.[6] Há uma específica tendência do STJ que ainda preocupa: a tormentosa controvérsia em torno da comprovação do feriado local.

Inicialmente, o STJ considerava descabida a comprovação de feriado local após a interposição de recurso.[7] Ao final de 2012 tal orientação foi superada, passando a prevalecer a judiciosa tese de que seria cabível a comprovação posterior de feriado local.[8] Ao que consta, em 2017, fazendo uma leitura rigorosa do CPC vigente, sucedeu nova guinada jurisprudencial, tendo o STJ assentado o entendimento de que seria admissível que o recorrente comprovasse posteriormente a existência de feriado local.[9]

O STJ voltou a debruçar-se sobre o tema em 2019. Em julgamento paradigmático, a Corte Especial por maioria de votos decidiu, em suma, que a interpretação sistemática levaria a crer que o CPC/2015 atribuiu à intempestividade o epíteto de vício grave, pelo que não seria possível saná-lo após o manejo do recurso.[10] A transcrição do primeiro item da ementa do referenciado aresto é suficiente para compreender a posição vencedora:

“O novo Código de Processo Civil inovou ao estabelecer, de forma expressa, no § 6º do art. 1.003 que ‘o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso’. A interpretação sistemática do CPC/2015, notadamente do § 3º do art. 1.029 e do § 2º do art. 1.036, conduz à conclusão de que o novo diploma atribuiu à intempestividade o epíteto de vício grave, não havendo se falar, portanto, em possibilidade de saná-lo por meio da incidência do disposto no parágrafo único do art. 932 do mesmo Código.”

Nada obstante a insistência na tese defensiva, em prejuízo dos que postulam a prestação jurisdicional do Estado, a Corte Especial, firme no princípio da segurança jurídica, modulou os efeitos da aludida decisão, limitando sua aplicação aos recursos apresentados após a publicação do acórdão respectivo.

Esse cenário piorou com o julgamento de questão de ordem suscitada após o trânsito em julgado do acórdão. Tendo em conta uma alegada contradição entre as notas taquigráficas e o voto elaborado pelo relator, decidiu-se, por maioria de 7 votos a 3, que a modulação de efeitos abrangeria especificamente o feriado da segunda-feira de Carnaval, não se aplicando aos demais feriados, inclusive os feriados locais, pois essa seria a tese que refletiria a convicção manifestada pelo órgão colegiado que apreciou o recurso.[11]

Com efeito, de acordo com o mais recente entendimento do STJ, a comprovação posterior de causa suspensiva ou interruptiva do prazo recursal é admissível apenas no que diz respeito ao feriado da segunda-feira de Carnaval e relativamente aos recursos interpostos até a publicação do acórdão do REsp 1.813.684-SP, acima citado.

Mesmo que o direito seja um fenômeno interpretativo-argumentativo, não se pode conceber a atribuição da severa pena de intempestividade a recurso manejado no prazo legal, mas que não tenha sido instruído com a comprovação do feriado local. De fato, o CPC/2015 determina ao recorrente a comprovação documental de feriado quando da interposição do recurso. Mas nada, absolutamente nada, condiciona a comprovação somente ao ato de interposição. E a ausência de tal advérbio — ou outro equivalente — tem relevância na exegese da regra legal.

A leitura sistemática do CPC/2015 à luz do modelo constitucional de processo, como é de rigor, naturalmente se opõe à jurisprudência defensiva, desautorizando a declaração imediata de intempestividade de recurso não acompanhado da comprovação do feriado local. O que se defende, por ser lógico e plausível, é que ao recorrente seja dada a oportunidade de, após o protocolo do recurso, se for o caso, comprovar a ocorrência de feriado local.

Espera-se que, numa realidade não tão distante, prevaleça essa tese em prol da efetividade processual.

 é advogado do Cesar Asfor Rocha Advogados, mestrando em Processo Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Comissão de Mediação da OAB-SP, do IBDP, do Ceapro e do CBAr.

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Opinião: Nomeação de Ramagem no STF: o acerto jurídico da liminar

Texto em coautoria com outros advogados[1]

Não é de hoje que manifestamos nosso inconformismo contra o ativismo judicial que tem marcado a atuação de parte do Poder Judiciário. Direitos e garantias constitucionais têm sido constantemente violados, sob pretextos retóricos e messiânicos, abalando o nosso Estado Democrático de Direito.

Temos consciência plena do quanto fazem mal para a nossa jovem Democracia os processos acentuados de politização do Judiciário e de judicialização da política. Contra eles, inclusive, temos nos pronunciado frequentemente.

Não defendemos, com isso, o amesquinhamento do Poder Judiciário ou que ele abdique do seu dever de aplicar as leis ou de fiscalizar e fazer aplicar a nossa Carta Constitucional de 1988.

Por isso, no momento em que se discute a correção jurídica da decisão do Ministro Alexandre de Moraes, que concedeu liminar impedindo a posse de Alexandre Ramagem como Diretor-Geral da Polícia Federal, convém firmarmos nossa posição.

É um debate polêmico, que divide e incendeia a comunidade jurídica.

Entendemos que a decisão foi correta e adequada aos princípios constitucionais e às regras legais em vigor.

De acordo com a nossa Constituição, o Poder Judiciário pode e deve controlar a validade de atos administrativos, a partir de seus requisitos eminentemente jurídicos, mesmo reconhecida a liberdade de opção discricionária do administrador ao praticá-los.

No Estado de Direito, embora juízes estejam impedidos de adentrar ao campo valorativo decisório de mérito das competências administrativas, desde que sejam provocados legitimamente, poderão invalidar atos que ultrapassem esses limites de liberdade.

