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Egon Moreira: STF, TRF-4 e o respeito aos acordos de leniência

Duas recentes decisões judiciais confirmaram a importância do respeito interinstitucional aos acordos de leniência. Uma, do TRF-4, outra, ainda não finalizada, do STF. Em ambos os casos, a razão é única: a celebração de acordos de leniência constitui nova situação jurídica entre a totalidade dos poderes públicos e as pessoas privadas signatárias, inibindo competências por parte das demais autoridades (e não só daquelas que firmaram o acordo).

No dia 20 de maio, ao julgar apelação cível em segredo de Justiça, o TRF-4 decidiu que o pacto de leniência tem o condão de extinguir, com resolução de mérito (CPC, artigo 487, III, alínea “b”), ação de improbidade ajuizada contra o signatário do acordo em vista da mesma situação fática. Isso fez com que certo pacto firmado com a União via CGU impedisse o prosseguimento de ação de improbidade que visava, entre outros pedidos, ao ressarcimento integral do dano em relação à sociedade de economia mista federal (não signatária da leniência).

O acórdão estabeleceu que o acordo de leniência, ao definir o prejuízo a ser compensado, derroga pretensões punitivas e ressarcitórias de terceiros frente aos mesmos fatos e condutas. Isto é, ele tem efeitos que ultrapassam a linha subjetiva de seus signatários — e são oponíveis contra todos os demais interessados (públicos e privados). A sociedade empresarial leniente fica, portanto, blindada pelo acordo, que produz efeitos erga omnes.

Aliás, o mesmo TRF-4 antes havia assinalado que não seria coerente que o mesmo sistema jurídico admita, de um lado, a transação na LAC e a impeça, de outro, na LIA, até porque atos de corrupção são, em regra, mais gravosos que determinados atos de improbidade administrativa, como por exemplo, aqueles que atentem contra princípios, sem lesão ao erário ou enriquecimento ilícito” (AI 5023972-66.2017.4.04.0000/PR). Nessa linha, não seria lógico ou racional que o sistema admitisse a celebração de acordo de leniência com efeitos — objetivos e subjetivos — parciais. Essa limitação impedira as negociações.

Ora, se o ordenamento jurídico outorga capacidade jurídico-negocial para certas autoridades públicas, é de se supor que o resultado da transação gerará efeitos plenos, inclusive em face de terceiros. Ao definir a competência privativa da CGU para celebrar “acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal”, o § 10º do artigo 16 da Lei 12.529/2011 tem duplo efeito, positivo e negativo. Este, veda que quaisquer outras autoridades públicas usurpem tal prerrogativa. Aquele, como consequência lógica, estatui que todas as demais autoridades públicas submetam-se ao ajuste. Na justa medida em que só uma pessoa pode produzir o acordo, todas as outras devem-lhe respeito.

Caso contrário, haverá sério problema de agente-principal. Como já tive a oportunidade de demonstrar aqui, as leniências representam peculiar trade-off, oriundo da assimetria dos bens negociados (informação versus liberdade) combinada com a criação de valor (não é punitivo-distributivo, mas valorativo-prospectivo). Muitas vezes, a importância da multa significa bem menos do que as informações e o compromisso de governança e compliance.

Mas fato é que, para desenvolver transações e firmar tal pacto de intenso valor futuro, as partes necessitam ter a garantia de que será obedecido. Precisam saber que aquela pessoa sentada à mesa efetivamente tem poderes não só para negociar, mas, especialmente, para fazer cumprir o convencionado. Se, ao final de meses de suor e lágrimas, a parte que forneceu informações descobrir que de nada valeu o pactuado, haverá flagrante desrespeito à razão de ser da Lei 12.529/2011.

Ou seja, caso o conteúdo, a validade e eficácia do acordo sejam passíveis de apreciação/revisão por terceiros, uma coisa é certa: uma das partes não negociou com o “principal”, mas com o “agente”. O convencionado de nada valeu. Por isso que os fatos que deram origem ao acordo não se submetem a outras ações judiciais.

Igualmente devido a esse motivo, os Tribunais de Contas não podem pretender nem controlar nem ignorar os acordos de leniência — como ficou bem claro no recente julgamento do STF.

Também em maio do corrente, mas no dia 26, a 2ª Turma do STF julgou quatro mandados de segurança impetrados contra o TCU. O cenário é de todo semelhante ao ocorrido no TRF-4, alterando-se, no que aqui nos interessa, apenas a autoridade impedida de se sobrepor aos acordos de leniência.

Isso porque o TCU pretendeu aplicar a sanção de inidoneidade — sem favor algum, uma pena capital, tamanha sua repercussão público-privada — a sociedades empresariais que haviam celebrado acordo de leniência com o Cade, ou com a CGU, ou com o MPF (os casos foram relatados em substancioso voto do ministro Gilmar Mendes, que pode ser lido aqui). Considerações à parte, o detalhe da divergência em alguns dos casos, instalada pelo ministro Edson Fachin e vinculada a temas de Direito Intertemporal, fato é que o STF confirmou o dever interinstitucional de respeito aos acordos de leniência.

