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Opinião: Os planos de saúde e a jurisprudência do STJ

Os direitos correlatos à saúde repercutem em diversas vertentes da vida civil e foram enaltecidos pela Constituição Federal de 1988 como direitos sociais, inseridos no âmbito dos direitos fundamentais de segunda geração, por exigir uma prestação estatal positiva.

Com o objetivo de assegurar a proteção e a efetividade desses direitos, decorrem as mais variadas controvérsias, que, por diversas vezes, são dirimidas pelo Poder Judiciário. Trataremos, por meio do presente artigo, da visão do Superior Tribunal de Justiça em relação aos planos de saúde e à autonomia contratual.

De início, cumpre salientar que os planos de saúde estão insertos na seara do Direito Civil, haja vista que tratam de relações contratuais entre particulares. Dessa forma, comumente são oferecidas coberturas individuais, familiares, coletivas empresariais ou coletivas por adesão, de modo que cada uma satisfaz uma modalidade específica de cliente, que pode aderir ao plano para si, seus familiares, seus funcionários e até mesmo seus associados ou filiados.

Ante o amplo cenário delineado, surgem os mais variados conflitos, os quais são caracterizados, sobretudo, por uma pretensão resistida. O Superior Tribunal de Justiça, ciente do aumento exponencial das demandas correlatas aos planos de saúde, que decorre especialmente da judicialização da saúde, compilou entendimentos consignados que versam sobre a temática, os quais serão tratados por meio do presente artigo.

Uma das teses firmadas pela jurisprudência da Corte Superior é a possibilidade de o plano de saúde estabelecer as doenças para as quais serão ofertadas cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado para a cura de cada uma delas. Com arrimo nessa orientação, as operadoras devem arcar, por exemplo, com as despesas relativas ao tratamento médico domiciliar, por exemplo, de modo que a cláusula contratual que exclui tratamento domiciliar (home care) é considerada abusiva.

Nessa senda, outra tese adotada pelo Superior Tribunal de Justiça reconhece a inexistência de vedação legal ao uso de medicamentos off-label — aqueles cuja indicação do profissional assistente diverge do que consta na bula — na hipótese de haver evidências clínicas que amparem a prescrição médica.

O aludido posicionamento foi utilizado como arrimo para que as operadoras de plano de saúde sejam obrigadas a custear medicamento experimental, por exemplo, porquanto não podem limitar o tipo de tratamento a ser prescrito ao paciente.

Não obstante, o Tribunal Superior também exarou entendimento reconhecendo a abusividade da recusa da operadora do plano de saúde em arcar com a cobertura do medicamento prescrito pelo médico para o tratamento do beneficiário, seja ele off label, de uso domiciliar, ou, ainda, experimental — não previsto pelo rol da ANS — quando for necessário ao tratamento de enfermidade que seja objeto de cobertura pelo contrato pactuado.

O fundamento que subsidiou a tese alhures perpassa pela ingerência técnica que a operadora do plano de saúde faria frente a atuação médica. Afinal, de acordo com o entendimento jurisprudencial majoritário, o médico é o responsável por decidir se o tratamento é adequado à enfermidade que acomete o paciente no caso concreto, nos moldes das indicações da bula ou do manual da Anvisa.

Ademais, o tribunal pontuou que permitir que a operadora negue a cobertura de tratamento sob o argumento de que a doença do paciente não estaria contida nas indicações da bula representa inegável ingerência na ciência médica, capaz de provocar prejuízos ao paciente enfermo, além de colocá-lo em desvantagem exacerbada, nos termos do Código de Defesa do Consumidor.

Por fim, o Superior Tribunal de Justiça delimitou mais uma tese ao considerar abusiva a cláusula contratual ou o ato que importe em interrupção de tratamento de terapia ou de psicoterápico por esgotamento do número de sessões anuais asseguradas no rol de procedimento e eventos em saúde da ANS.

Isso porque foi entendido que os tratamentos psicoterápicos são contínuos e de longa duração, sendo que um número reduzido de sessões anuais não é capaz de remediar a maioria dos distúrbios mentais. Portanto, a interrupção do tratamento poderia comprometer o restabelecimento da saúde mental do usuário do plano de saúde, o que afrontaria os princípios da boa-fé e da equidade que regem as relações contratuais.

Por derradeiro, conclui-se que os posicionamentos visam a tutelar o direito à saúde não apenas no âmbito formal, mas também a concretização no plano material, observando os preceitos enaltecidos pela Carta Magna, o que vem sendo reiteradamente reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça.

