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Juiz manda tirar do ar vídeo que acusa governadora de ser traficante

Ao imputar a um governador, figura pública, a prática criminosa, sem qualquer lastro probatório, há abuso do direito de liberdade de expressão, pois ofende à honra e à imagem no meio social.

Com esse entendimento, o juiz Giordano Resende Costa, da 4ª Vara Cível de Brasília, determinou que um homem tire do ar publicações ofensivas à governadora do Rio Grande do Norte Fátima Bezerra.  

O juiz não fixa multa em caso de descumprimento da medida, mas prevê que poderá ser determinado o bloqueio de contas no Facebook e Instagram.

De acordo com o processo, o homem gravou um vídeo em que chama a governadora de traficante, macumbeira e diz que ela faz “vodu contra o presidente Bolsonaro”. Depois, durante manifestação em Brasília no dia 26 de abril, usou um carro de som para atacar os governadores, dentre eles Fátima Bezerra.

Na decisão desta segunda-feira (18/5), o juiz considera que a situação é surreal. “Se não bastasse dizer em voz alta, o requerido ainda conseguiu registrar e divulgar as informações por meio das redes sociais”, pontua o magistrado.

Ele aponta ainda que embora a censura seja proibida, se notícias ou opiniões veiculadas forem “inexatas ou falsas”, agindo com dolo ou culpa, deverão estar submetidas a sanções previstas na Constituição e a reparação civil.

“O ato não se trata de censura, mas que lutar pelas suas ideias também não significa ausência de limites e a possibilidade de sair afrontando e desrespeitando a todos, e que o excesso/abuso de direito é algo que deve ser combatido para que outros direitos não sejam lesados em nome de uma liberdade de expressão que desconhece limites”, afirma.

A governadora foi representada pelo escritório Aragão e Ferraro Advogados.

Clique aqui para ler a sentença

0714358-56.2020.8.07.0001

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Suicídio de preso em delegacia não gera responsabilidade do Estado

Filho de preso que cometeu suicídio em delegacia ajuizou ação por danos morais
Reprodução

O juízo da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal negou, por unanimidade, provimento ao recurso do autor e manteve a decisão da 5ª Vara da Fazenda Pública que julgou improcedentes os pedidos de danos morais e materiais por conta de suicídio de preso em uma delegacia de polícia no Distrito Federal.

Na ação, o autor alega que seu pai se envolveu em um acidente de trânsito com um veículo de um policial militar. Ele (pai do autor) estava alcoolizado e foi preso em flagrante. Segundo a inicial, os policiais, mesmo tendo constatado a situação de desespero do pai  — que temia perder o emprego de motorista —, o deixaram sozinho em uma cela.

Os desembargadores da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, por unanimidade, negaram provimento ao recurso do autor e mantiveram decisão da 5ª Vara da Fazenda Pública, que julgou improcedentes os pedidos de danos morais e materiais, decorrentes de suicídio de preso em cela de delegacia da polícia do DF, uma vez que configurado fato imprevisível.

Enquanto aguardava o pagamento da fiança, o pai do autor da ação acabou cometendo suicídio. Em razão disso, o filho ajuizou pedido de indenização por falha do estado em garantir a segurança e a integridade física do seu pai enquanto estava preso.

Na 1ª instância, o juízo apontou que, no caso, a responsabilidade do Estado restou afastada em razão da imprevisibilidade do ato extremo de suicídio. “No caso em apreço, conforme as provas colacionadas aos autos, não há previsibilidade de que o preso praticaria o autoextermínio. O evento deve ser previsível para que o Poder Público possa adotar medidas para evitar o dano e, dessa forma, configurar a omissão estatal.”

Ao analisar o recurso, os desembargadores ratificaram a decisão de 1ª instância e mantiveram a sentença. “No caso em apreço, conforme as provas colacionadas aos autos, não há previsibilidade de que o preso praticaria o autoextermínio. O evento deve ser previsível para que o Poder Público possa adotar medidas para evitar o dano e, dessa forma, configurar a omissão estatal.”.

0708913-74.2018.8.07.0018

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Taís Vaz: O sistema constitucional de crises e a Covid-19

O mundo atravessa uma época sombria, de rotina e ações inéditas. O indivíduo se força a ficar em casa, pela sua própria sobrevivência, com a interrupção de sua rotina habitual. D’outro lado, o Estado busca meios de passar pelo momento de crise sanitária e econômica, de nebuloso horizonte.

Fato é que, inegavelmente, nós nos encontramos em um momento de crise. E, para contextos como o atual, a Constituição Federal de 1988 traz o que a doutrina denomina de sistema constitucional das crises, composto pelas também apelidadas Válvulas de Panela de Pressão.

Esse sistema foi construído com o intuito de retomar a estabilidade em casos de tumulto institucional. São medidas excepcionais modeladas para situações de crise, como meios de resposta a determinadas anormalidades, restritas a certos locais e períodos. Por isso, regem-se pelos princípios da necessidade e da temporariedade.

A doutrina enumera como hipóteses: a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio. A primeira afasta a autonomia de determinado ente federativo, por meio da intervenção da União, nas hipóteses taxativamente previstas no artigo 34 da Constituição, com o fim de cessar conduta do ente atingido que comprometa a estabilidade institucional. As outras duas se prestam ao restabelecimento da ordem pública e paz social, às quais se restringe a presente análise.

A decretação dos estados de defesa e de sítio são de competência privativa do presidente da República, após oitiva dos Conselhos da República e da Defesa Nacional órgãos de consulta do presidente, cujo pareceres não têm caráter vinculativo. Ocorre que, diferentemente do estado de defesa, o estado de sítio pressupõe prévia aprovação do Congresso Nacional acerca da decretação por parte do presidente. Nesse caso, não havendo a aprovação, o presidente está impedido de decretá-lo.

O estado de defesa, assim como o estado de sítio, repercute em uma situação de legalidade extraordinária. Ou seja, a Administração Pública, dentro desse contexto, está autorizada a atuar em certas situações, independentemente da existência de lei, em lógica contrária à regra geral da observância do princípio da legalidade, segundo o qual toda a atuação da Administração Pública deve obediência ao previsto na lei.

Outra distinção reside no seu tempo de duração. Enquanto o estado de defesa pode ser decretado por período de até 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, uma única vez, o estado de sítio pode ser, inicialmente, decretado por 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, quantas vezes for necessário.

A decretação do estado de defesa deve estar fundada em uma das duas hipóteses do artigo 136 da Constituição: grave e iminente instabilidade institucional que ameace a ordem pública ou a paz social; ou manifestação de calamidade de grandes proporções na natureza que atinja a ordem pública ou a paz social.

Depois de ouvidos os órgãos de consulta supramencionados, o presidente da República instaura o estado de defesa por meio de decreto, que especifica as áreas abrangidas e as medidas a serem adotadas.

O decreto presidencial, então, deve ser submetido à apreciação do Congresso Nacional em até 24 horas, acompanhado da sua respectiva justificação. Em dez dias, o Congresso deve apreciá-lo e deliberar sobre a questão por maioria absoluta. Entendendo pelo seu descabimento, a medida deve ser cessada.

Durante o estado de defesa, algumas medidas anormais podem ser adotadas, conforme previsão do artigo 136, §1º, inciso I, da Carta Magna. São elas: restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondências e comunicações, bem como ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos por parte da União, nos casos de calamidade pública.

O decreto do estado de sítio, por sua vez, possui como pressupostos: comoção grave de repercussão nacional, ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia das medidas tomadas em prévio estado de defesa ou declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Durante a sua vigência, podem ser adotadas medidas ainda mais restritivas, como obrigação de permanência em determinadas localidades, restrições à prestação de informações e liberdade de imprensa, suspensão da liberdade de reunião, busca e apreensão em domicilio, intervenção nas empresas de serviços públicos e requisição de bens.

