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Cassação de aposentadoria e as flores de plástico

Há tempos não escrevo uma coluna sobre servidores públicos. Motivou-me a elaborar a presente o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, no Plenário Virtual de 03 a 14.04.2020, da ADPF 418, Rel. Min. Alexandre Moraes (Informativo 975), cujo objeto foi o reconhecimento da constitucionalidade dos artigos 127, IV e 134 da Lei 8.112/90, que versam sobre a penalidade de cassação de aposentadoria dos servidores públicos federais em processos administrativos disciplinares.

A ADPF 418 foi movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), as quais argumentavam, basicamente, que os artigos 127 (inciso IV) e 134 do Estatuto dos Servidores Civis da União (Lei 8.112/90) não haviam sido recepcionados pelas Emendas Constitucionais 3/93, 20/98 e 41/03, tornando-se incompatíveis com o regime contributivo e solidário da previdência dos servidores públicos.

No julgamento do STF, compreendeu-se que as referidas emendas constitucionais que estabeleceram o caráter contributivo e o princípio da solidariedade para o financiamento do regime próprio de previdência dos servidores públicos, não revogaram as disposições do Estatuto dos Servidores Públicos Federais.

A decisão do STF tem como base os seguintes argumentos:

  • As emendas inauguraram um sistemática que demanda atuação colaborativa entre o respectivo ente público, os servidores ativos, os servidores inativos e os pensionistas;

  • A contribuição previdenciária do servidor público não é um direito representativo de relação sinalagmática entre a contribuição e o eventual benefício previdenciário futuro;

  • A aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria ou disponibilidade é compatível com o caráter contributivo e solidário do regime próprio de previdência dos servidores públicos;

  • A penalidade decorre do Poder Disciplinar da Administração e a impossibilidade de aplicação de sanção administrativa a servidor aposentado resultaria em tratamento diverso entre servidores ativos e inativos, relativamente aos mesmos ilícitos, em prejuízo do princípio isonômico e da moralidade administrativa, favorecendo a impunidade.

Afora os argumentos de índole moral sustentados na decisão suprema, convém observar que o fato de o STF ter reconhecido a constitucionalidade dos dispositivos da Lei 8.112/90 não elimina as controvérsias, as quais são como as titânicas “flores de plástico” — não morrem…

Elegi duas dessas “flores” para serem versadas nesta coluna, em ordem a comprovar a veracidade da afirmativa: (a) a contagem recíproca por tempo de serviço; (b) a impossibilidade de aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria em ações de improbidade administrativa.

Contagem recíproca de tempo de serviço

A primeira “flor” refere-se ao tempo de contribuição realizado compulsoriamente pelo servidor (contribuição previdenciária é tributo) à previdência pública, em face da previsão de contagem recíproca prevista nos artigos 40, §9º e 201, §9º da Constituição da República, que continuam a refletir a mesma orientação do texto originário, independente da Emenda Constitucional nº 103, de 2019 (Reforma da Previdência).

A Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro já faz algum tempo apontou em artigo publicado nesta coluna que “há que se ponderar que, em se tratando de pena de demissão, não há impedimento a que o servidor volte a ocupar outro cargo público, uma vez que preencha os respectivos requisitos, inclusive a submissão a concurso público, quando for o caso. Se assim não fosse, a punição teria efeito permanente, o que não é possível no direito brasileiro. E não há dúvida de que, se vier a ocupar outro cargo, emprego ou função, o tempo de serviço ou de contribuição, no cargo anterior, será computado para fins de aposentadoria e disponibilidade, com base no artigo 40, parágrafo 9º, da Constituição.”

Os argumentos da ilustrada professora falam por si só. O fato de o servidor vir a ser apenado em processo administrativo disciplinar com a sanção de cassação de aposentadoria não apaga automaticamente o seu tempo de contribuição. Mesmo porque se outra atividade vier a ser por ele “prestada no setor privado ou em regime de emprego público, esse tempo de serviço ou de contribuição no cargo em que se deu a demissão tem que ser considerado pelo INSS, por força da chamada contagem recíproca, prevista no artigo 201, parágrafo 9º, da Constituição.”

Bem de ver que para que o ex aposentado venha a pleitear aposentadoria em um novo cargo público ou nos quadros do INSS, desta feita por conta do novo vínculo subordinado, terá de cumprir requisitos previstos na Constituição e na lei. Então, por exemplo, se o indivíduo sancionado pela cassação de aposentadoria vier a ocupar um novo cargo público por concurso público, terá que cumprir, a fim de se aposentar mediante contagem recíproca, “o tempo de contribuição e os demais requisitos estabelecidos em lei complementar do respectivo ente federativo”, nos termos do art. 40, III, da Constituição da República (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019).