 é sócio-fundador do escritório Malta Advogados, professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília (UnB) e secretário-geral da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB.

 é estagiária no escritório Malta Advogados, bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e membro do grupo de estudos “Constitucionalismo Fraternal”, sob a orientação do ministro Carlos Ayres Britto.

 é estagiário no escritório Malta Advogados e membro do Grupo de Pesquisa “Trabalho Constituição e Cidadania” (UnB-CNPq).

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Diogo Malan: Legislação simplifica advocacia criminal europeia

Hodiernamente há inegáveis mudanças nos sistemas de administração de Justiça, que repercutem diretamente na advocacia criminal.

A primeira é o movimento de expansão do Direito Penal, resultante de fenômenos característicos da pós-modernidade, tais como a globalização econômica e a integração supranacional.

Uma das principais consequências desse movimento expansivo é o aumento quantitativo de casos submetidos aos sistemas de administração de justiça criminal, havendo insuficiência dos seus recursos humanos e materiais para solucionar todos esses casos dentro de prazo razoável. Tal conjuntura gera grande pressão política no sentido da adoção de mecanismos tais como o princípio da oportunidade no ajuizamento da ação penal condenatória e ritos sumários/simplificados.

Exatamente nessa toada soa a Recomendação R(87)18 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, que cuida da simplificação da justiça criminal. O item III.a.7 desse documento recomenda expressamente a adoção de mecanismos de aplicação consensual da pena, desde que compatíveis com “as tradições constitucionais e legais” de cada país.

Na Europa, viceja tendência de adoção de mecanismos consensuais de adjudicação do caso penal em praticamente todos os países.

Essa mudança foi insuflada pela decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) no caso Natsvlishvili e Togonidze vs. Geórgia em 2014, que concluiu pela compatibilidade entre as garantias do processo justo e equitativo, asseguradas pela Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), e os sobreditos mecanismos.

Esse novel paradigma desloca o centro de gravidade da persecução penal do julgamento para a fase de investigação preliminar do crime. A consequência prática é a crescente importância de atuação efetiva do Advogado já durante essa etapa de investigação preliminar.

Tal importância é objeto de interessante artigo científico de Anna Pivaty, Miet Vanderhallen, Yvonne Daly e Vicky Conway.

O TEDH, desde o caso Salduz vs. Turquia em 2008, entende que o direito convencional à defesa técnica (artigo 6.3.c da CEDH) exige que, como regra geral, a assistência jurídica seja proporcionada ao investigado desde o seu primeiro interrogatório policial, exceto se houver circunstâncias convincentes para se restringir tal direito.

Nessa conjuntura, há ressignificação da intervenção do Advogado na fase em apreço, que deixa de ser meramente preparatória para o julgamento e passa a ter cariz determinante do resultado desse julgamento (v.g. a omissão de impugnação e registro de ilegalidade durante ato de investigação do qual o Advogado participou gera preclusão etc.).

Para tanto, a tradicional matriz de educação e treinamento do Advogado – focada no desenvolvimento de habilidades relacionadas ao contencioso judicial (v.g. pesquisa jurídica; redação de peças processuais; sustentações orais etc.) – se revela insuficiente.

Uma iniciativa adotada no Velho Continente em 2015 para propiciar aos Advogados habilidades mais adequadas à precitada realidade contemporânea é o denominado treinamento SUPRALAT.

Seu objetivo é encorajar perspectiva mais ativa, focada no cliente e reflexiva da defesa técnica do investigado na fase da investigação preliminar do crime, via o desenvolvimento de habilidades práticas (especialmente comunicativas).

A atividade consiste em atuação profissional mais intensa na escuta atenta dos atos, na tomada de apontamentos, no apoio efetivo ao cliente e na avaliação contínua sobre a influência dos desdobramentos da investigação preliminar do delito na teoria do caso a ser apresentada em juízo.

O foco no cliente se caracteriza pela construção de relação Advogado-cliente fiduciária e produtiva, que permita adequada compreensão da sua situação e necessidades individuais.

A reflexividade se consubstancia na melhora da capacidade decisória do Advogado.

Em suma, o treinamento SUPRALAT parte da premissa de que a realidade contemporânea impõe ao Advogado criminalista novo papel, novas responsabilidades e novos desafios, a exigir habilidades ainda não incorporadas à sua tradicional matriz de educação e treinamento.

Uma das características da investigação preliminar do delito é seu déficit informativo. Isso significa que o Advogado deve orientar o cliente mesmo sem acesso integral aos elementos informativos amealhados, medidas cautelares sigilosas em curso etc. para tomar decisões estratégicas e táticas informadas. Na maioria dos países europeus, não há previsão legal autorizando a divulgação de elementos informativos ao Advogado previamente ao primeiro interrogatório policial do investigado.

