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Opinião: Os planos de saúde e a jurisprudência do STJ

Os direitos correlatos à saúde repercutem em diversas vertentes da vida civil e foram enaltecidos pela Constituição Federal de 1988 como direitos sociais, inseridos no âmbito dos direitos fundamentais de segunda geração, por exigir uma prestação estatal positiva.

Com o objetivo de assegurar a proteção e a efetividade desses direitos, decorrem as mais variadas controvérsias, que, por diversas vezes, são dirimidas pelo Poder Judiciário. Trataremos, por meio do presente artigo, da visão do Superior Tribunal de Justiça em relação aos planos de saúde e à autonomia contratual.

De início, cumpre salientar que os planos de saúde estão insertos na seara do Direito Civil, haja vista que tratam de relações contratuais entre particulares. Dessa forma, comumente são oferecidas coberturas individuais, familiares, coletivas empresariais ou coletivas por adesão, de modo que cada uma satisfaz uma modalidade específica de cliente, que pode aderir ao plano para si, seus familiares, seus funcionários e até mesmo seus associados ou filiados.

Ante o amplo cenário delineado, surgem os mais variados conflitos, os quais são caracterizados, sobretudo, por uma pretensão resistida. O Superior Tribunal de Justiça, ciente do aumento exponencial das demandas correlatas aos planos de saúde, que decorre especialmente da judicialização da saúde, compilou entendimentos consignados que versam sobre a temática, os quais serão tratados por meio do presente artigo.

Uma das teses firmadas pela jurisprudência da Corte Superior é a possibilidade de o plano de saúde estabelecer as doenças para as quais serão ofertadas cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado para a cura de cada uma delas. Com arrimo nessa orientação, as operadoras devem arcar, por exemplo, com as despesas relativas ao tratamento médico domiciliar, por exemplo, de modo que a cláusula contratual que exclui tratamento domiciliar (home care) é considerada abusiva.

Nessa senda, outra tese adotada pelo Superior Tribunal de Justiça reconhece a inexistência de vedação legal ao uso de medicamentos off-label — aqueles cuja indicação do profissional assistente diverge do que consta na bula — na hipótese de haver evidências clínicas que amparem a prescrição médica.

O aludido posicionamento foi utilizado como arrimo para que as operadoras de plano de saúde sejam obrigadas a custear medicamento experimental, por exemplo, porquanto não podem limitar o tipo de tratamento a ser prescrito ao paciente.

Não obstante, o Tribunal Superior também exarou entendimento reconhecendo a abusividade da recusa da operadora do plano de saúde em arcar com a cobertura do medicamento prescrito pelo médico para o tratamento do beneficiário, seja ele off label, de uso domiciliar, ou, ainda, experimental — não previsto pelo rol da ANS — quando for necessário ao tratamento de enfermidade que seja objeto de cobertura pelo contrato pactuado.

O fundamento que subsidiou a tese alhures perpassa pela ingerência técnica que a operadora do plano de saúde faria frente a atuação médica. Afinal, de acordo com o entendimento jurisprudencial majoritário, o médico é o responsável por decidir se o tratamento é adequado à enfermidade que acomete o paciente no caso concreto, nos moldes das indicações da bula ou do manual da Anvisa.

Ademais, o tribunal pontuou que permitir que a operadora negue a cobertura de tratamento sob o argumento de que a doença do paciente não estaria contida nas indicações da bula representa inegável ingerência na ciência médica, capaz de provocar prejuízos ao paciente enfermo, além de colocá-lo em desvantagem exacerbada, nos termos do Código de Defesa do Consumidor.

Por fim, o Superior Tribunal de Justiça delimitou mais uma tese ao considerar abusiva a cláusula contratual ou o ato que importe em interrupção de tratamento de terapia ou de psicoterápico por esgotamento do número de sessões anuais asseguradas no rol de procedimento e eventos em saúde da ANS.