Impossibilidade de aplicação da penalidade em ações de improbidade administrativa

A segunda “flor” refere-se à impossibilidade de aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria nas ações de improbidade administrativa.

Já tive a oportunidade de anotar que esse tipo de ação tem um colorido quase penal, asseverando que são ações de conteúdo punitivo, participantes do microssistema do Direito Administrativo Sancionador. São “ações penaliformes”, subordinadas muito mais de perto à “principiologia” típica do Direito Penal e do Processo Penal.

“[O] objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim — a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal —, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal”.

Com efeito, de acordo com o art. 37, §4º da Constituição e com o art. 12, I, II e III da Lei 8.429/92, uma das penas aplicáveis ao caso de condenação judicial transitada em julgado na ação de improbidade administrativa (art. 20 da Lei 8.429/92) é a “perda da função pública”.

Diferentemente da Lei 8.112/90 cujos artigos 127, IV e 134 da Lei 8.112/90 acabam de ser declarados constitucionais em ADPF pelo STF   a lei de improbidade simplesmente não alude à penalidade de cassação de aposentadoria.

Logo, uma vez ausente a previsão legal na Lei 8.429/92 é descabida a aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria – nullum crimen nulla poena sine lege.

A questão, portanto, no caso específico da improbidade administrativa, é antes de legalidade do que de isonomia. É que o princípio da legalidade constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal […] é um imperativo que não admite desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigências de justiça, que somente os regimes totalitários o tem negado.”

Para não dizer que não falei das flores…


A competência para legislar sobre servidores públicos estatuários, respeitados os quadrantes constitucionais, é de cada entidade federativa. É comum que se contate em muitos estatutos a inexistência de previsão legal da penalidade de cassação de aposentadoria dos servidores (v.g., Lei 869/52 do Estado de Minas Gerais).

Sobre o tema, ver a coluna “Senso Incomum” semanalmente elaborada pelo jurista Lenio Luiz Streck aqui na ConJur. O ponto de convergência dos textos do autor reside na compreensão de que o Direito não é um subproduto da moral.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. https://www.conjur.com.br/2015-abr-16/interesse-publico-cassacao-aposentadoria-incompativel-regime-previdenciario-servidores. A redação atual do art. 40, §9º da Constituição é a seguinte: “o tempo de contribuição federal, estadual, distrital ou municipal será contado para fins de aposentadoria, observado o disposto nos §§ 9º e 9º-A do art. 201, e o tempo de serviço correspondente será contado para fins de disponibilidade”. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019).

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. https://www.conjur.com.br/2015-abr-16/interesse-publico-cassacao-aposentadoria-incompativel-regime-previdenciario-servidores. A redação atual do art. 201, §9º da Constituição é a seguinte: “para fins de aposentadoria, será assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição entre o Regime Geral de Previdência Social e os regimes próprios de previdência social, e destes entre si, observada a compensação financeira, de acordo com os critérios estabelecidos em lei.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)

Não se desconhece a existência de precedentes do STJ que sustentam a possibilidade de aplicação da penalidade, como se pode ver dos seguintes arestos do STJ, EDcl no REsp 1.682.961/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA; STJ, AgInt no REsp 1.781.874/DF, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 14/05/2019; e do AgRg no AREsp 826.114/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 25/05/2016.

FERRAZ, Luciano. https://www.conjur.com.br/2020-jan-30/interesse-publico-ausencia-duplo-grau-jurisdicao-obrigatorio-acoes-improbidade.

Voto do Ministro Teori Albino Zavascki no RECURSO ESPECIAL Nº 885.836 – MG (2006/0156018-0), 1ª T, DJ de 02/08/2007, p. 398.

É fundamental compreender a diferença entre a aplicação da penalidade disciplinar em âmbito interno (poder hierárquico da Administração Pública) e a aplicação judicial das penas da lei de improbidade administrativa em âmbito externo (Poder Judiciário).

Saliente-se que o cabimento da penalidade de cassação de aposentadoria, mediante o exercício do Poder Disciplinar da Administração Pública, pressupõe que a falta apenável tenha sido cometida enquanto o indivíduo esteve vinculado ao serviço público. Isso porque se a falta tiver sido cometida depois da ruptura do vínculo, o aposentado não mais se subordina a essa ‘relação de especial sujeição’.