Ante todo o aqui exposto, indaga-se: diante de um sistema constitucional de crises, não seria proveitoso a sua utilização no momento atual de Covid-19? De fato, estamos em um contexto de calamidade pública expressa, com necessidades eminentes de isolamento e resguarde, que se mostram necessários para a superação desta crise do modo menos lesivo possível.

Todavia, diante de um governo de perfil eminentemente populista, de extrema preocupação com a economia e resistência expressa acerca do isolamento social, evidente que não seria de grande valia a decretação de um estado de defesa ou de sítio.

De outro lado, à parte de qualquer ideologia ou plano de ação, a adoção desse sistema constitucional de crise implica na incidência de efetivos controles políticos e judiciais, concomitantes e posteriores. Exemplos disso são os artigos 140 e 141 da Constituição.

Esses dispositivos preveem a designação de comissão especial de congressistas para fiscalizar a execução das medidas adotadas, bem como a obrigação de o presidente da República, ao final desses estados excepcionais, remeter ao Congresso mensagem com a especificação e justificação das providências adotadas.

Nem poderia ser diferente. A excepcionalidade de tais estados advém da possibilidade de adoção de condutas estatais restritivas de direitos individuais. E, diante da relevância de tais direitos, mormente em uma sociedade fundada na dignidade da pessoa humana, é muito tênue a linha divisora do necessário à superação de um estado de crise e da efetiva violação de direitos fundamentais. Este último cenário poderia, por si só, configurar crime responsabilidade do presidente da República e causar seu impeachment.

Por isso, a decretação desses estados de excepcionalidade, naturalmente, carregam consigo um temor natural de responsabilização por parte do presidente da República, que pode, tentando acertar, cair em erro e cavar sua própria cova. Isso se torna ainda mais fácil quando diante de uma realidade atípica, que demanda ineditismo e celeridade nas condutas estatais e, portanto, mais suscetíveis a erros.

Ante o exposto, paira o questionamento sobre a conveniência de uma decretação de estado de defesa ou de sítio no contexto atual, bem como se tais mecanismos se mostram convidativos ao governo atual ou mesmo a qualquer outro, diante do seu elevado grau de risco de responsabilização.

 é advogada autônoma em Salvador e pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão.

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Renzzo Ronchi: A judicialização da saúde durante a pandemia

No sistema jurídico brasileiro sempre houve uma flagrante falta de uniformidade nas da Justiça e uma dificuldade de se identificar com clareza qual é o entendimento de um tribunal sobre um tema específico, frente à ampla gama de decisões em diferentes sentidos tratando sobre a mesma matéria.

Desse modo, um dos objetivos do novo Código de Processo Civil (NCPC) foi expressamente estabilizar e uniformizar a jurisprudência, tendo pontuado a comissão de juristas que a segurança jurídica fica comprometida com a “brusca e integral alteração do entendimento dos tribunais sobre questões de direito” [1].

Nessa linha, o artigo 926 do NCPC ficou redigido assim: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

O dispositivo legal prevê, assim, deveres gerais para os tribunais no âmbito do desenvolvimento de um sistema de precedentes, sendo eles: I) o dever de uniformizar sua jurisprudência; II) o dever de manter essa jurisprudência estável; III) o dever de integridade; IV) o dever de coerência e V) o dever de dar publicidade adequada aos seus precedentes [2].

Com efeito, em 23 de maio de 2019 o Supremo Tribunal Federal julgou o ED no RE nº 855.178/SE (com repercussão geral, relator ministro para  acórdão Edson Fachin), ocasião em que reafirmou a tese de que a responsabilidade dos entes estatais é solidária nas demandas prestacionais na área de saúde, competindo à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

A ementa do acórdão foi publicada recentemente, na data de 16 de abril de 2020, contendo o seguinte teor:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PRECEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, relator ministro Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos” (ED no RE nº 855178/SE, relator ministro LUIZ FUX, relator p/ acórdão: ministro Edson Fachin, Pleno, julgado em 23/5/2019, DJe de 15/4/2020). (grifos do autor) 

Embora tenha sido confirmada a solidariedade dos entes federativos pela prestação de saúde, fato é que no plenário do Supremo Tribunal Federal prevaleceu a orientação de que se fez necessário promover desenvolvimento da tese firmada no julgamento do AgR na STA nº 175/CE, relator ministro Gilmar Mendes, no sentido de que as políticas públicas de saúde devem ser prestigiadas e, consequentemente, as regras administrativas de repartição de competências também devem ser objeto de atento exame pelo magistrado.

O desenvolvimento da tese firmada que não se confunde com a figura da superação do precedente (overruling) justificou-se, conforme disse o próprio ministro Edson Fachin em seu voto, pelo fato de que “desde a realização da audiência pública em matéria de saúde e o julgamento da STA 175 passaram-se quase dez anos, em cujo lapso se inseriram diversos fenômenos correlatos à judicialização de prestações sanitárias, incluindo, neste rol, a criação do Fórum Nacional de Saúde no âmbito do CNJ. Além disso, houve: I) aumento da judicialização em matéria da saúde; II) desestruturação do SUS; III) sobreposição ou ausência de cumprimento de decisão judicial”.

Assim, a tese vencedora, que constou no voto do mininstro Edson Fachin, ficou redigida com o seguinte teor:

Partindo do exame das espécies de tutela examinadas na STA 175, é possível estabelecer condicionantes para a admissão das respectivas ações. Quando a pretensão veicular pedido de entrega de medicamento padronizada, a competência estatal é regulada por lei, devendo figurar no polo passivo a pessoa política com competência administrativa para o fornecimento do medicamento, tratamento ou material. Quando o medicamento não for padronizado, a União deve compor o polo passivo da lide. Além disso, a dispensa judicial de medicamentos, materiais, procedimentos e tratamentos pressupõe ausência ou ineficácia da prestação administrativa e a comprovada necessidade, observando, para tanto, os parâmetros definidos no artigo 28 do Decreto Federal nº 7.580/11. Base constitucional: o direito à saúde (artigo 196 e ss. da CRFB); repartição federal de competências (artigo 23, I e II, da CRFB).” (grifos do autor)

Como se percebe, houve uma mudança significativa no tratamento da matéria, pois, embora continue existindo a solidariedade entre os entes estatais para o acionamento do Poder Judiciário o que se fez para garantir a máxima proteção ao paciente enfermo, que pouco conhece do intrincado sistema de saúde , o magistrado, doravante, deve observar as regras de repartição de competências sanitárias ao direcionar o cumprimento da obrigação.

Em outros termos, isso significa que todos os entes da federação podem integrar o polo passivo do processo, mas o direcionamento da obrigação, que é feito pelo juiz, deve atentar-se para as regras de repartição de competências sanitárias.

De fato, a ementa desse acórdão não espelhou, com fidelidade, as questões que foram decididas pelo Supremo Tribunal Federal, mas isso não quer dizer que as teses, em si, não devam ser observadas, até porque a ementa é apenas uma síntese do julgamento.

Aliás, a ementa contém até mesmo um pequeno equívoco ao mencionar no final que a relatoria do julgamento no RE nº 657.718/MG ficou a cargo do ministro Alexandre de Moraes quando, em verdade, a redação do acórdão ficou sob a responsabilidade do ministro Roberto Barroso, que teve a tese vencedora. Tratando-se de um erro material, pode ser corrigido até mesmo de ofício.

Apenas a título de ilustração, em 2010, quando foi publicado o acórdão do julgamento realizado no AgR na STA nº 175/CE, relator ministro Gilmar Mendes, a ementa também não espelhava, com toda sua profundidade, as questões que foram examinadas pelo plenário da Suprema Corte, sendo necessária a leitura do voto proferido pelo relator para a perfeita compreensão da matéria.

Nesse ponto, realizado o julgamento do ED no RE nº 855.178/SE, que define ser do magistrado a responsabilidade pelo direcionamento da obrigação, cumpre enfatizar, nesse sentido, que a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), em seus artigos 16, 17 e 18, regulamenta a responsabilidade comum e define atribuições entre a direção nacional, a direção estadual e a municipal da saúde.