Isso porque foi entendido que os tratamentos psicoterápicos são contínuos e de longa duração, sendo que um número reduzido de sessões anuais não é capaz de remediar a maioria dos distúrbios mentais. Portanto, a interrupção do tratamento poderia comprometer o restabelecimento da saúde mental do usuário do plano de saúde, o que afrontaria os princípios da boa-fé e da equidade que regem as relações contratuais.

Por derradeiro, conclui-se que os posicionamentos visam a tutelar o direito à saúde não apenas no âmbito formal, mas também a concretização no plano material, observando os preceitos enaltecidos pela Carta Magna, o que vem sendo reiteradamente reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça.

 é sócio-fundador do escritório Malta Advogados, professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília (UnB) e secretário-geral da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB.

 é estagiária no escritório Malta Advogados, bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e membro do grupo de estudos “Constitucionalismo Fraternal”, sob a orientação do ministro Carlos Ayres Britto.

 é estagiário no escritório Malta Advogados e membro do Grupo de Pesquisa “Trabalho Constituição e Cidadania” (UnB-CNPq).

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O artigo 19-E da Lei 10.522 e sua retroatividade

No nosso artigo desta semana, seguiremos endereçando nossas reflexões à aplicação do novel art. 19-E, da Lei nº 10.522/02[1], sempre com o escopo de fomentar o debate científico acerca do tema, em função de sua grande relevância para os processos em julgamentos ou já julgados no âmbito do Carf.

Hoje, trataremos de outra questão controvertida: a possibilidade de aplicação do artigo 19-E aos processos administrativos já encerrados, sob o rito do Decreto nº 70.235/72[2], pelo voto de qualidade, mas cujas multas seguem sendo executadas cobradas judicialmente. Em suma: a possibilidade de sua aplicação retroativa.

No panorama atual de debate, alguns têm defendido que a regra veiculada pelo art. 19-E teria natureza de norma de direito material, em razão da invocação do art. 112 do CTN em sua “exposição de motivos”. Logo, o novo dispositivo seria apenas interpretativo do art. 112 do CTN, retroagindo, portanto, em razão do prescrito no art. 106, I, do mesmo Código[3] – posição com a qual não concordamos, tendo em vista que o referido artigo “interpretado” nada tem a ver com os critérios de resolução de empates nos julgamentos administrativos. Esse entendimento, entretanto, não contraria o argumento, defendido por muitos, de uma eficácia direta do art. 112 sobre a aplicação de sanções em casos nos quais houve dúvida subjetiva do Colegiado[4], mas apenas sustenta a inaplicabilidade do art. 106, I, do CTN.

Outro desdobramento da premissa de se tratar de uma norma de direito material, foi a proposta de sua aplicação exclusivamente para sanções mantidas por voto de qualidade, com fundamento no art. 106, II, “a” ou “c”, do CTN[5]. Essa posição tampouco nos parece prosperar, pela literal inaplicabilidade das alíneas em questão, em face dos tipos infracionais restarem inalterados após a inserção do artigo 19-E na Lei nº 10.522/02 — não há abolitio total ou parcial de qualquer regra sancionatória, muito menos o abrandamento de suas consequências normativas.

A nossa divergência, no fundo, remete à própria premissa assumida: não vislumbramos a possibilidade de adjudicarmos a uma regra que diz respeito ao resultado de julgamentos de processos administrativos federais uma estrita natureza de direito material. Ora, a regra do artigo 25, §9, do Decreto nº 70.325/72 era de regra de direito processual, e a norma que a revogou parcialmente também tem igual natureza.

As regras de direito processual, como é sabido por todos, têm a particularidade de aplicadas sempre prospectivamente (tempus regit actum), é dizer, sem retroagir sobre casos julgados no passado, conforme se verifica no artigo 14 da Lei nº 13.105/2015 (CPC) e artigo 2º do Decreto-lei nº 3.689/1941 (CPP), verbis:

Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.