Ver a recente decisão o STJ no AgInt no REsp 1761937/SP. Registra a ementa que “as normas que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva (REsp. 1.564.682/RO, Rel. Min. OLINDO MENEZES, DJe 14.12.2015). Outro exemplar: AgInt no REsp. 1.496.347/ES, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, DJe 9.8.2018. Na espécie, o Tribunal de origem, ao apreciar o tema, assinalou que, em consonância com os precedentes desta E. Turma, verifica-se a impossibilidade de aplicação da pena de cassação da aposentadoria, ante a inexistência de previsão legal desta modalidade de pena no rol do art. 12 da LIA (fls. 4.739). Referida compreensão, bem por isso, não se aparta de ilustrativos desta Corte Superior no tema” (AgInt no REsp 1761937/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 19/12/2019).

A expressão, verdadeiramente iluminista — e reputada à obra de Cesare Beccaria — transmite a noção secular de que “só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social. Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000015.pdf).

BITEENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, Vol. 1, 17. ed., São Paulo: Saraiva, 2012. p. 48.

 é advogado e professor associado de Direito Administrativo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Victor de Almeida: Os tipos de guarda no sistema jurídico

O direito de família é uma área jurídica extremamente dinâmica, eis que novas questões surgem a todo tempo, seja quanto à questão de sucessão (como por exemplo testamentos, doações e partilha de bens), bem como nas questões pertinentes ao seio familiar (matrimônio, adoção, investigação de paternidade e guarda).

No presente texto, abordaremos a questão relativa à guarda, que pode se dar de forma alternada, compartilhada ou unilateral. Contudo, há uma certa confusão, em especial com relação à modalidade de guarda compartilhada e à guarda alternada. Inicialmente, falaremos sobre a guarda unilateral, que se mostra mais recorrente nas ações judiciais que versam sobre esse tema.

A guarda unilateral está definida no início do parágrafo primeiro do artigo 1.583 do Código Civil, trazendo o seguinte texto “Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (..)”. Podemos, dessa forma, sintetizar que a guarda unilateral será exercida por um dos genitores (pai ou mãe), enquanto com relação a uma pessoa que substitua um dos genitores, podemos exemplificar com a atribuição da guarda aos avós, ou ainda aos tios, na ausência de um dos genitores.

Cabe mencionar que na guarda unilateral, em regra, é fixado o direito de visitas ao genitor que não detêm a guarda ou a quem o substituiu. A forma como serão regulamentadas essas visitas deverá sempre atender ao melhor interesse da criança, podendo ser fixada de comum acordo entre as partes envolvidas ou pelo juiz.

Por fim, é importante salientar que cabe ao genitor não guardião a fiscalização quanto aos cuidados e à forma pela qual a criança é tratada por seu guardião (entenda-se por alimentação, saúde e educação), podendo ser o caso de demandar de forma judicial para obtenção de informações e outras medidas necessárias.

No tocante à guarda compartilhada, há uma certa confusão, eis que algumas pessoas interpretam que a guarda compartilhada seria a convivência da criança por determinado período, de forma igual, na residência dos genitores, quando na verdade a guarda compartilhada não se limita a isso.

A guarda compartilhada está prevista no final do parágrafo primeiro do artigo 1.583 do Código Civil com a seguinte redação “(…) E, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”. Em outras palavras, a guarda compartilhada pressupõe um consenso entre os genitores, não se limitando à alternância de lares, mas incluindo também decisões e responsabilidades quanto à criação de forma conjunta. Faz-se necessária, portanto, uma harmonia entre os genitores a fim de garantir o melhor interesse do infante.

A autora Maria Berenice Dias [1] entende que essa modalidade deve ser estimulada inclusive pelo Poder Judiciário, eis que atende aos melhores interesses da criança. Inclusive, ao nosso ver, a guarda compartilhada deve ser adotada, eis que permite um desenvolvimento sadio. Entretanto, deve-se atentar sempre à situação familiar no intuito de verificar qual situação se amolda melhor à criança.

Por fim, no que diz respeito à guarda alternada, esta não está prevista na legislação brasileira. Ela foi uma construção da jurisprudência [2], ou seja, um conjunto de decisões judiciais sobre tal questão.

Conforme mencionado anteriormente, na guarda alternada a criança convive com os genitores de forma alternada por igual período. Entretanto, diversos autores criticam tal modalidade, tendo em vista que não atende aos melhores interesses da criança. Ademais, não é uma modalidade usual de ser fixada de forma judicial, mas somente por meio de acordo.

Portanto, a espécie de guarda a ser aplicada dependerá de cada caso concreto, valendo-se sempre do melhor interesse da criança, bem como, se possível, da conciliação entre as partes.