Tais orientações do STF e do TRF-4 têm imenso significado para a consolidação dos acordos de leniência do Direito brasileiro. Fortalecem e tornam estável a sua incidência interinstitucional quanto a todas as autoridades externas ao pacto, sejam elas integrantes de qualquer um dos poderes do Estado. Como consignado no voto do ministro Gilmar Mendes, é “responsabilidade do Estado zelar para que as empresas investigadas não tenham a percepção de que a Administração Pública está desonrando os seus compromissos”.

 é professor de Direito Econômico da UFPR e membro da Comissão de Arbitragem da OAB-PR e da Comissão de Direito Administrativo da OAB Federal.

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STJ reconhece prescrição de crime de falsidade ideológica

A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, reconheceu a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva no crime de falsidade ideológica imputado a um vereador acusado de colocar uma empresa em nome de “laranjas” para obter contrato com o poder público.

ReproduçãoEm revisão criminal, STJ reconhece prescrição de crime de falsidade ideológica

Para o relator do caso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, o crime é instantâneo e foi consumado no momento da primeira alteração fraudulenta — a inserção do nome de “laranjas” como donas da empresa. Segundo ele, esse crime não se reitera ou continua pelo fato de, em alterações contratuais posteriores, os nomes das “laranjas” não terem sido trocados pelos nomes dos verdadeiros donos da empresa.

“A falsidade ideológica é crime formal e instantâneo, cujos efeitos podem vir a se protrair no tempo. A despeito dos efeitos que possam ou não vir a gerar, ela se consuma no momento em que é praticada a conduta”, explicou.

Termo inicial

Segundo os autos, o vereador utilizou o nome de duas mulheres como “laranjas” para representar uma empresa visando obter contrato com a Prefeitura de Porto Velho em 2012. A inserção dos nomes das duas mulheres na empresa aconteceu em 2003 e 2007, com posteriores alterações no contrato social realizadas em 2010 e 2011.

Em 2018, o caso foi julgado no STJ em decisão monocrática, que, ao analisar a alegação de atipicidade da conduta por falta de demonstração do dolo específico característico da falsidade ideológica, concluiu que a revisão do entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça esbarraria na Súmula 7 do tribunal. Nesse ponto, a decisão não foi impugnada pelo recorrente no agravo regimental interposto perante o colegiado.

No pedido de revisão criminal, o requerente sustentou que a condenação estabelecida no recurso especial violou a correta aplicação da lei penal, alegando que estaria prescrita a pretensão punitiva, se consideradas como termo inicial da contagem do prazo as datas em que foram inseridos os nomes das “laranjas” no contrato social da empresa.

Também alegou infração aos artigos 71, 109 e 299 do Código Penal, em razão da ausência de demonstração, no acórdão recorrido, do dolo específico do agente, elemento indispensável à configuração do delito de falsidade ideológica.

Interpretação equivocada

O relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, explicou que somente compete ao STJ o julgamento de revisões criminais de seus próprios julgados. No caso em análise, o ministro destacou que o crime teve pena reduzida, pelo deferimento do recurso da defesa, para um ano, dois meses e 12 dias, e por isso, de acordo com o artigo 109, V, do Código Penal, a prescrição é de quatro anos.

O pedido de revisão, segundo ele, só poderia ser conhecido em parte, quanto à alegação de prescrição da pretensão punitiva. E, nesse ponto, merecia ser julgado procedente, pois os fatos ocorreram em 2003 e 2007, e a denúncia foi recebida somente em 2013, o que caracteriza a prescrição, já que transcorreram mais de quatro anos entre a data dos delitos e o recebimento da denúncia.

O relator destacou que o julgado rescindendo admitiu que a falsidade ideológica foi praticada em 2003 e 2007, mas considerou ter havido reiteração da prática quando, por ocasião das alterações contratuais ocorridas em 2010 e duas vezes em 2011, o réu deixou de regularizar o nome dos sócios verdadeiramente titulares da empresa, mantendo o nome das “laranjas”.

“A interpretação dada pelo julgado rescindendo é equivocada. A lei não pune um crime instantâneo porque ele continua produzindo efeitos depois de sua consumação. Seria absurdo punir um homicídio perpetuamente porque a vítima continua morta. O prazo prescricional deve ser contado da consumação do delito, e não da eventual reiteração de seus efeitos”, apontou.

Dessa forma, no entender do ministro, o termo inicial da contagem do prazo prescricional é o momento da consumação do delito – no caso, 2003 e 2007.

O momento do crime

Para o ministro, também não é possível entender que constitui novo crime a omissão do réu em corrigir informação falsa por ele inserida em documento público.

Segundo o relator, se os dois delitos de falsidade ideológica imputados ao autor da revisão criminal foram a inserção dos nomes das “laranjas” no contrato, “há de se reconhecer que o termo inicial para a contagem do prazo prescricional deve ser o momento em que seus nomes foram inseridos, e não, como o fez o julgado rescindendo, momentos posteriores em que foram feitas novas alterações no contrato social da empresa para alterar outros itens, mantendo o nome das ‘laranjas’ como sócias”.

Ao conhecer em parte da revisão criminal, o colegiado julgou procedente a tese da prescrição e deu por prejudicado o exame da alegação de inexistência de continuidade delitiva. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ler o acórdão
RvCr 5.233

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STJ nega liminar para deputada ser desbloqueada por ministro

Por falta de requisitos autorizadores, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Og Fernandes indeferiu liminar em mandado de segurança impetrado pela deputada federal Fernanda Melchionna e Silva (PSOL) para ter acesso ao perfil do ministro da Educação, Abraham Weintraub, no Twitter, no qual ela foi bloqueada. O mérito do pedido será julgado pela 1ª Seção.