Art. 2º A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

Por outro lado, é preciso também ponderar que o processo administrativo regido pelo Decreto nº 70.235/72 não se restringe à determinação e exigência de tributos, mas também é instrumento para a aplicação de sanções, tanto de natureza tributária[6] (multas de ofício ou isoladas), como também de não-tributárias (a exemplo da multa decorrente da conversão de pena de perdimento, nos casos de interposição fraudulenta na importação). O fato de eventualmente envolver a cobrança de tributos não desnatura a possibilidade de também se pôr juridicamente como um processo administrativo sancionatório.

Nesse sentido, a regra inserida pelo art. 19-E da Lei nº 10.522/02 tem uma natureza bifronte, na medida em que, ao mesmo tempo, veicula i) uma regra processual, pondo fim a um julgamento colegiado na hipótese da votação terminar empatada, de modo que o processo possa seguir seu curso procedimental lógico, e ii) também estabelece a diretriz quanto ao cumprimento (exequibilidade) ou não de uma sanção.

Assim, parece-nos que ela guarda similitude com um tipo de regra processual amplamente reconhecida e estudada na doutrina e jurisprudência processual penal, quais sejam, as normas processuais mistas ou híbridas.

Há divergências doutrinárias sobre o alcance dessa categoria de regras, o que desemboca em uma corrente mais i) restritiva e outra mais ii) ampliativa. O ponto em comum entre ambas, todavia, é a mesma premissa de que é possível encontrar no ordenamento jurídico normas que, simultaneamente, encerrem comandos de natureza processual-penal e de natureza penal-substancial[7][8].

Segundo a corrente mais restritiva, normas processuais mistas ou híbridas são aquelas que, de alguma forma, digam respeito à pretensão punitiva ou, como prefere Eduardo Espínola Filho, apresentem conteúdo de direito substancial, i.e., atribuam, virtualmente, ao Estado ou a particulares o poder de disposição do conteúdo material do processo, isto é, da pretensão punitiva, ou da pena[9].

Por sua vez, na corrente ampliativa, as normas aqui estudadas seriam aquelas que, ultima ratio, digam respeito ao substantive due process. Daí Gustavo Badaró afirmar que para tal corrente doutrinária seriam normas híbridas aquelas que estabelecem condições de procedibilidade, constituição e competência dos tribunais, meio de prova e eficácia probatória, graus de recurso, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena e todas as demais normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão[10].

Contrapondo as duas correntes doutrinárias, e mesmo adotando a linha mais restritiva de caracterização, é possível concluir que normas processuais que tratem da pretensão punitiva apresentam típico caráter de regra de direito material e, portanto, estariam sujeitas também ao regime jurídico de normas dessa natureza, incluindo aí a possibilidade de aplicação retroativa, apenas nas hipóteses em que beneficie o réu ou acusado. Esse é o entendimento dos nossos Tribunais Superiores:

1. RECURSO. Extraordinário. Pedido. Inconstitucionalidade do art. 411 do Código de Processo Penal. Dispositivo revogado pela Lei n° 11.689/2008. Perda superveniente do interesse recursal. Recurso prejudicado. O pedido da recorrente está prejudicado ante a revogação do art. 411, do Código de Processo Penal, pela Lei n° 11.689/2008, que introduziu, no art. 415, novas regras para a absolvição sumária nos processos da competência do Tribunal do Júri. 2. AÇÃO PENAL. Tribunal do Júri. Absolvição sumária imprópria. Revogação do art. 411, do Código de Processo Penal, pela Lei n° 11.689/2008. Retroatividade da lei mais benéfica. Concessão de habeas corpus de ofício. As novas regras, mais benignas, aplicam-se retroativamente. Ordem concedida para que o juízo de 1º grau examine, à luz da nova redação, se estão presentes os requisitos para a absolvição sumária, oportunizada prévia manifestação da defesa. (RE n. 602.561/SP – São Paulo. Recurso Extraordinário. Relator: Min. CEZAR PELUSO. Julgamento: 27/10/2009 Órgão Julgador: Segunda Turma).