Outra característica da investigação em exame é a urgência. O Advogado deve entrevistar o cliente, inteirar-se dos fatos investigados (na medida do possível), avaliar a situação pessoal do cliente, assisti-lo durante o interrogatório, tomar medidas para assegurar seu direito de liberdade etc., tudo isso em brevíssimo lapso temporal.

Ou seja, o Advogado deve ser capaz de pensar rápido, tomar decisões estratégicas e táticas, agir com assertividade e confiança na interlocução com autoridades públicas etc., mesmo com base em informações precárias. O ambiente policial tende a ser altamente emotivo, em razão da fragilidade emocional e psicológica do investigado preso e da pressão para que as autoridades públicas cumpram formalidades processuais penais em prazos exíguos.

Ademais disso, na etapa persecutória em digressão também há a característica da invisibilidade. Tradicionalmente, oportunidades de compartilhamento de conhecimentos práticos e de recebimento de feedback de colegas sobre a atuação profissional do Advogado surgem nos Tribunais. Por outro flanco, a advocacia na fase de investigação preliminar é mais opaca e invisível para colegas, proporcionando maior grau de insegurança para o Advogado.

Outro ponto é a dificuldade em se estabelecer relação interpessoal fiduciária e producente durante o primeiro encontro com cliente desconhecido, preso e não raro nutrindo sentimentos ambivalentes (v.g. desconfiança, medo, raiva etc.), em razão da suspeita da autoria de crime e subsequente prisão. Tais condições adversas podem dificultar a obtenção de informações imprescindíveis para delinear a estratégia de atuação da defesa técnica.

Destarte, o interrogatório policial é ato consideravelmente menos formal e regulado do que o interrogatório judicial, não havendo definição legal clara das hipóteses que autorizam a intervenção do Advogado.

Outro aspecto digno de nota é que, em sede policial, inexiste árbitro imparcial para mediar a intervenção do Advogado, como ocorre em juízo. Ao contrário, há uma dinâmica discursiva assimétrica (assymetrical discursive dynamic), decorrente do controle exercido pela autoridade policial sobre o fluxo, a estrutura e os tópicos da comunicação, além das oportunidades de intervenção dos demais participantes do ato administrativo.

Não é incomum que a autoridade policial seja refratária a quaisquer teorias do caso alternativas à hipótese objeto da investigação policial, tratando o Advogado com desconfiança por vê-lo como um adversário que pode causar embaraços à investigação (v.g. orientando o interrogando a permanecer em silêncio etc.).

Assim, as autoras do artigo em resenha defendem a modernização dos tradicionais conteúdos dos programas de formação e treinamento do Advogado criminalista.

Os principais pilares dessa reestruturação são os seguintes: (i) desenvolvimento de habilidades de comunicação e relação interpessoal — consideradas por clientes tão importantes quanto o conhecimento jurídico e a experiência — para viabilizar uma relação advogado-cliente fiduciária e produtiva; (ii) foco na reflexão pessoal crítica sobre práticas profissionais e valores éticos e morais, como parte de contínuo processo de aprendizado; (iii) estímulo às práticas colaborativas de aprendizado da prática advocatícia, em comunidades que proporcionem oportunidade de discussão, intercâmbio de experiências e revisão crítica de colegas; (iv) implementação de treinamento interprofissional de Advogados e policiais, para fomentar melhor compreensão sobre procedimentos e rotinas policiais e maior grau de colaboração e confiança entre esses dois grupos.

As autoras concluem que essa nova compreensão sobre as habilidades de comunicação e relação interpessoal do advogado é de fundamental importância para auxiliá-lo a atuar de forma mais efetiva na fase de investigação preliminar do crime.

Entre nós, o artigo em digressão é interessante para ilustrar a necessidade de se aprofundar o debate público qualificado sobre: (i) o papel do Advogado durante a investigação preliminar do crime; (ii) a defasagem do tradicional marco de educação e treinamento do Advogado na prática jurídica penal, focado em habilidades relacionadas ao contencioso judicial.


SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión del derecho penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Montevideo: B de f, 2008.

Wherever constitutional and legal traditions so allow, the procedure of “guilty pleas”, whereby an alleged offender is required to appear before a court at an early stage of the proceedings in order to state publicly to the court whether he accepts or denies the charges against him, or similar procedures, should be introduced. In such cases, the trial court should be able to decide to do without all or part of the investigation process and proceed immediately to the consideration of the personality of the offender, the imposition of the sentence and, where appropriate, to decide the question of compensation.