Uma das razões pelas quais juízes podem anular atos administrativos se dá quando estes são praticados em desacordo com a sua finalidade legal. Quer dizer: um ato administrativo deverá ser anulado sempre que o poder do administrador de praticá-lo tiver sido desviado da finalidade para a qual a lei admitia a sua prática. É o vício denominado de “desvio de poder”.

E foi o que inegavelmente ocorreu na nomeação em discussão. Um claro e inequívoco “desvio de poder”.

Ao ser contrastado pelas denúncias do ex-Ministro Sérgio Moro de que a nomeação de Ramagem visava a que a Polícia Federal atuasse de acordo com os interesses pessoais do Chefe do Executivo, em uma coletiva de imprensa e em outras manifestações, o próprio presidente confirmou esse fato, afirmando, inclusive, que já solicitara desse órgão a realização de uma diligência destinada a obter um depoimento em favor de um de seus filhos.

Essa intenção presidencial de retirar a atuação da PF dos trilhos legais foi confirmada por mensagens escritas divulgadas pelo próprio ex-ministro Sérgio Moro, ainda não contestadas, e, também, pela notória relação de amizade que o nomeado mantém com o núcleo da família Bolsonaro.

Não queremos dizer, com isso, que qualquer nomeação de um amigo para um cargo de confiança seja ilícita. Cargos de confiança existem para serem ocupados por pessoas que mantém uma relação de confiança com quem escolhe seus ocupantes. E é bom que seja assim.

O que se afirma é que é ilegal nomear-se alguém para cumprir uma missão ilícita, qual seja, a de fazer com que a Polícia Federal deixe de investigar parentes ou aliados do presidente da República , ou ainda, que esse órgão rompa com o dever legal de sigilo, prestando informações sobre investigações que, por lei, não podem ser prestadas.

Justamente por tal razão, não se afigura pertinente a pecha de incoerência da decisão liminar, por ter vedado a nomeação de Alexandre Ramagem para a Direção Geral da Polícia Federal, ao tempo em que o manteve no cargo de Diretor-Geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). À Polícia Federal, que detém atribuições de polícia judiciária, cabe resguardar o segredo quanto ao andamento de investigações em curso, mesmo ao presidente da República, e sobretudo quando se tratar de apurações que envolvam seus familiares. Isso diferencia a natureza do órgão em comparação com a Abin, cuja competência, aí sim, destina-se a suprir a cúpula governamental com elementos informativos necessários à tomada de decisões de gestão.

Nesse contexto, o rompimento do preceito constitucional da impessoalidade, admitido pelo próprio presidente, traduz fato incontroverso que enseja a avaliação da ocorrência do desvio de poder, facultando a impetração de mandado de segurança preventivo para conter o iminente ato abusivo.

Por isso, temos como acertada a decisão do Ministro Alexandre de Moraes.

Uma liminar não é uma decisão definitiva e deve ser concedida sempre que a aparência do direito é boa e a demora de uma decisão definitiva seja prejudicial.

Foi o que ocorreu, no caso, em face das próprias palavras do presidente e da urgência de se evitar a posse daquele que, declaradamente, receberia do presidente da República a missão de desviar a PF do seu dever de atuar de acordo com o princípio republicano.

Nos parece, assim, que a vedação da posse de Alexandre Ramagem na Direção-Geral da Polícia Federal distingue-se essencialmente da liminar que impediu a posse do ex-presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil no governo da presidenta Dilma Rousseff. Naquele caso, tudo derivou de um áudio ilicitamente divulgado pelo então juiz federal Sergio Moro que, apesar de imprestável como prova, induziu o STF a considerar haver uma tentativa de obstrução de justiça, num clima midiático que inibiu  o necessário choque de versões entre o que alguns pretendiam extrair do diálogo mantido e a própria explicação dada pela então chefe do Executivo. Isso eliminava, à época, ao nosso ver, a aparência da ilegalidade e a possibilidade daquela matéria ser discutida pela via do mandado de segurança.

Ou seja: embora no plano do direito possam parecer situações análogas, a nomeação feita por Dilma envolvia prova ilícita, contestada veementemente e, na soma, implicava , também,  versões fáticas discrepantes e ocultação intencional de fatos relevantes, manipulados com um objetivo conhecido e inconfessável.  A nomeação feita por Bolsonaro, por sua vez, diz respeito à prova lícita e à narrativa do próprio Presidente, confirmando o desvio de finalidade em que incorreu.

Entendemos, pois, que rejeitar nefastos ativismos ou abusos judiciais não significa defender que o Poder Judiciário deva deixar de cumprir, dentro da lei e da Constituição, a sua importante função de controlar atos administrativos abusivos praticados por um Chefe de Estado arbitrário e que ignora a lei, as instituições e os interesses públicos.

Este é o desafio.

 


[1]

Weida Zancaner, advogada, mestre em Direito e professora de Direito Administrativo. Membro do IDAP do IDID e do IBDA.

Fernando Hideo Lacerda, advogado criminalista, doutor e mestre em Direito.

 Marco Aurélio de Carvalho, sócio fundador do Grupo Prerrogativas e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Conselheiro do Sindicato dos Advogados de São Paulo. Sócio fundador do CM Advogados. Especialista em Direito Público

Carol Proner, advogada, professora de Direito Internacional da UFRJ, membro fundador da ABJD.

Fabiano Silva dos Santos, advogado, mestre e doutorando em direito pela PUC/SP.

Mauro de Azevedo Menezes, advogado, mestre em Direito Público pela UFPE, ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República.

José Eduardo Cardozo é advogado. Foi ministro da Justiça e Advogado Geral da União. Professor da PUC-SP, mestre em Direito e doutorando em Direito pela Universidade de Salamanca (Espanha) e pela USP.