ReproduçãoSTJ nega pedido de deputada para ser desbloqueada por ministro da Educação

A parlamentar argumentou que, no último dia 19, foi notificada pelo Twitter de que o ministro da Educação havia bloqueado seu acesso ao perfil dele na rede social. Segundo ela, desde o início de 2019, o alto escalão do governo federal tem estabelecido uma relação conflituosa em seus diálogos com a imprensa e com opositores políticos. Para a deputada, é necessário ter acesso às informações sobre as ações, medidas e posições que Abraham Weintraub assume na condição de ministro – as quais são publicadas em redes sociais.

Ela pediu a concessão da liminar para garantir o direito constitucional à informação, permitindo, assim, seu acesso de maneira irrestrita a todas as redes sociais em que haja divulgação de ações, posições e projetos do governo federal.

Urgência não justificada

O relator do pedido, ministro Og Fernandes, explicou que a concessão de liminar em mandado de segurança, quando possível, é condicionada à satisfação cumulativa dos requisitos previstos no artigo 7º, III, da Lei 12.016/2009: o fumus boni iuris (fundamento relevante) e o periculum in mora (perigo na demora).

“Na espécie, todavia, não observo, a partir da leitura dos fundamentos contidos na petição inicial, assim como da análise dos documentos que a instruíram, a presença dos requisitos autorizadores da medida liminar, notadamente o periculum in mora, haja vista que a impetrante não justificou a sua ocorrência”, afirmou.

Para o ministro, a tutela de urgência requerida pela deputada se confunde com o próprio mérito da ação, o qual será analisado pelo colegiado após os esclarecimentos a serem prestados pelo ministro da Educação.

Segundo o relator, é importante “perquirir acerca da natureza da conta vinculada ao Twitter à qual se requer inteiro acesso, bem como do objetivo de sua utilização e do eventual caráter institucional, para além do particular, a ela reservado, sem olvidar da via de mão dupla que deve permear o acesso às redes sociais, circunstância que inviabiliza, em juízo preambular, o deferimento do pleito”. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

MS 26.118

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Juiz manda União apresentar contrato de concessão de porto seco

A União tem prazo de cinco dias, a contar da intimação, para apresentar o contrato de permissão assinado com a Aurora da Amazônia Terminais e Serviços Ltda. para operar o porto seco de Anápolis (GO), cumprindo assim decisão deste juízo e da Desembargadora Daniele Maranhão Costa do Tribunal.

A medida foi tomada no último dia 26/5 pela 2ª Vara Federal Cível e Criminal de Anápolis. Antes disso, o processo envolvendo a concessão do porto passou por um conflito de liminares (leia mais abaixo).

Porto seco de Anápolis foi alvo de guerra de liminares e parece ter chegado ao fim 
Reprodução

Na decisão assinada pelo juiz federal Alaôr Piacini ele aponta que em uma “manobra ilegal a empresa Porto Seco Centro Oeste S/A ( atual responsável pelo terminal alfandegário) e seu advogado, após o pedido de desistência do processo 1000694- 58.2017.4.01.3502, ingressaram com a mesma ação (ipsis litteris) na Seção Judiciária do Distrito Federal (7ª Vara Federal), processo 1017310-26.2017.4.01.3400 na data de 29 de novembro de 2017″.

Esclarecida a questão do juízo natural da ação, o magistrado concedeu o pedido de tutela de urgência da Aurora da Amazônia Terminais e Serviços e deu prazo para que a União apresente o contrato assinado com a empresa.

O magistrado ainda pontuou que “o direito da empresa Porto Seco Centro Oeste S/A, permissão para a prestação dos serviços do porto seco de Anápolis, encerrou-se em (19/02/2018). Desde o encerramento da permissão e de perder a licitação para a Empresa Aurora a empresa Porto Seco Centro Oeste S/A opera o serviço de forma irregular (ilegal) sem ter a União tomado qualquer providência”.

A origem do conflito
O caso teve início em 2017, quando a Aurora da Amazônia foi a melhor colocada na primeira fase da concorrência aberta pela Receita Federal para operar o terminal. Depois, porém, a empresa foi inabilitada por não cumprir um dos requisitos técnicos do edital.

O terreno apresentado pela empresa para receber o porto seco está fora da zona do Distrito Agroindustrial de Anápolis (Daia), conforme determina Lei municipal 2.508/97. Apesar de o local ser próximo, não configura como área adjacente ao distrito, segundo o poder público municipal. Inconformada, a empresa ajuizou ação na Justiça Federal de Anápolis, que em decisão liminar determinou a continuidade do procedimento, desconsiderando o entendimento do Conselho Municipal da Cidade (Comcidade) e da Procuradoria Geral do Município, que reconheceram que o local não se enquadra como parte do distrito e não pode receber o terminal alfandegário.

Do outro lado, a Porto Seco Centro Oeste, atual exploradora e concorrente no processo licitatório, contestou o resultado da primeira fase da licitação na Justiça Federal de Brasília — que, segundo determina o edital, é a responsável para resolver as questões desta licitação.