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. LESÃO CORPORAL LEVE E GRAVE. REPARAÇÃO PELOS DANOS CAUSADOS À VÍTIMA PREVISTA NO ART. 387, INCISO IV, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA DE DIREITO PROCESSUAL E MATERIAL. IRRETROATIVIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A regra do art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, que dispõe sobre a fixação, na sentença condenatória, de valor mínimo para reparação civil dos danos causados ao ofendido, é norma híbrida, de direito processual e material, razão pela que não se aplica a delitos praticados antes da entrada em vigor da Lei n.º 11.719/2008, que deu nova redação ao dispositivo. Precedentes da Quinta Turma. 2. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp 1254742/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 22/10/2013, DJe 05/11/2013)

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. RÉU REVEL. SUSPENSÃO DO PROCESSO E DO LAPSO PRESCRICIONAL. CRIME COMETIDO ANTES DA LEI 9.271/96. INAPLICABILIDADE. Reiterada jurisprudência desta Corte no sentido de que as disposições do art. 366 do CPP, com a sua nova redação dada pela Lei 9.271/96, sendo norma de natureza híbrida, processual (suspensão do processo) e material (suspensão da prescrição), não podem ser cindidas, sendo inaplicável por inteiro o citado dispositivo legal às infrações cometidas antes da vigência da Lei 9.271/96. Precedentes. Recurso conhecido e provido. (REsp 280.656/RJ, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 13/03/2001, DJ 04/06/2001, p. 227)[11]

Ao se analisar os casos julgados pelo Carf e, portanto, sujeitos à regra do art. 19-E da Lei nº 10.522/02, é possível observar que há a apreciação da imposição de sanções (de natureza tributária ou não), como dito anteriormente, e, ao assim fazer, o Tribunal define a exequibilidade da pretensão punitiva daí decorrente. Em outras palavras, a sua decisão definitiva é condição objetiva de punibilidade dos agentes autuados. Sem tal manifestação judicativa, não é possível cobra a pena (multa) imposta pelo Estado.

Esse entendimento, ressalte-se, encontra amparo na jurisprudência do STF, em especial nos precedentes que orientaram a Súmula Vinculante nº 24[12]. Nesse sentido, por exemplo, o voto do Ministro Gilmar Mendes, no HC nº 102.477, pontua que o “a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia condição objetiva de punibilidade”, ou o HC 81.611, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, que aduz que “se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade”.

Ora, não se nega que os precedentes em questão foram julgados para analisar a procedibilidade de denúncias de crimes contra a ordem tributária, mas seus fundamentos descortinam a natureza jurídica da decisão definitiva dos processos administrativos. Se a decisão final em processo tributário é condição para a aplicação das sanções penais decorrentes dos crimes capitulados no art. 1º da Lei nº 8.137/90[13], é inegável que as sanções de natureza administrativa (tributárias ou não), constituídas por meio de ato administrativo, só poderão ser exigidas após a decisão definitiva no processo administrativo sancionatório, razão pela qual ela se põe como condição objetiva da punibilidade do agente.

Em suma, ao mesmo tempo que o art. 19-E da Lei nº 10.522/02 veicula uma norma de direito processual, ele também encerra, nos casos em que há exigências de caráter sancionatório (multas), natureza processual híbrida, na medida em que condiciona a exequibilidade da pretensão punitiva do Estado. Ainda que a incidência normativa se dê com o ato administrativo que imputou a sanção, a sua exequibilidade, em havendo contestação, fica condicionada ao conteúdo da decisão definitiva no processo administrativo.

Portanto, em se tratando de norma dessa natureza, entendemos que ela deverá retroagir para abranger  apenas as exigências de caráter sancionatório, tributárias ou não, cobradas conjunta ou separadamente de tributos, que foram mantidas, no âmbito do Carf, por meio de decisão final proferida pelo voto de qualidade, e que prosseguem sendo cobradas judicialmente, na esteira de diversos precedentes dos tribunais superiores, e por força da retroatividade benigna do art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988[14], excepcionadora do caráter prospectivo da eficácia de normas processuais deste jaez. Não obstante, ante tudo o que fora aqui afirmado, não nos parece que tal retroatividade não se aplicaria para a cobrança de crédito tributário decorrente de tributos, mesmo que tenha sido mantido por meio do voto de qualidade.

