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André Maluf: O Novo Regime de Exceção Fiscal da LC 173/2020

Os diversos veículos de comunicação veicularam a Lei Complementar 173/2020 como um pacote de ajuda financeira para Estados e municípios. Muito se falou sobre o montante de R$ 60 bilhões a ser destinado para os entes. Entretanto, para além de uma mera ajuda financeira, a Lei Complementar 173/2020 trouxe uma série de inovações fiscais que alteraram profundamente a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/00), trazendo um verdadeiro Regime de Exceção Fiscal.

Embora a lei tenha apenas dez artigos, as mudanças devem ser analisadas com cuidado pois envolvem temas complexos e sensíveis. Longe de esgotar os debates sobre o tema, buscamos abordar alguns pontos que parecem polêmicos e inovadores, de modo a reunir neste artigo, em síntese, algumas considerações sobre o tema de modo a debater sobre os impactos da referida LC 173/20 e se ela pode servir como solução jurídica para a crise que acomete Estados e municípios.

Inicialmente a LC 173/20 se apoia sobre três eixos ou iniciativas (artigo 1º, §1º): suspensão de pagamento de dívidas, reestruturação de operações de crédito e entrega de recursos por meio de auxílio financeiro.

À luz do objeto deste texto, o artigo 7º é o dispositivo que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal, relativizando diversas normas de controle de gastos, de modo que cria uma verdadeiro Regime de Exceção Fiscal.

Inicialmente, faz alteração no artigo 21 da LRF, criando regras de restrição à realização de despesas.

A disposição que mais chama a atenção e promete gerar debates repousa nas alterações do artigo 65 da LRF, ao prever a suspensão de uma série de dispositivos da LC 101/00 em decorrência da calamidade pública reconhecida pelo Legislativo (§1º, I), notadamente, os limites e condições e demais restrições para todos os entes para: a) contratação e aditamento de operações de crédito; b) concessão de garantias; c) contratação entre entes da federação; e d) recebimento de transferências voluntárias.

A alteração mais relevante parece constar no §1º, II, do artigo 65, que passa a dispensar os limites e afastar as vedações e sanções previstas e decorrentes dos seguintes dispositivos da LRF:

“Artigo 35 É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente.

Artigo 37 — Equiparam-se a operações de crédito e estão vedados: I – captação de recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido, sem prejuízo do disposto no §7º do artigo 150 da Constituição; II – recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos, na forma da legislação; III – assunção direta de compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada, com fornecedor de bens, mercadorias ou serviços, mediante emissão, aceite ou aval de título de crédito, não se aplicando esta vedação a empresas estatais dependentes; IV – assunção de obrigação, sem autorização orçamentária, com fornecedores para pagamento a posteriori de bens e serviços.

Artigo 42 É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no artigo 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”.

Ademais, permite dispensar o cumprimento do parágrafo único do artigo 8º  “os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso” , desde que os recursos sejam destinados ao combate da calamidade pública.

Por fim, o inciso III do §1º, do artigo 65 permite ainda o afastamento das condições e vedações previstas nos artigos 14, 16 e 17 da LRF, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública.

Tais mudanças abrem portas, a nosso sentir, para a utilização de recursos, legalmente vinculados, para o enfrentamento da calamidade, como, a exemplo do âmbito municipal, àqueles vinculados ao Fundeb, eis que afastado o parágrafo único do artigo 8º, desde que ocorra excedente do montante destinado originalmente.

Quanto a esse ponto a questão aparentemente é divergente.

O primeiro entendimento é mais restrito e parece ter sido adotado pela Confederação Nacional dos Municípios. A Nota Técnica 36/2020 do CNM reforça que no tocante ao artigo 65, quanto trata do parágrafo único do artigo 8º, permite apenas: “O uso de receitas vinculadas de anos anteriores para despesas diversas do inicialmente definido para ações de combate à calamidade pública”. Ou seja, apenas seria possível utilizar os recursos legalmente vinculados excedentes do orçamento anterior.

O segundo entendimento adotado pela Secretaria do Tesouro Nacional caminha em sentido mais amplo: a Nota Técnica SEI nº 21231/2020/ME prevê a “utilização de recursos legalmente vinculados a finalidade específica para atender ao objeto diferente ao da sua vinculação”.

Outra possibilidade seria a realização de empréstimo (operação de crédito) entre um município e sua autarquia ou fundo de previdência para o combate à calamidade, em razão do afastamento do artigo 35 da LRF pelo artigo 65, §1º, II, e do artigo 65, §1º, I, “a”, que dispensa os limites, as condições e as restrições para contratação e aditamento de operações de crédito.