Nela, a Porto Seco afirma que a concorrente usou uma manobra, oferecendo uma proposta de preços aparentemente exequível, mas com preços irrisórios. Na proposta comercial foram apresentadas seis tarifas com o mesmo valor (R$ 0,02), o que descumpre o edital, que veda a apresentação de valores “simbólicos, irrisórios ou de valor zero, ou que não comprovem a exequibilidade da proposta” para buscar melhor nota na classificação final. O juiz de Brasília, então, concedeu liminar suspendendo a licitação.

Com isso, foi instaurada a insegurança jurídica no caso. A questão chegou a ser parcialmente resolvida no TRF-1, quando a desembargadora Daniele Maranhão suspendeu a liminar de Anápolis, que mandava continuar a licitação. Porém, no último mês, a desembargadora mudou seu posicionamento, restabelecendo a liminar.

A Aurora da Amazônia Terminais e Serviços LTDA foi representada pelos advogados Alexandre Rodrigues Souza, Alexandre Moreira Lopes, Benjamin Caldas Gallotti Beserra, Bruno de Morais Faleiro e Natasha Oliveira Franca.

Clique aqui para ler a decisão

1006095-67.2019.4.01.3502

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Tabelamento de preços no setor sucroalcooleiro é tema de debate

Nesta segunda-feira (1º/6), a partir das 15h, a TV ConJur joga luzes sobre uma questão econômica relevante: os prejuízos provocados pelas políticas governamentais de tabelamento de preços. Mais especificamente, no setor sucroalcooleiro. O governo, naturalmente, renega o esqueleto. O Supremo Tribunal Federal vai decidir, mais uma vez, a questão.

Na epidemia que varre o país, o setor foi um dos que mais prontamente atenderam a emergência, com o álcool imunizante. Com o advento do etanol, o produto garantiu, na balança comercial, algo como 550 bilhões de dólares nos últimos anos. Embora o quilo do açúcar e o litro do álcool custem, juntos, bem menos que uma dúzia de bananas, esses preços foram comprimidos por muito tempo. É esse prejuízo que o setor cobra de volta.

Para debater o assunto, foi convidada a ex-advogada-geral da União, Grace Mendonça; o professor titular de Direito Administrativo da UERJ, Gustavo Binembojn; e o tributarista e professor titular de Direito Financeiro da USP, Fernando Facury Scaff. A defesa do governo, convidada, preferiu não participar do debate.

Na pauta do encontro, os quarenta julgamentos anteriores do STF, em que a Corte já decidiu a favor do contribuinte. Os limites de intervenção do Estado sobre o domínio econômico, a doutrina e a jurisprudência serão revisados pelos especialistas. O evento revisitará também a estrutura dos cálculos produzidos pela Fundação Getúlio Vargas que, contratada pelo governo, entre 1985 e 1999, media os custos de produção e venda dos produtos. O caso que vai à Mesa, no STF, agora é o da Usina Matary, produtora da região de Pernambuco.

Clique aqui para ver o seminário ou acompanhe abaixo:

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Streck, Cattoni, Lima, Serrano: Covid-19 e a eugenia à brasileira

Estima-se que aproximadamente 14% dos casos de infecção por Covid-19 sejam graves, o que exige internação hospitalar e oxigenoterapia, enquanto, por volta de 5% dos pacientes, necessitam de internação em unidades de terapia intensiva (Organização Mundial da Saúde. Clinical management of severe acute respiratory infection when COVID-19 disease is suspected).

Estudos mais recentes constataram que as projeções são ainda mais preocupantes. Até 25% dos casos podem demandar internação hospitalar, e até 8% dos acometidos pela doença podem necessitar de tratamento intensivo (Ryan C. Mavesa, James Downar e outros. Triage of scarce critical care resources in COVID-19 an implementation guide for regional allocation. Chest Journal. Abril de 2020).

No Brasil, estima-se que existam duas UTIs para cada 10 mil habitantes, o que atende às exigências sanitárias da OMS. Entretanto, além de distribuídos desigualmente pelo território nacional, apenas 44% dos leitos são integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual é responsável pela assistência de três quartos da população. Ainda que os Poderes Públicos pudessem realizar — nos termos do artigo 5º, inciso XXV, da Constituição; do artigo 3º, inciso VII, da Lei n.º 13.979/2020 e do artigo 3º, inciso VII, da Lei n.º 13.979/2020 — a requisição administrativa das UTIs privadas, o que permitiria planejamento, contingenciamento mais abrangente e, consequentemente, mitigação da escassez, a omissão generalizada já ensejou a saturação do sistema de saúde em expressiva parcela dos municípios brasileiros.

Em razão da escassez, foram adotadas iniciativas que instituem procedimentos de tomada de decisão para priorizar determinados perfis de pacientes no acesso aos leitos, isso por meio da adoção das seguintes premissas: salvar o maior número de vidas, de anos a serem vividos e, ainda, oportunidade para que os indivíduos passem pelos diferentes ciclos da vida.

Destaque-se, desde já, que a oferta de leitos de UTI no Brasil, mesmo no cenário anterior à atual pandemia, já se baseava não só na necessidade de terapias de suporte orgânico, mas também na disponibilidade de leitos e na probabilidade de recuperação. Consequentemente, diante de uma situação de escassez, o Conselho Federal de Medicina (Resolução n.º 2.156/2016) já determinava a priorização daqueles que necessitassem de intervenções de suporte à vida, possuíssem alta probabilidade de recuperação e sem qualquer limitação de suporte terapêutico.