Por fim, em uma abordagem próxima, ainda que não coincidente àquela perfilhada aqui, defendendo  os reflexos do art. 19-E da Lei nº 10.522/02 no âmbito dos processos penais de crimes contra a ordem tributária, remetemos ao artigo de Fernando Hideo I. Lacerda, no qual defendeu a retroatividade da regra, afirmando que com o fim do voto de qualidade, operou-se abolitio criminis referente a todas as condutas que à época foram julgadas ilícitas pelo Carf e, segundo os critérios da lei atual, passaram a ser resolvidos favoravelmente ao contribuinte[15].

 é sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, e professor em cursos de pós-graduação.”

 é advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet.

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Carf diverge sobre tributação do ganho de AVJ não controlado

Na coluna de hoje, trataremos de uma questão bastante recente no Carf, e que se relaciona diretamente às modificações introduzidas na legislação do IRPJ e da CSLL, pela Lei nº 12.973/2014: a tributação de ganhos decorrentes de AVJ não controlado por meio de subconta vinculada ao ativo ou passivo. Antes de avançar sobre o tema, calha fazermos uma breve contextualização.

No Brasil, a adoção dos padrões internacionais de contabilidade (IFRS), por meio da Lei nº 11.638/2007, afetou diretamente as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL. Para mitigar os impactos dessas alterações sobre os contribuintes, criou-se o Regime Tributário de Transição (RTT), pela Lei nº 11.941/2009, estabelecendo, para fins fiscais, um regime de neutralidade das alterações promovidas pela Lei nº 11.638/2007, mantendo-se os parâmetros de apuração dos tributos vigentes em dezembro de 2007.

Nesse contexto, a Lei nº 12.973/2014 veio justamente fazer a adequação definitiva da legislação tributária às normas societárias e contábeis vigentes no país, extinguindo o RTT e firmando uma nova forma de apuração do IRPJ e da CSLL.

Ocorre que um dos critérios de mensuração de elementos patrimoniais que passou a ser adotado com o padrão IFRS foi o da avaliação a valor justo (AVJ) (em substituição ao critério do custo de aquisição), definido no Pronunciamento CPC 46 como “o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração”. Com isso, buscou-se evidenciar de maneira mais precisa a capacidade de geração de fluxo de caixa de cada elemento patrimonial, apresentando-se seu valor atual, e não aquele histórico.

Sob a perspectiva fiscal, entretanto, optou-se expressamente, por meio do art. 13 da Lei nº 12.973/2014, pela manutenção de uma neutralidade fiscal (ou seja, a sua não inclusão no lucro real) dos ganhos decorrentes da avaliação de elementos patrimoniais com base no valor justo, desde que o respectivo aumento no valor do ativo ou a redução no valor do passivo seja evidenciado contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo.

É de se ressaltar, que esse controle do AVJ em subconta é uma imposição da legislação fiscal, e não das práticas contábeis, posto como uma condição para o diferimento da tributação dos ganhos evidenciados por esse modelo de mensuração de elementos patrimoniais. Caso não se faça esse controle, o art. 13, §3º, da Lei nº 12.973/2014, estabelece que o ganho seja imediatamente tributado e, mais ainda, dispõe que ele não pode ser utilizado para reduzir o prejuízo fiscal do período corrente.

Pois bem, enfrentaram-se, no âmbito do Carf, autuações fiscais baseadas na ausência de controle do AVJ por meio das subcontas vinculadas aos elementos patrimoniais.

No primeiro caso localizado, julgado pelo Acórdão nº 1402-003.589 (que não tratava especificamente da aplicação do art. 13 da Lei nº 12.973/2014, mas sim do art. 66 da mesma lei, que estabelecia a adoção inicial das novas regras), no qual, por maioria de votos, afastou-se a cobrança de IRPJ e CSLL, sob o argumento de que o ganho de AVJ indica, sim, um acréscimo patrimonial, mas que ele não gozaria de disponibilidade econômica ou jurídica, necessária para fins de tributação, de acordo com o art. 43 do CTN. Ademais, o relator apontou que o contribuinte juntou laudo de consultoria evidenciando que não teria havido qualquer prejuízo ao Erário pela falta de controle do AVJ em subcontas, encampando a tese de que esse registro seria apenas uma obrigação acessória, não avançando sobre a aplicação ou não do art. 13, §3º da Lei nº 12.973/2014.

Ressalte-se, também, que o relator invoca as razões aduzidas no Acórdão nº 1402-002.501. Não obstante, nessa decisão se discutia a tributação de valores registrados em reserva de reavaliação, inclusive pontuou o relator, com acerto, que ela “não se confunde com a avaliação a preço justo, sendo instituto alheio às previsões contidas na Lei nº 12.973/2014, mesmo quando utilizadas para fins hermenêuticos.”.

Em outro caso, julgado no Acórdão nº 1301-004.091, o Recurso Voluntário foi rejeitado, por voto de qualidade.

Nele, a autuação se baseou propriamente no art. 13 da Lei nº 12.973/2014, adotando a relatora integralmente os fundamentos do Acórdão nº 1402-003.589. De maneira complementar, aduz que não obstante a regra expressa que determine a criação de subcontas, ela deve receber uma interpretação finalística, como meio de controle efetivo dos valores diferidos, “a fim de atestar que as adições e exclusões pertinentes sejam realizadas nos montantes adequados”, aduzindo que a empresa juntou laudo atestando a inocorrência de dano ao Erário.

O voto vencedor, entretanto, aduz que para o ano-calendário de 2015 (objeto da autuação) não haveria mais que se falar na neutralidade tributária estabelecida pela Lei nº 11.941/2009, vez que vigente e eficaz o novo regime fiscal. Diante disso, esclarece que a legislação é categórica em afirmar que na ausência do AVJ controlado em subcontas, o efeito tributário é a imediata tributação desses valores, e que eventual entendimento de incompatibilidade entre esse regime e o art. 43 do CTN e o conceito de renda, pressuporia a declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei nº 12.973/2014, o que é vedado aos conselheiros do Carf (Súmula Carf nº 02).

Ademais, o redator designado entendeu, ainda, que não haveria inconstitucionalidade dessa norma, tendo em vista que a reavaliação espontânea de ativos sempre esteve sujeita à sua tributação imediata, exceto nos casos em que o legislador condicionasse a não incidência de IRPJ e CSLL, nesse momento, pelo seu controle de algum modo específico, como na conta de reserva de reavaliação, conforme regime estabelecido nos arts. 434, 436 e 437 do RIR/99. Ressalta, também, que o art. 438 do RIR/99 prevê a tributação da reavaliação de participações societárias independente da adoção de qualquer controle, demonstrando que a ordem jurídica não é incompatível com a tributação da renda sem realização.

Por fim, acrescenta que a existência de laudos atestando que não houve prejuízo ao Fisco não altera o panorama estabelecido por expressa disposição legal, ressaltando que esse controle tem a finalidade de permitir ao Fisco controlar a evolução do valor desses ativos e passivos ao longo do tempo, sem necessidade de abertura de procedimentos fiscais, fomentando a eficiência da atividade fiscalizatória.

No Acórdão nº 1401-003.873, foi dado provimento ao recurso do contribuinte por maioria de votos. A relatora pontua que, apesar do contribuinte não realizar o controle do AVJ por meio das subcontas estabelecidas pela Lei nº 12.973/2014, ele teria mantido esse registro em conta de “Ajuste de Avaliação Patrimonial Imobilizado”, e que, portanto, a acusação fiscal seria falsa. Ademais, ela aponta que o contribuinte apresentou laudo técnico identificando o custo de aquisição dos bens, seu valor justo e a contabilização do IRPJ e CSLL diferidos, demonstrando que, ainda que não na forma determinada pela legislação, havia um controle contábil do AVJ.