Por sua vez, o artigo 19-U da lei orgânica da saúde reforça a distribuição de competências, estabelecendo que a responsabilidade financeira pelo fornecimento de medicamentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite”.

O artigo 10 da Resolução nº 1/2012 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) reforça a repartição de competência prevista na Lei Orgânica da Saúde. Por outro lado, a Portaria nº 1.555/2013 regulamenta a competência dos municípios para o componente básico de assistência farmacêutica, enquanto a Portaria nº 1.554/2013 define a competência dos Estados e da União para o componente especializado de atenção farmacêutica.

O Decreto nº 7.508/2011, como norma reguladora da Lei nº 8.080/1990, é o diploma legal responsável pelo direcionamento das ações e serviços de saúde, disciplinando a responsabilidade de cada ente político (União, estados, Distrito Federal e municípios).

Municípios são responsáveis pela atenção básica e pelo fornecimento dos medicamentos do componente básico de atenção farmacêutica, ao passo que estados e União são os responsáveis pela média e alta complexidades e pelo componente especializado e estratégico de atenção farmacêutica.

A Rename (relação nacional dos medicamentos essenciais), aprovada pela Resolução CIT nº 1/2012, atualizada periodicamente a cada dois anos, conforme Portaria nº 3.047/2008, é considerada o principal instrumento que fixa regras de repartição de competência e distribuição de atribuições.

Dessa forma, em se tratando de cumprimento de política pública, o magistrado poderá se nortear segundo esses diplomas normativos que integram o complexo sistema jurídico sanitário.

Situação diferente, no entanto, ocorrerá quando a demanda judicial pleitear tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas.

Para essas hipóteses, o ministro Edson Fachin, em seu voto, foi enfático ao pontuar que “a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (artigo 19-Q, Lei 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação”.

De fato, a presença da União no polo passivo poderá esclarecer, entre outras questões: a) se o medicamento, tratamento ou produto tem ou não uso autorizado pela Anvisa; b) se está ou não registrado naquela agência; c) se é ou não padronizado para alguma moléstia e os motivos para isso; e d) se há alternativa terapêutica constante nas políticas públicas, etc.

Com efeito, tal posicionamento privilegia o Enunciado n° 78 do Comitê Executivo do Fórum de Saúde do Conselho Nacional de Justiça, o qual dispõe que “compete à Justiça Federal julgar as demandas em que são postuladas novas tecnologias ainda não incorporadas ao Sistema Único de Saúde SUS”.

Perceba-se que a tese firmada no ED no RE nº 855.178/SE é diversa daquela assentada no julgamento do RE 657.718/MG, relator ministro para acórdão Roberto Barroso, que versou sobre o debate acerca da obrigação do Estado de fornecer medicamento sem registro na Anvisa. Isso porque no primeiro julgamento ficou definido que, em se tratando de demanda judicial pleiteando tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas, a União deve também compor o polo passivo. Isso irá ocorrer sem o prejuízo dos outros entes federados também integrarem o processo, considerando a responsabilidade solidária. No segundo julgamento, contudo, por se tratar de medicamento sem registro na Anvisa (órgão federal), o STF entendeu que a demanda deve ser ajuizada somente contra a União.

Feitas essas considerações, incumbe aos tribunais e juízes brasileiros observarem as teses firmadas pela Suprema Corte do nosso país no julgamento do ED no RE nº 855.178/SE, relator ministro para acórdão Edson Fachin, haja vista que o artigo 926 do Código de Processo Civil preocupou-se em sistematizar a aplicação dos precedentes, apostando na criação de um ambiente decisório mais isonômico e previsível.

Além disso, em tempos de pandemia, é absolutamente necessário que tribunais e juízes produzam decisões que gerem segurança jurídica, ainda mais em prestações de saúde que lidam com o tema sensível da escassez de recursos.

Se é inquestionável que o direito à saúde é fundamental, por outro lado não se pode desconsiderar que sua concretização é garantida mediante políticas sociais e econômicas, sendo certo que o acesso às ações e serviços é feito de modo igualitário e universal conforme a realidade orçamentária de cada ente federativo.

Conforme Stephen Holmes e Cass Sunstein, “ignorar os custos é deixar certas trocas dolorosas fora do nosso campo de visão” [3].

O custo dos direitos é um tema que não pode ser relegado a segundo plano, haja vista que a concretização dos direitos fundamentais de caráter prestacional deve ser realizada à luz das possibilidades financeiras do Estado, sob pena de se criar seletividade e violação ao princípio da isonomia, favorecendo-se determinadas pessoas, que ingressam com demandas judiciais, em detrimento de toda a coletividade.

A harmonização dos julgados é fundamental para um Estado de Democrático de Direito, pois tratar as mesmas situações fáticas com a mesma solução jurídica resulta na preservação do princípio da isonomia, além do que também gera segurança jurídica, uma vez que evita longos debates sobre a matéria, permitindo, assim, que todos se comportem conforme o Direito.

Não bastasse isso, a uniformização da jurisprudência contribui para melhorar a credibilidade da imagem do Poder Judiciário, pois afasta o modo irracional de administrar a Justiça, sobretudo em um momento crítico como esse que o país está atravessando. Ademais, as ideias de unidade do Direito e de precedentes obrigatórios colaboram para o fortalecimento do Poder Judiciário enquanto instituição [4].

Em tempos de pandemia da Covid-19, caraterizada por uma crise sanitária e econômica de proporção mundial, a judicialização da saúde precisa ser racionalizada, sob pena de colapso do sistema sanitário e ineficácia das decisões judiciais.

 


[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Volume 2. 10ª edição. Salvador: JusPODIVM, 2015.

 é juiz de Direito do TJ-MG, de entrância especial, titular do Juizado Especial Cível, Criminal e da Fazenda Pública de Teófilo Otoni, 2º titular da 1ª Turma Recursal do Grupo Jurisdicional de Teófilo Otoni, professor do curso de Direito da Faculdade Doctum-Teófilo Otoni, mestrando em Direito Processual Constitucional pela Universidad Lomas de Zamora, na Argentina e pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG.

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Lewandowski: Agente público não deve ter carta branca

*Artigo originalmente publicado na edição deste domingo (17/5) do jornal O Globo.

Ian Fleming (1908-1964), soldado, jornalista e escritor inglês, imortalizou-se pela criação do personagem James Bond, membro do serviço secreto britânico, codinome 007, protagonista de vários romances e filmes que alcançaram grande sucesso de público e crítica.

De acordo com seu idealizador, Bond integrava um seletíssimo grupo de espiões, dotados de licença para matar, que os desobrigava de qualquer explicação caso tirassem a vida de algum inimigo da Coroa. Assim protegido, 007 executou inúmeros antagonistas, não raro com requintada crueldade e sem perder o indefectível ar blasé.

Ocorre que essa imunidade não existe no mundo real. Nenhuma nação conhecida, seja ela democrática, autoritária ou despótica, concede uma carta branca a seus agentes para eliminar adversários. Nem mesmo na guerra os beligerantes podem agir sem limitações, pois sua conduta é regida por tratados e convenções de natureza humanitária. Restabelecida a paz, os abusos são julgados e punidos por tribunais domésticos ou internacionais.

Não obstante, de uns tempos para cá, pretende-se introduzir no ordenamento jurídico pátrio uma singular excludente de ilicitude para os integrantes das corporações armadas. Uma primeira tentativa, abrigada no chamado “pacote anticrime”, que instituía o perdão para crimes cometidos sob influência de medo, surpresa ou violenta emoção ou, ainda, em face de virtual agressão, foi resolutamente rechaçada pelo Congresso Nacional.

No ano passado, enviou-se ao Parlamento outra propositura assemelhada. Dela consta que o militar ou policial, participante de uma operação para a garantia da lei e da ordem, age em legítima defesa presumida quando repele injusta agressão, presente ou potencial, definida como tentar ou praticar as seguintes condutas: terrorismo; morte ou lesão corporal; restrição à liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça; porte ou utilização ostensiva de arma de fogo.