TEDH, caso Natsvlishvili e Togonidze vs. Geórgia, sentença de 08.09.2014, §§ 62-75.

BACHMAIER, Lorena. The European Court of Human Rights on negotiated justice and coercion, In: European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, n. 26, pp. 236-259, 2018.

PIVATY, Anna et al. Contemporary criminal defense practice: Importance of active involvement at the investigative stage and related training requirements, In: International Journal of the Legal Profession, v. 27, n. 01, pp. 25-44, 2020.

TEDH, caso Salduz vs. Turquia, sentença de 27.11.2008, §§ 50-55. Nas pegadas desse precedente, o Parlamento Europeu e o Conselho promulgaram a Diretiva nº. 2013/48/EU, regulamentando o direito do acusado de acesso a Advogado em procedimentos criminais e execuções de mandados de detenção europeus, e o direito do preso à comunicação com terceiros e autoridades consulares.

SUPRALAT é um acrônimo em língua inglesa, derivado de “Strengthening suspects’ rights in pre-trial proceedings through practice-orientated lawyers’ training” (“Fortalecendo os direitos de suspeitos em procedimentos pré-julgamento pelo treinamento orientado à prática de Advogados”). Esse treinamento foi criado por equipe multidisciplinar de Advogados, criminólogos, psicólogos e educadores vinculados às Universidades de Maastricht, da Antuérpia e de Dublin, além do Hungarian Helsinki Committee, já tendo sido realizado por centenas de Advogados de diversos países (Bélgica, Hungria, Irlanda, Holanda, Escócia etc.). Para maiores informações, ver: www.salduzlawyer.eu

 é advogado criminalista, sócio do Mirza & Malan Advogados e professor da Uerj e da UFRJ.

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Raphaela da Silva: Renegociação dos contratos de locação

Como forma de frear a disseminação do novo coronavírus e evitar um colapso na economia brasileira, o governo brasileiro vem, quase que diariamente, editando leis, emitido decretos, portarias e Medidas Provisórias para impor medidas preventivas e restritivas, resultando, entre outras coisas, na redução de circulação de pessoas nas ruas, o fechamento de cinemas e teatros, bares, lojas, shopping centers, de pontos turísticos, de escolas, fronteiras e estabelecimentos públicos, na redução do movimento de clientes nos restaurantes, priorizando o serviço de delivery, com entrega sem o contato físico, além do isolamento social. Estão apenas permitidas aquelas atividades essenciais previstas no Decreto nº 10.282, de 20 de março. Medidas essas que repercutem negativamente na economia brasileira.

A realidade atual de restrições de circulação de pessoas impostas pelo governo, não apenas o brasileiro, mas de todos os países, fez com que a população se adaptasse ao home office. Diante disso, os espaços físicos de trabalho (sejam alugados, sejam próprios) não estão sendo utilizados temporariamente, mas o aluguel continua devido, assim como os demais encargos de um imóvel. Diante do desequilíbrio econômico-financeiro contratual em função do impacto causado pelo desaquecimento da economia, é impossível não pensar na redução de receita e custos.  

Nesse cenário, é nítido notar que a relação locatícia é diretamente afetada, tornando-se necessária a renegociação dos aluguéis, para assim evitar a rescisão do contrato de locação ou o despejo por falta de pagamento de aluguel e demais encargos, nos termos do inciso III do artigo 9, do inciso I do artigo 23 e do inciso IX do parágrafo primeiro do artigo 59, todos da Lei no. 8.245/91 (Lei de Locações).

Os contratos de locação em geral preveem índices de reajustes anuais do aluguel. Por outro lado, os artigos 17 e 18 da Lei de Locações estabelecem que a convenção do aluguel é livre entre as partes envolvidas e traz a possibilidade do locador e locatário, de comum acordo, negociar de boa-fé um novo valor de aluguel e modificar a cláusula de reajuste anual. Portanto, a liberdade e a autonomia das partes de estipular livremente as condições do contrato de acordo com seus interesses só reforça a necessidade de locadores e locatários de tentar a renegociação amigável, de acordo com a função social do contrato prevista no artigo 421 do Código Civil [1].

De acordo com a definição ampla e genérica do artigo 393 da Lei 10.406/02 (Código Civil), as hipóteses de caso fortuito ou força maior geram efeitos que são possíveis de evitar ou de impedir e, sendo configurada, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles se responsabilizado. A pandemia da Covid-19, que fez com que governos emitissem determinações de fechamento de shoppings centers, parece-nos se caracterizar como caso fortuito ou força maior, sendo a pandemia um fato imprevisto e superveniente à locação.