Ante o atual cenário de pandemia, o Conselho Regional de Medicina do Estado de Pernambuco editou a Recomendação n.º 05/2020 para eleger pacientes de acordo com a previsão de sobrevivência a curto e longo prazo (considerando, para tanto, os métodos Sequential Organ Failure Assessment simplificado, Charlson Comorbidity Index e Clinical Frailty Scale), além da probabilidade de sobrevivência global e de resposta terapêutica (Karnofsky Performance Status). Admitido o paciente, ele será submetido à reavaliação diária exclusivamente com a adoção do Sequential Organ Failure Assessment. Independentemente da pontuação, em havendo agravamento clínico prolongado, o paciente perderá o tratamento intensivo. Ainda que não haja a utilização isolada dos fatores idade e gestação, eles influenciam sobremaneira na triagem, já que, conforme demonstraremos, são aspectos indissociavelmente ligados aos sistemas de pontuação eleitos.

Com efeito, o Sequential Organ Failure Assessment avalia as disfunções orgânicas (neurológica, cardiovascular, pulmonar, hepática e renal, em especial) ao passo que o Charlson Comorbidity Index coteja a existência de doenças prévias, tais como, dentre outras, infarto do miocárdio, demência, úlcera, diabetes, leucemia, hepatite e tumor sólido metastático. O Performance Status de Karnofsky leva em consideração, independentemente da existência de doenças crônicas, a capacidade do paciente — previamente à infecção — de desempenhar atividades rotineiras (por exemplo, trabalhar e cuidar de si próprio). A Clinical Frailty Scale, aplicada para pessoas acima de 60 anos, é uma medida clínica global de condicionamento físico e fragilidade que classifica os pacientes de acordo com, em especial, a frequência de atividade física e as limitações à prática de atividades rotineiras.

Outra iniciativa, esta pelo Conselho Medicina do Rio de Janeiro (Rec. n.º 05/2020) considera variáveis similares, mas adota métodos em parte específicos para aferir a previsão de sobrevivência de acordo com a gravidade de doenças incuráveis e progressivas (Supportive and Palliative Care Indicators Tool), além da funcionalidade prévia à admissão na unidade de saúde (Eastern Cooperative Oncology Group).

Medidas similares foram adotadas pelo CRM do Distrito Federal (Parecer CRM-DF n.º 12/2020). No âmbito do Município de São Paulo, foi editado o Decreto n.º 59.396/2020 para determinar à Secretaria Municipal da Saúde que implemente protocolo para priorização no acesso às UTIs de acordo com as “melhores normas internacionais e técnicas”, razão pela qual certamente serão adotados os mesmos métodos aqui detalhados.

Ainda que adotando critérios em parte específicos, os procedimentos elencados valem-se, dentre outros, da funcionalidade para eleger determinados pacientes pressupondo que eles possuem melhores chances de responder ao tratamento intensivo e maiores expectativas de sobrevida. Parece assustador, pois não?

A estratificação de acordo com a gravidade de determinadas disfunções orgânicas, ainda que transitórias, parte do pressuposto de que elas permitem aferir a sobrevivência a curto prazo, bem como selecionar aqueles que possuem maior probabilidade de recuperação da infecção por Covid-19. Entretanto, estudos científicos realizados quanto à utilização do Sequential Organ Failure Assessment durante pandemia decorrente do vírus H1N1 no ano 2009 constataram que o critério se mostrou inadequado para priorizar o acesso às UTIs, uma vez que a mortalidade aferida posteriormente não refletiu as estimativas prévias (Michael D. Christian e outros. Care of the critically ill and injured during pandemics and disasters. Chest Journal, 2014).

Ainda que os modelos elaborados no Brasil atualmente considerem outras variáveis, as quais vão além das disfunções orgânicas, não há evidências científicas conclusivas quanto à eficácia dos scores. Outro ponto de discussão é que referido critério — ao incorporar, exemplificativamente, índices relativos à pressão arterial, dopamina, dobutamina, noraeponefrina, creatina e diurese — gera desvantagem para as gestantes, as quais desenvolvem alterações significativas em tais aspectos.

Guardadas as devidas proporções, os citados critérios de priorização fazem repercutir — com alguma sofisticação e obnubilação — superadas teorias sociais darwinianas por meio das quais a utilidade à sociedade é um critério para determinação do valor humano. O falacioso argumento justificador da seleção é o de que só mediante critérios de triagem nos moldes apresentados haveria maior eficiência na gestão dos recursos escassos, assim entendida como a maximização da assistência médica para o maior número de pessoas, o que não poderia ser alcançado por meio da alocação com base na ordem de chegada (Ryan C. Mavesa, James Downar e outros. Triage of scarce critical care resources in COVID-19 an implementation guide for regional allocation. Chest Journal, 2020).

Não nos deparamos com uma mera questão de eficiência na gestão de recursos escassos. A dignidade, a igualdade e a solidariedade são princípios que devem conformar, para além de qualquer critério epidemiológico puro, o acesso aos serviços públicos de saúde. O SUS tem sua origem na realização das conferências nacionais de saúde. Tais conferências possuem sua origem no governo Vargas, com a Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, que reorganizou o Ministério da Educação e Saúde. A primeira conferência nacional de saúde ocorreu em junho de 1941, sob a organização de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde. De lá para os dias atuais, houve dezesseis conferências nacionais, sendo a última realizada em agosto de 2019. Não é difícil comprovar a origem coletiva do direito à saúde, quando da concretização deste direito previsto nos arts. 6º e 196 da Constituição Federal. O salto mais importante se deu quando da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986: a criação de um sistema único de saúde, separado da previdência social, e de caráter universal, o que derivou na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que instituiu o Sistema Único de Saúde: o único sistema no mundo onde quem não contribui pode usufruir dos serviços de saúde. Portanto, a reafirmação de seu caráter universal.

Esta articulação normativa se deixa comprovar na previsão dos princípios, dentre outros, da universalidade do acesso às ações e serviços públicos de saúde (art. 7º, inciso I, da Lei nº 8.080/1990); da igualdade de assistência, o que pressupõe ausência de preconceitos ou privilégios (art. 7º, inciso IV); e, ainda, da utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática (art. 7º, inciso VII). Essa regulamentação visa a atender aos ditames constitucionais que asseguram os direitos à saúde (art. 6º; art. 23, inciso II; art. 24, inciso XII; art. 194; art. 196; art. 197; art. 198; art. 199 e art. 200), à vida (art. 5º, caput; art. 227 e art. 230) e à igualdade (art. 5º, caput, inciso IV e art. 196). Do mesmo modo, a República brasileira é fundamentada na dignidade (art. 1º, inciso III, da Constituição) e tem por objetivos fundamentais e permanentes, dentre outros, a construção de uma sociedade justa e solidária, erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais e promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I, III e IV, da Constituição). Também é relevante destacar que, no âmbito do Direito Internacional Público, dentre diversos tratados internacionais pertinentes ao tema, destaque-se, em especial, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, segundo a qual as questões éticas relacionadas à medicina são informadas pela dignidade, igualdade e solidariedade. A propósito, a Sociedade Brasileira de Bioética, na sua Recomendação n.º 1/2020, posicionou-se pela alocação de recursos que “assegure o direito de todos os pacientes, inclusive os não infectados por SARS-CoV2, de receber cuidados de acordo com suas necessidades, promovendo-se a melhor assistência à saúde cientificamente reconhecida” (item I), que sejam garantidos “os direitos dos pacientes, incluindo acesso igualitário, em todos os níveis de atendimento” (item V) e que seja assegurado “o princípio da equidade, para que não ocorra qualquer distinção que importe a desvalorização e discriminação de pessoas, comunidades ou grupos socialmente vulneráveis no acesso aos serviços” (item VII), dentre outras .

Tais normas, e mesmo as mais balizadas recomendações, impõem o afastamento da priorização no acesso aos leitos de UTI no formato apresentado. Isso tudo tem nome: hierarquização de vidas. E um subnome: eugenia. Em outras palavras, é contrário à essência humanista da nossa Constituição.

Ainda que a mensuração para fins de priorização no acesso às UTIs não se baseie na relação superioridade-inferioridade em que se centra a teoria eugenista na sua acepção clássica formulada por Francis Galton (Hereditary talent and character. Macmillan’s Magazine, 1865), a adoção da probabilidade de cura com base em critérios pretensamente científicos dificilmente conversíveis em linguagem comum afeta, em especial, o sentimento de comunidade e, consequentemente, a integridade da nossa própria estrutura social. A relação de causalidade, bem como a estigmatização de determinados grupos qualificados como descartáveis contraria a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição). Em suma: as regulamentações médicas aqui tratadas são absolutamente inconstitucionais.

Para quem ainda não entendeu: Nunca será demais recuperar a advertência histórica a respeito de critérios de separação para acesso a tratamento de saúde do século XX, materializada, de forma especial, pela pesquisa de Ernst Klee e sua rica documentação sobre a medicina durante a Alemanha nazista ((Deutsche Medizin im Dritten Reich – Karrieren vor und nach 1945. Frankfurt. M: S. Fischer Verlag, 2001; organizado com Willi Dressen e Volker Riess:The Good Old Times”: The Murder of the Jews as Seen by the Perpetrators and Bystanders. New York: Free Press, 1988).

O destaque fica por conta da conhecida Aktion T4 e os processos de “eutanásia” que levaram à morte milhares de pessoas classificadas como “vidas sem valor” (lebensunwerten Leben). A Aktion T4 foi assim denominada em razão de tal “Ação” ser efetivada pelo Posto de Serviço Central T4 (Zentraldienststelle), de Berlim, quando mais de 70 mil pessoas, portadoras de deficiências físicas ou mentais, foram exterminadas.

Integrava o rol de “vidas sem valor” para a medicina nazista – que contou com o apoio de médicos, como Leonardo Conti, Ministro da Saúde do III Reich e responsável por políticas de extermínio – aqueles “sem condições de vida”, doentes e que não reunisse condições físicas de trabalho. Não somente nos campos de concentração eram aplicados tais critérios, mas na sociedade alemã e nos territórios ocupados pelo avanço da guerra desencadeada pelo nazismo. Medidas sanitárias de segregação foram elaboradas pelo médico Karl Brandt, “médico particular” (Begleitartz) de Adolf Hitler, bem como amplamente difundidas pela editora de Julius Friedrich Lehmann, a J. F. Lehmanns Verlag, encarregada da difusão de ideias de uma medicina nacionalista e racista. O nome de Brand ficou lembrado na chama Aktion Brandt, que se definia na descentralização da negligência médica de pacientes classificados como incuráveis ou de improvável recuperação. Referida “Ação” era disseminada tanto em hospitais como mesmo em estações de tratamentos intermediárias.

A medicina não fugiu à orientação da ideologia racial do regime nazista. Integrou a organização de um Estado que direcionava todos os seus esforços administrativos, científicos, financeiros etc. para a construção de uma sociedade “superior” com a eliminação dos que não se enquadrassem em tal categoria definida pelo mesmo regime. O ambiente institucional desta realidade iniciou logo quando em 30 de janeiro de 1933 Hitler foi nomeado Chanceler do Reich. Já em 7 de abril do mesmo, foi aprovada a “Lei da Reorganização do Serviço Público” (Gesetz zur Wiederherstellung des Berufsbeamtentums), pela qual profissionais “não arianos” estavam impedidos do exercício do serviço público, o que excluiu médicos de origem judia, eslava ou de outras procedências. Em 15 de setembro de 1935 foi aprovada a “Lei dos Cidadãos do Reich” (Reichsbürgergesetz), que retirou dos médicos de origem judia a “aprovação” pública (Approbation) para o exercício profissional da medicina. Inserida neste contexto de aberta e legal discriminação e seletividade, a medicina restou nas mãos do regime nazista e transportou as mesmas discriminação e seletividade para suas práticas médicas.

Nesses termos, a solidariedade entre os membros do pacto social não se enfraquece em situações de pandemia. Ao contrário, ela se afirma. Também sob essa perspectiva, a segregação baseada na pretensa bioética das situações pandêmicas não deve se basear numa questão de eficiência na alocação de recursos escassos, mas na preservação do próprio pacto social por meio de critérios singelos e objetivamente aferíveis pela comunidade e rejeitadores de qualquer ideal eugênico de perfeição do ser humano.

Por fim, inclusive em razão das limitações dos estudos epidemiológicos adotados como referenciais para fins de seleção no acesso aos leitos de UTIs, a pretensão de intervenção no domínio da saúde pública não se justifica. A eliminação – sim, vamos dar nome às coisas – de determinadas pessoas com base numa pretensa neutralidade científica, ainda que travestida de uma poderosa roupagem técnica, é um primeiro passo para práticas biotecnológicas seletivas da espécie humana numa escala que causaria inveja a Adolf Hitler.

Isso tem de ser dito. Começa assim o totalitarismo.


www.sbbioetica.org.br/Noticia/754/RECOMENDACAO-SBB-N-012020-aspectos-eticos-no-enfrentamento-da-COVID-19

Fazemos, contudo, reservas quanto à parte final da Recomendação, em especial, a Tabela I e o Anexo II, quanto ela remete para a “segunda versão das Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19”, em razão do uso do critério SOFA para a triagem de pacientes: como já dissemos acima, estudos sobre o chamado Sequential Organ Failure Assessment, durante a pandemia decorrente do vírus H1N1, no ano 2009, constataram que o critério se mostrou inadequado para priorizar o acesso às UTIs, uma vez que a mortalidade aferida posteriormente não refletiu as estimativas prévias (Michael D. Christian e outros. Care of the critically ill and injured during pandemics and disasters. Chest Journal, 2014). Não haveria, salvo melhor juízo, estudos científicos consolidados que, para além de qualquer dúvida razoável, permitissem justificar o uso do SOFA, ainda que combinados com outras variáveis.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

 é jurista, professor titular de Direito Constitucional da UFMG, doutor e mestre em Direito (UFMG).

Martonio Barreto Lima é professor titular da UNIFOR.

Pedro Estevam Serrano é advogado, professor de Direito Constitucional, Fundamentos de Direito Público e Teoria Geral do Direito da PUC-SP, pós-doutor em Teoria Geral do Direito pela Universidade de Lisboa e doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.

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João Ibaixe Jr.: Sobre o artigo 142 da Constituição

Nas redes sociais, têm circulado certos vídeos e fotos em que o estimado e respeitadíssimo professor Ives Gandra estaria afirmando ser cabível intervenção das Forças Armadas para resolver eventual conflito ou disputa entre Poderes da República, tendo por fundamento o artigo 142 da Constituição Federal. Com base nisso, alguns afoitos vêm pedindo golpe militar. A postura dos que defendem isso é absurda, inaceitável e odiosa!

Primeiro, porque usam indevidamente, como argumento de autoridade, a figura do prestigiado professor, exemplo de advogado e querido por todos aqueles que atuam na área do Direito.

Segundo, porque tais divulgadores recortam a fala do professor, na forma mais execrável de supostamente apresentar um argumento. Com isso, constroem uma inverdade e uma falácia! O querido professor nunca disse isso dessa forma, nem jamais sustentou um golpe de estado. Bem ao contrário, ele dá claras noções de doutrina em suas explanações, com palavras simples e diretas, cujo destaque e seleção de partes somente pode ser executado por mãos pútridas e hábeis em construções de mentiras.

Em seus últimos vídeos e artigos, o caríssimo professor vem apresentando a chamada doutrina da separação de poderes, a qual foi inclusive objeto de vídeo da cantora Anitta numa live com a advogada Gabriela Prioli, assunto que tomou boa parte da conversa, o que mostra que poucos sabem do que o tema trata.

Separação de poderes é uma teoria que orienta a estrutura dos Estados modernos e organiza suas formas de liderança. Estado aqui é sinônimo de país, para não confundir o leitor desavisado. O Brasil é um Estado, enquanto São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, são Estados-membros. Moderno significa que existe há cerca de 250 anos. Ou seja, antes disso, não havia separação de poderes, os estados eram governados por um único líder.

No Estado moderno, em que se prevê a separação de poderes, normalmente, como aqui, há a divisão entre Executivo, Legislativo e Judiciário. O Executivo cuida da parte administrativa, da execução e operacionalização da Administração, enquanto o Legislativo ocupa-se com a elaboração de leis, dando suporte normativo à administração, e o Judiciário, por fim, cuida da solução de conflitos, comumente relacionados a partir de possíveis leituras e interpretações diversas das leis, por isso, fala-se em jurisdição, isto é, dizer o Direito, dar a interpretação mais adequada da norma para que a Administração tenha segurança para agir. Todas as esferas do poder se relacionam com o cidadão, obviamente, que é a razão da existência, ao mesmo tempo em que é subordinado ao Estado.

Basicamente, o Executivo é exercido por um presidente, o Legislativo, por um grupo de legisladores (no caso do Brasil, senadores e deputados federais) e o Judiciário, por juízes e tribunais. Em nível federal, vale dizer, quanto ao nosso país, no Executivo, a autoridade maior é o presidente da República, no Legislativo, é o presidente do Congresso Nacional (nome de nosso poder legislativo) e, no Judiciário, os juízes (chamados ministros) do Supremo Tribunal Federal. Assim, estão no mesmo plano de poder os presidentes da República, do Congresso e do Supremo. Nenhum deles pode mandar mais que o outro e todos têm de cumprir as diretrizes constitucionais.

Vamos repetir, todos os representantes de cada poder estão no mesmo plano! O presidente da República não é superior aos outros e não manda neles. Quem manda em todos é a Constituição.

Nesse sentido, o professor Ives Gandra, que segue a doutrina clássica, afirma que um poder não pode intervir no outro de nenhuma forma. Assim, os atos constitucionalmente definidos como tais cabem a cada poder particularmente. Mas, e se houver conflito entre um poder e outro? Como resolver? Nesse caso, único constitucionalmente previsto, as Forças Armadas funcionarão como uma espécie de árbitro para acertar e resolver o conflito. Quer dizer, as Forças Armadas irão colaborar com os poderes constituídos. Jamais se fala em golpe de estado e o professor Ives nunca disse isso. A intervenção é a favor, e não contra os poderes. Não há dissolução de nenhum dos poderes no caso. E os militares não tomam o poder!

Isso é o que diz a doutrina clássica. Ela funcionou bem até o começo do século XX, quando os Estados passaram a se tornar mais complexos e a própria vida se tornou mais complexa, com fatores, elementos e forças novas e diversas surgindo como equação a ser resolvida pela sociedade política.

A doutrina clássica passou a não dar mais respostas. A doutrina atual discute exatamente isso. Aqui juntam-se questões diversas, por exemplo, como a do chamado Estado administrativo, em que a Constituição se defronta com a burocracia e o mercado, como a da sociedade de risco, em que se deve considerar os perigos e inseguranças produzidos pelo caminhar do próprio progresso, a virtualização das relações, evidenciada pela atual pandemia, tudo isso gera uma complexidade que demanda respostas diversas em termos políticos.

As ações necessárias não se restringem mais a um único poder. Por exemplo, a nossa Constituição prevê medidas provisórias como atos do Executivo, mas medidas provisórias são leis! Logo, constitucionalmente, o Executivo legisla. O Legislativo trabalha com Comissões Parlamentares de Inquérito e o Judiciário julga e decide questões que fatalmente afetam a Administração. Há claramente uma fluidez nas ações do Estado que não permitem mais um isolamento absoluto de condutas dadas por um único verbo.

O Executivo administra, o Legislativo legisla e o Judiciário julga. Sim, ainda é dessa forma, mas no modelo de sociedade atual, em que até a mídia na internet influencia ações, não pode haver, não se justifica que haja e é impossível não acontecer a não influência de um poder no outro. O principal é o encontro de um mecanismo de balanceamento, que não será jamais apenas jurídico, residindo no campo político e no bem senso, dentro do possível, dos atores envolvidos.

Esse protagonismo, porém, não pertence às Forças Armadas, pela própria restrição constitucional. É essa a lição do eminente professor Ives Gandra, mesmo seguindo a doutrina clássica. É a lição que todo bom cidadão deve ouvir e que todo operador sério do Direito deve reverberar.

João Ibaixe Jr. é advogado, ensaísta, ex-delegado de polícia, pós-graduado em Filosofia e Ciências Sociais, especialista em Direito Penal, mestre em Filosofia do Direito e do Estado e ex-vice-presidente da Comissão de Estudos em Direito e Economia da OAB-SP.