Consta ainda que o autor só é responsabilizado criminalmente se agir com excesso doloso. Mesmo assim, a pena poderá ser atenuada pelo juiz. A prisão em flagrante passa a ser proibida e a preventiva apenas será decretada em circunstâncias excepcionais. Em todas as situações, a Advocacia-Geral da União fará a defesa dos acusados.

Ora, o Código Penal vigente há várias décadas já contempla, em seu artigo 23, a exclusão de ilicitude. Segundo o dispositivo, inexiste crime quando alguém pratica o fato em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. O artigo 25, por sua vez, esclarece que age em legítima defesa quem, fazendo uso moderado dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem.

Esse arcabouço legal, replicado nos artigos 42 e 44 do Código Penal Militar, sempre foi suficiente para que as autoridades incumbidas da segurança pública dessem conta de sua delicada missão, com prudência e serenidade, sem colocar em risco a vida ou integridade física dos cidadãos para cuja proteção foram instituídas.

Há poucos dias, seguindo a mesma lógica das iniciativas precedentes, editou-se uma medida provisória, desta feita para isentar de responsabilidade, nas esferas civil e administrativa, os agentes estatais que praticarem atos relacionados ao enfrentamento dos efeitos sanitários, econômicos ou sociais decorrentes da pandemia desencadeada pela Covid-19, salvo se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro.

Nossos parlamentares certamente saberão avaliar com o esperado discernimento a conveniência e oportunidade de aprovar tais inovações legislativas, atentos não apenas ao delicado momento pelo qual passa o país, mas sobretudo ao dever de salvaguardar os direitos e garantias fundamentais de sua majestade o povo brasileiro.

 é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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Vídeo de suposta conversa de Joice Hasselmann deve sair do ar

A liberdade de expressão encontra seu limite no direito à honra, privacidade e imagem de terceiros, caracterizando-se como ilícitas as manifestações de pensamento que tenham por objetivo a ofensa aos direitos de personalidade daquele a que se refere.

ReproduçãoJuíza manda retirar do ar vídeo de suposta conversa de Joice Hasselmann

Com esse entendimento, a juíza Melissa Bertolucci, da 27º Vara Cível de São Paulo, mandou retirar do ar publicações no Facebook com um suposto diálogo entre a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) e um interlocutor. Na conversa, ela teria pedido ajuda para a criação de perfis falsos para promover ataques a adversários políticos.

A defesa sustentou que, embora a mensagem de áudio seja de Joice, não tinha aquele interlocutor como destinatário, nem foi dita no contexto exibido pelo vídeo, argumento acolhido pela magistrada. Para Melissa Bertolucci, “há fortes indícios de que se trata de documento falso, a caracterizar a publicação da parte requerida como ato ilícito, em virtude da manifesta intenção de atingir a honra e imagem da parte autora”.

Sendo verossímil a alegação da deputada e “extremamente prejudicial a divulgação de notícias falsas, em virtude da possível irreparabilidade do dano causado à imagem da parte”, a juíza disse que é o caso de se determinar a retirada do vídeo das redes sociais. Ela também determinou que a operadora TIM informe os dados cadastrais do telefone que aparece no vídeo.

“Temos presenciado nos último anos uma grave irresponsabilidade de determinados grupos de pessoas, que, imbuídos de intenções absolutamente avessas ao Estado Democrático de Direito e com uma profunda carga odiosa, reverberam aos quatro cantos notícias falsas potencialmente capazes de gerar verdadeiro caos social, além de destruir reputações instantaneamente”, dizem os advogados da deputada, Tony Chalita e Flávio Henrique Costa Pereira, sócios do escritório BNZ Advogados.

Segundo os advogados, situações como essa necessitam de “resposta implacável” do Judiciário para transmitir uma mensagem pedagógica à sociedade. “Aliás, há de se lembrar que os tribunais brasileiros têm acolhido a tese de responsabilização também aos que voluntariamente compartilham conteúdos que ofendam a honra de terceiros”, completaram Chalita e Pereira.

Clique aqui para ler a decisão

1035779-92.2020.8.26.0100