Ressalta também que, mesmo que não houvesse o controle, a ausência da subconta não ensejaria a tributação, invocando o Acórdão nº 1402-003.589, por se tratar de mera expectativa de ganho, e não renda realizada, cabendo apenas multa por descumprimento de obrigação acessória.

Pois bem, como se vê, atualmente há poucos acórdãos sobre esse relevante tema, na jurisprudência do Carf, mas já se verifica a existência de franca divergência entre as turmas ordinárias das Câmaras Baixas.

Parte dela decorre da premissa de que a obrigação de controle do AVJ em subcontas vinculadas seria uma espécie de obrigação acessória, de modo que o seu descumprimento geraria apenas a incidência de multa. Por outro lado, há uma linha que aduz, a despeito de ser uma obrigação acessória, a legislação federal estabeleceu consequências claras para a sua infringência, qual seja a tributação imediata do valor.

Há, também, menção em todos os acórdãos à apresentação de laudos contábeis que evidenciem a inocorrência de qualquer prejuízo ao Erário, sem, entretanto, que as decisões se aprofundem em esclarecer de que modo tais documentos evidenciam isto, mormente à luz da premissa adotada de que o controle em subconta seria uma obrigação acessória, no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos, nos termos do art. 113, §2º, do CTN, cujo descumprimento, em regra, não ofende diretamente os cofres públicos. Essa discussão é assaz relevante, tendo em vista que o laudo foi utilizado como fundamento para afastar a aplicação do art. 13, §3º, da Lei nº 12.973/2014, aos casos concretos.

De certo modo, pode-se dizer que há um conflito entre uma interpretação formal e literal da legislação, e uma interpretação consequencialista, que flexibiliza a aplicação do dispositivo em razão da comprovação de ausência de dano ao Erário.

Diante disso, resta-nos acompanhar o deslinde dessa discussão nas demais turmas das Câmaras Baixas e, especialmente, na Câmara Superior de Recursos Fiscais, em razão da evidente divergência de interpretações.


Art. 13. O ganho decorrente de avaliação de ativo ou passivo com base no valor justo não será computado na determinação do lucro real desde que o respectivo aumento no valor do ativo ou a redução no valor do passivo seja evidenciado contabilmente em subconta vinculada ao ativo ou passivo.

Relator Cons. Lucas Bevilacqua, julgado em 21/11/2018.

Art. 66. Para fins do disposto no art. 64, a diferença positiva, verificada em 31 de dezembro de 2013, para os optantes conforme o art. 75, ou em 31 de dezembro de 2014, para os não optantes, entre o valor de ativo mensurado de acordo com as disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e o valor mensurado pelos métodos e critérios vigentes em 31 de dezembro de 2007, deve ser adicionada na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL em janeiro de 2014, para os optantes conforme o art. 75, ou em janeiro de 2015, para os não optantes, salvo se o contribuinte evidenciar contabilmente essa diferença em subconta vinculada ao ativo, para ser adicionada à medida de sua realização, inclusive mediante depreciação, amortização, exaustão, alienação ou baixa.

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: (…)

§ 3º Na hipótese de não ser evidenciado por meio de subconta na forma prevista no caput , o ganho será tributado.

Relator Cons. Caio Quintela, julgado em 16/06/2017.

Redator Designado Cons. Fernando Brasil de Oliveira Pinto, julgado em 17/09/2019.

Relatora Cons. Luciana Zanin, julgado em 11/11/2019.

Entretanto, há que se ponderar que essa conclusão não infirmaria o fundamento da fiscalização, pois tal controle era feito em conta do PL, e não em subconta do ativo, como determinado pela legislação.

 é sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, e professor em cursos de pós-graduação.”