Além disso, seria possível também a criação de benefícios fiscais, como um desconto nos créditos tributários de valor muito elevado, sem que isso configure renúncia de receita, eis que afastado o artigo 14, a fim de se obter recursos de forma mais célere para o enfrentamento da calamidade, evitando a judicialização e os custos e barreiras dela inerentes. A nosso sentir, tal regra de flexibilização exige a devida motivação do gestor, mediante fundamentação adequada que ateste o interesse público na renúncia de receita, de preferência amparada em orientações técnicas que demonstrem a vantagem dos benefícios ou incentivos, à luz, preferencialmente de indicadores econômicos, de modo a evitar a dilapidação de créditos da Fazenda Pública de forma irresponsável.

Todas essas disposições não afastam a exigência de transparência, controle e fiscalização.

Em que pese as críticas que possam ser suscitadas em termos de irresponsabilidade fiscal, a nosso sentir o novo regime criado parece se adaptar à realidade excepcional que acomete drasticamente Estados e municípios, entes mais suscetíveis a crises do que a União.

Isso não significa uma falta total de accountability, ou uma carta branca para o gestor atuar de modo irresponsável. Cabe aos órgãos de controle, notadamente Tribunais de Contas e Ministério Público, manterem a vigilância sobre as medidas que forem tomadas durante o estado de calamidade, sem desconsiderar nesse controle da Administração à luz da LINDB e do decidido pelo STF na recente MC na ADI 6.421 a realidade local ou regional, avaliando as consequências jurídicas e administrativas do controle, as dificuldades reais do gestor e as circunstâncias práticas de sua atuação, cabendo responsabilização no caso de erro grosseiro ou dolo.

A nosso sentir, o novo regramento jurídico surge em boa hora, de modo a permitir uma flexibilização das regras fiscais em prol da proteção da saúde (artigos 6º e 196 da Constituição), da ordem econômica (artigo 170 da Constituição) e dos demais direitos constitucionais que notadamente são essenciais à coletividade, sem prejuízo do controle a posteriori, nos termos expostos.

 é advoga e consultor. mestrando em Direito Constitucional pela UFF. Estudou Direito Público Comparado na Universidade de Siena. Pós-Graduado em Direito Público. Foi Professor de Direito Administrativo da UFF. Foi Subprocurador Geral Municipal. Editor do Academia.Edu.

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Vanessa Cardoso: A volta às atividades após a pandemia

Com a publicação pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul trazendo novas diretrizes acerca do retorno das atividades empresariais, através do chamado Programa de Distanciamento Controlado, muitas dúvidas surgem por parte das empresas a respeito de como retomar às suas atividades de forma segura e cumprindo a legislação.

Em um primeiro momento, é importante observar, além da legislação estadual, a legislação dos municípios em que a empresa está estabelecida, tendo em vista que cabe a estes regulamentar acerca das normas específicas que deverão ser adotadas na sua extensão, de acordo com a realidade da região a que pertencem.

Superada essa parte, existem diversas diretrizes básicas que deverão ser seguidas para a reabertura das empresas, com o objetivo de prevenção do contágio pelo coronavírus, tanto pelos funcionários quanto por clientes e fornecedores que venham a frequentar os estabelecimentos.

Para a indústria, por exemplo, a primeira medida a ser adotada é a criação de um plano de contingência em que deverá constar a exposição de todas as medidas de prevenção, monitoramento e controle do contágio pelo coronavírus que serão adotadas pela empresa no retorno do seu funcionamento e que deverá estar à disposição para consulta pelas autoridades competentes quando solicitado.

Em todos os setores em que há permissão para funcionamento, as exigências legais mínimas envolvem higienização de superfícies de toque, disponibilização de álcool em gel 70%, fornecimento de máscaras, monitoramento da temperatura dos funcionários, manutenção dos locais arejados,  limpeza dos sistemas de ar condicionados, adoção de sistemas de revezamento de jornadas, reorganização do layout dos estabelecimentos, a fim de manter a distância mínima exigida entre pessoas e reduzir o número máximo de lotação no interior da empresa, afastamento os empregados em contato com pessoas suspeitas ou com contágio confirmado e reduzindo o horário de funcionamento da empresa.

No entanto, é importante esclarecer que as medidas acima são aquelas exigidas de forma geral para reabertura das empresas, mas é imprescindível a análise da realidade de cada uma de forma individual, a fim de prevenir não somente o contágio pela doença, como também autuações pelo descumprimento de medidas exigidas, que poderão ser feitas por município e Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia, entre outras autoridades competentes, além do ajuizamento de ações judiciais.

É necessário, dessa forma, que cada empresa analise as suas necessidades e crie um projeto estruturado para o seu retorno, visando a zelar pela saúde de seus colaboradores, clientes e fornecedores, assim como priorizando pela manutenção em home office daqueles que a atividade permite, em especial com a adoção de todas as medidas necessárias a assegurar a saúde daqueles que pertencem a grupo de risco.

Ao retomar as atividades, a empresa também deverá fornecer treinamentos para os seus colaboradores, colocando em prática todas as medidas elaboradas no projeto de retomada, assim como fiscalizar o cumprimento das medidas adotadas sob pena de se tornarem ineficazes.

Tais cuidados, se forem adotados pelas empresas de forma correta, irão auxiliar também no não reconhecimento da Covid-19 como doença ocupacional, pois a decisão do Supremo Tribunal Federal, recentemente divulgada, suspendeu o artigo da Medida Provisória 927/2020 em que era estabelecido que os casos de contaminação não seriam considerados ocupacionais, salvo se comprovado nexo causal, o que implicará objetivamente no dever das empresas de comprovar todas as medidas adotadas para afastar esse risco.

Em uma época em que a economia já se encontra fragilizada, é indispensável o estudo e o planejamento do retorno da atividade empresarial, sob pena de a reabertura acabar acarretando um prejuízo maior do que a manutenção da atividade fechada.

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Victor de Almeida: Os tipos de guarda no sistema jurídico

O direito de família é uma área jurídica extremamente dinâmica, eis que novas questões surgem a todo tempo, seja quanto à questão de sucessão (como por exemplo testamentos, doações e partilha de bens), bem como nas questões pertinentes ao seio familiar (matrimônio, adoção, investigação de paternidade e guarda).

No presente texto, abordaremos a questão relativa à guarda, que pode se dar de forma alternada, compartilhada ou unilateral. Contudo, há uma certa confusão, em especial com relação à modalidade de guarda compartilhada e à guarda alternada. Inicialmente, falaremos sobre a guarda unilateral, que se mostra mais recorrente nas ações judiciais que versam sobre esse tema.

A guarda unilateral está definida no início do parágrafo primeiro do artigo 1.583 do Código Civil, trazendo o seguinte texto “Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (..)”. Podemos, dessa forma, sintetizar que a guarda unilateral será exercida por um dos genitores (pai ou mãe), enquanto com relação a uma pessoa que substitua um dos genitores, podemos exemplificar com a atribuição da guarda aos avós, ou ainda aos tios, na ausência de um dos genitores.

Cabe mencionar que na guarda unilateral, em regra, é fixado o direito de visitas ao genitor que não detêm a guarda ou a quem o substituiu. A forma como serão regulamentadas essas visitas deverá sempre atender ao melhor interesse da criança, podendo ser fixada de comum acordo entre as partes envolvidas ou pelo juiz.

Por fim, é importante salientar que cabe ao genitor não guardião a fiscalização quanto aos cuidados e à forma pela qual a criança é tratada por seu guardião (entenda-se por alimentação, saúde e educação), podendo ser o caso de demandar de forma judicial para obtenção de informações e outras medidas necessárias.

No tocante à guarda compartilhada, há uma certa confusão, eis que algumas pessoas interpretam que a guarda compartilhada seria a convivência da criança por determinado período, de forma igual, na residência dos genitores, quando na verdade a guarda compartilhada não se limita a isso.

A guarda compartilhada está prevista no final do parágrafo primeiro do artigo 1.583 do Código Civil com a seguinte redação “(…) E, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns”. Em outras palavras, a guarda compartilhada pressupõe um consenso entre os genitores, não se limitando à alternância de lares, mas incluindo também decisões e responsabilidades quanto à criação de forma conjunta. Faz-se necessária, portanto, uma harmonia entre os genitores a fim de garantir o melhor interesse do infante.

A autora Maria Berenice Dias [1] entende que essa modalidade deve ser estimulada inclusive pelo Poder Judiciário, eis que atende aos melhores interesses da criança. Inclusive, ao nosso ver, a guarda compartilhada deve ser adotada, eis que permite um desenvolvimento sadio. Entretanto, deve-se atentar sempre à situação familiar no intuito de verificar qual situação se amolda melhor à criança.

Por fim, no que diz respeito à guarda alternada, esta não está prevista na legislação brasileira. Ela foi uma construção da jurisprudência [2], ou seja, um conjunto de decisões judiciais sobre tal questão.

Conforme mencionado anteriormente, na guarda alternada a criança convive com os genitores de forma alternada por igual período. Entretanto, diversos autores criticam tal modalidade, tendo em vista que não atende aos melhores interesses da criança. Ademais, não é uma modalidade usual de ser fixada de forma judicial, mas somente por meio de acordo.

Portanto, a espécie de guarda a ser aplicada dependerá de cada caso concreto, valendo-se sempre do melhor interesse da criança, bem como, se possível, da conciliação entre as partes.