Outro fator importante é com relação às medidas que vêm sendo tomadas no âmbito dos condomínios edilícios quanto à prevenção da contaminação pelo coronavirus. Pode-se entender que o condomínio edilício é a união entre a propriedade exclusiva (apartamento, sala, loja) com a propriedade condominial (áreas comuns dos condôminos, como piscina, salão de jogos, banheiro) [2]. A área de uso comum é também de propriedade do condômino da unidade imobiliária e possui o direito de usar e fruir livremente das suas unidades, conforme artigo 1.335 do Código Civil.

Com o isolamento social e a solicitação de evitar aglomerações, muitos condomínios têm adotado a proibição ou restrição do uso das áreas comuns [3] e surgem os questionamentos sobre o pagamento de aluguel e do condomínio. Apesar da pandemia, há um rateio das suas despesas ordinárias (tais como faturas de energia elétrica, água, gás, o pagamento dos funcionários) e a necessidade de arrecadar o percentual correspondente a cada morador. Caso não consiga negociar amigavelmente com o locador ou com administração do condomínio, é possível recorrer ao Judiciário para pedir a redução do aluguel e da taxa condominial? Quais são as consequências se não conseguir pagar integralmente?

De acordo com a Teoria da Imprevisão dos Contratos (Rebus sic stantibus), no ordenamento jurídico brasileiro é possível que um contrato seja alterado, sempre que as circunstâncias que envolveram a sua formação não forem as mesmas no momento da execução da obrigação contratual, de modo a prejudicar uma parte em benefício da outra. Portanto, não basta que a pandemia da Covid-19 seja imprevisível e inevitável, a comprovação do nexo causal entre a pandemia e o não cumprimento do contrato é fundamental para aplicação da teoria.

Para reforçar a questão da relação da força maior com o não cumprimento da obrigação, no dia 3 de abril os senadores votaram e aprovaram o texto do Projeto de Lei N° 1179/2020 [4], com os devidos ajustes, que seguirá para votação da Câmara dos Deputados.

O projeto atualiza uma série de normas jurídicas para adequá-las, temporariamente, à crise do coronavírus e apenas suspende os efeitos de determinados artigos, pois são medidas temporárias e transitórias diante da emergência da saúde pública, isto é, nenhum artigo será revogado (artigos 1º e 2º do Projeto de Lei). Ainda, é importante também chamar a atenção para o texto do artigo 6º do Projeto de Lei, pois destaca-se que os efeitos jurídicos não retroagirão ao momento anterior à pandemia, ou seja, a força maior não retroage em hipótese alguma para que não haja vantagem indevida para uma das partes.

Na Alemanha, por exemplo, foi elaborada e publicada em 27 de março uma lei denominada Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia do Covid-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal, a qual estabelece, entre outras medidas, que durante a pandemia: I) o aluguel é devido, mas o locador não pode exigir o pagamento e nem denunciar o contrato por esse motivo; II) o locador só não pode despejar o inquilino em mora por falta do pagamento dos alugueis vencidos no período de abril a junho de 2020 (período de crise); e III) o locatário deverá demonstrar o nexo de causalidade entre a pandemia da Covid-19 e a ausência da prestação.

No Brasil, no caso de não acontecer uma renegociação amigável, é possível que o locatário recorra ao Judiciário para reduzir ou suspender os pagamentos durante o período de pandemia. No entanto, há uma divergência nas decisões da Justiça quanto ao deferimento desses pedidos. Enquanto o entendimento, por exemplo, do relator e desembargador senhor Arantes Theodoro do Tribunal de Justiça de São Paulo (36ª Câmara de Direito Privado) é de que “nos casos de força maior ou caso fortuito, o direito positivo autoriza a parte a resolver o contrato ou postular a readequação do valor real da prestação, mas não a simplesmente suspender o cumprimento da obrigação” [5], a 8ª e a 28ª Varas Cíveis, também de São Paulo ,atenderam aos pedidos de suspender os aluguéis [6].

Neste atual momento de incerteza econômica e nas divergências de decisões do Judiciário brasileiro, a melhor solução é a renegociação dos contratos, de boa-fé, entre locadores e locatários, de forma a beneficiar as partes envolvidas para reequilibrar a relação contratual e evitar um efeito dominó de perdas na economia brasileira.

 


[1] “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Raphaela Esperança Moreira da Silva é advogada do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados.