Categorias
Notícias

O procurador cordial: afetos privados condicionando atuação pública

Em momentos de crise é de bom conselho refugiar-se nos clássicos. No canônico ensaio “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, em especial no capítulo V, “O homem cordial”, o notável historiador brasileiro, num texto curto, mas largo nos seus ensinamentos, refletia na década de 30 (a primeira edição é de 1936) sobre as dificuldades de se implementar uma ordem impessoal num país tão marcado pela força do patriarcado e pela vida forjada no ambiente privado. Daí o seu insight sobre o “homem cordial”, aquele que age na vida pública condicionado pelos afetos da vida privada.

Arrancado da velha ordem social, tem ele enorme dificuldade de agir de modo imparcial e objetivo, preso que está às relações de caráter pessoal que formaram seu ser. O autor, no entanto, admitia que com a progressiva urbanização da vida social no Brasil o conceito seria superado, dizendo que “o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer onde ainda não desapareceu de todo”.

A esperança algo recalcitrante de Sérgio Buarque, timbrada no emprego do advérbio “provavelmente”, tinha razão de ser. Como mostrou João Cezar de Castro Rocha, o conceito do “homem cordial” parece estar impregnado na história social do país [1].

É, aliás, o que a realidade mostra. Uma rápida consulta à jurisprudência de direito público nos tribunais brasileiros não desmentirá que o traço da impessoalidade não é efetivamente uma regra assentada entre nós.

Bem por isso foi preciso inscrever na CF um princípio que deveria ser intuitivo: a administração pública deve reger-se pelo princípio da impessoalidade (art. 37). O “homem cordial”, na verdade, é um clássico nacional.

Essas considerações me vieram à cabeça à guisa da crise democrática que vivemos. Nunca antes neste país se pôs tanto em dúvida o modelo de Estado Democrático de Direito inscrito na CF de 1988. Nunca antes a Constituição Cidadã, que almejou acolher a todos e a romper com o passado de arbítrio, foi tão sistematicamente atacada por seus detratores. Desde então, nunca foi tão imprescindível a defesa do regime democrático.

De tantos exemplos, fico num que interessa de perto ao Ministério Público: a lista tríplice para indicação do Procurador-Geral da República. Único ramo do Ministério Público brasileiro a não possuir no direito positivo a regra da lista tríplice, o Ministério Público Federal contava com o costume constitucional dos últimos 5 (cinco) presidentes da República de consagrar nomes da lista emanada da associação de classe dos procuradores da República. Esse mecanismo ingressava no patrimônio constitucional do direito brasileiro.

O atual presidente, entretanto, não respeitou e quebrou a tradição constitucional. A lista tríplice, como qualquer ferramenta da democracia, não instala o reino da impessoalidade nas instituições — ela, na verdade, possui problemas —, mas sem a lista o ambiente institucional degenera. O Ministério Público como instituição do Estado deve manter uma respeitosa distância de todos os poderes, porque é da sua natureza defrontar-se com eles. É por isso que o constituinte cercou a instituição de prerrogativas análogas à da magistratura.

É necessário lembrar, ainda, que a indicação de um procurador-geral por um presidente da República traduz-se na escolha da única autoridade pública com poder para, eventualmente, denunciar criminalmente o próprio presidente perante o Supremo Tribunal Federal, em caso de delito comum. Isso não é pouco e ilustra bem os cuidados que o sistema constitucional deveria ter com esse relacionamento.

Embora o Senado funcione no complexo ato de nomeação do PGR, sua atuação ocorre apenas quando o chefe do executivo já exerceu sua escolha, ainda que sujeita à sabatina senatorial. Insisto nisso: a ideia da lista tríplice está em limitar o poder personalíssimo da autoridade com prerrogativa de indicação desde o início do processo, forçando, desse modo, que a inevitável relação entre a autoridade e o candidato se desenrole no ambiente mais institucional possível.

Mas dizia eu que, sem a lista tríplice, o quadro institucional piora. Com efeito. A ideia de institucionalidade é afetada quando a interlocução se estabelece com o indivíduo, e não com o coletivo, podendo até mesmo ocorrer que o eventual candidato represente, quando muito, a si próprio. Mais do que isso, a quebra do costume implicou num verdadeiro retrocesso constitucional, como reconhecido por órgão do Ministério Público Federal:

A lista tríplice para a escolha do Procurador-Geral da República pode ser vista como um desses passos rumo à consolidação e ao reforço do Estado Democrático de Direito. Portanto, a sua abrupta supressão, sem a inserção de um outro sistema mais efetivo para equilibrar os pesos e contrapesos dos critérios ideológicos e políticos-partidários que podem nortear o presidente da República na nomeação do Procurador-Geral da República, é uma medida regressiva na afirmação dos direitos fundamentais. Nesse caso, sua inconstitucionalidade seria manifesta [2]

Dando como certa a prefiguração do “homem cordial” e a suas manifestações entre nós, o não acatamento da lista tríplice estimula a prevalência de relação forjada no campo do pessoal, do afeto, do subjetivismo, altamente prejudicial à impessoalidade e à democracia, e que pode atingir, em última análise, a própria honorabilidade de um órgão de Estado que, por dever de ofício constitucional, incumbe a defesa do regime democrático. Procurador cordial não combina com a Constituição Federal de 1988.


[1] Raízes do Brasil, Companhia das Letras, edição crítica, “Um Conceito ou um baixo contínuo? Venturas e Desventuras do Homem Cordial”, 2016.

[2] Parecer do MPF na ação popular 5002921-21.2020.4.03.0000, em tramitação perante Justiça Federal de São Paulo

 é procurador regional da República em São Paulo e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

Categorias
Notícias

Televisitas em presídios: encarceramento e convivência familiar

São diversas as repercussões causadas pela pandemia do coronavírus nos estabelecimentos penais. Nesta gama de tópicos potentes — superlotação de presídios, precariedade das questões de higiene, entre tantos outros temas-, aborda-se, nesta construção, os reflexos que a pandemia do coronavírus gera nas visitas de familiares a pessoas presas em instituições prisionais no Rio Grande do Sul.

Entende-se relevante a temática em razão do reflexo que a experiência do aprisionamento gera na vida daqueles e daquelas selecionadas pelo sistema penal, mas também das famílias e das redes de afetos a eles relacionadas. As visitas, nesse sentido, possuem caráter excepcional na manutenção dos vínculos intra e extramuros e de convivência familiar. Mas não só. A possibilidade de trânsito de familiares e amigos no interior dos estabelecimentos penais também reforça aspectos materiais do aprisionamento. São estas as pessoas que, nas visitas, levam os “jambos” aos presos, como forma de complementação de alimentação e materiais de higiene e necessidades básicas muitas vezes não fornecidos pelo ente público.

Em termos legislativos, o direito da pessoa presa de receber visitas é assegurado pelo art. 41, X, da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/1.984), que garante a “visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados”. Também as Regras de Bangkok — Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres presas e Medidas não Privativas de liberdade para Mulheres Infratoras, nas regras 26,27 e 28, em complementação às Regras Mínimas de Tratamento de Reclusos, aborda a temática as visitas. Da perspectiva dos familiares, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), garante, no art. 19, que seja assegurado o direito à convivência familiar e comunitária à criança e ao adolescente, especificando que será garantida a convivência por meio de visitas periódicas a pais e mães presos. A pesquisa “Dar à Luz na Sombra” sintetiza o aporte legislativo relacionado às visitas nos diplomas legais supracitados.

A situação que se coloca hoje, porém, exige que a convivência familiar assegurada à pessoa presa a partir das visitas seja repensada. Em verdade, até a eclosão da pandemia do coronavírus as visitas eram realizadas presencialmente, sendo que, no Rio Grande do Sul, é possível que duas pessoas, parentes ou amigos, visitem o preso ou a presa por duas vezes na semana, momento esse que também é utilizado para repasse de suprimentos, como itens de alimentação e higiene. Ou seja, a visita não apenas contribui para a manutenção dos laços afetivos entre a família e/ou amigos e a pessoa presa, o que em última análise representa elemento fundamental no processo de ressocialização, como também contribui para a sobrevivência dessa pessoa enquanto ainda integrante do sistema prisional.

Como alternativa às visitas presenciais, buscando o não rompimento total do relacionamento afetivo do apenado ou apenada com o mundo exterior, foi instituído no Estado projeto de televisitas. Reguladas pela SUSEPE, as televisitas são realizadas pelo aplicativo privado Skype, com duração de aproximadamente dez minutos, e são supervisionadas por um agente prisional.

As televisivas são uma inovação no contexto prisional, e, em meio aos entraves causados pela pandemia, evidenciam-se como possibilidades de manutenção dos vínculos familiares. Os potentes questionamentos diante desse novo panorama centram-se nas capacidades de que as medidas sejam implementadas para todas as pessoas presas, considerando dificuldades estruturais já enfrentadas pelas instituições — antes mesmo da pandemia.

A convivência familiar é direito fundamental de crianças e adolescentes, assegurado pelo artigo 227 da Constituição Federal, direito este que somente pode ser obstado através de decisão judicial, quando houver alguma das hipóteses de destituição do poder familiar, ou quando a convivência representar algum risco para a criança e seja necessária a aplicação de medida protetiva. Ausentes tais situações, a criança tem o direito de conviver com seus pais, ainda que um deles esteja recolhido junto ao sistema prisional, conforme expressamente previsto pelo artigo 19, § 4º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ainda nesta linha, aponta-se que a garantia dos direitos de crianças e adolescentes é um dever conjunto da família, da sociedade, e do Estado. Todavia, em que pese seja conjunto, deve o Estado garantir o suporte necessário para a concretização de tais direitos, por meio de políticas públicas que visem a superação de eventuais barreiras que possam impedir que a família consiga propiciar à criança um local adequado ao seu desenvolvimento. Tal é a situação da convivência familiar com pais privados de liberdade, em que se demanda que haja por parte do Estado a criação de uma sistemática de visitação nos estabelecimentos prisionais capaz de garantir o contato familiar. O atual estado de pandemia mundial do novo coronavírus, que demanda isolamento social para evitar sua propagação, requer reflexões e inovações sobre a manutenção do direito de visitas às pessoas presas, sem que seja colocada em risco a saúde pública, para o qual as televisitas se apresentam como alternativa possível.

Em que pese, à primeira vista, as televisitas se mostrem como uma adequada forma de garantia do direito de convivência neste período de suspensão das visitas presenciais, é preciso que se olhe a questão a partir das implicâncias práticas e fatores que podem interferir em sua efetividade.

Em primeiro lugar, necessário que se atente à população carcerária no estado, que supera os 40 mil. Dado este contingente, parece pouco provável que as visitas virtuais sejam disponibilizadas a todas as pessoas presas, de modo que parte – se não a maioria delas – não poderá exercer seu direito à visitação, ponto ainda mais sensível quando pensarmos naquelas que tenham filhos menores de idade, os quais, consequentemente, também estarão tendo violado o seu direito à convivência familiar com os pais.

O segundo ponto a ser destacado é o do curto tempo de duração das televisitas, que, conforme a regulamentação, deverão ser de, no máximo, dez minutos. Este período de tempo se mostra ínfimo e incapaz de caracterizar efetiva convivência familiar, especialmente se comparado com o tempo normal das visitas presenciais, que geralmente superam uma hora de duração. A convivência familiar com pais que estejam presos, em razão da especificidade desta situação, não pode ser tão intensa quanto seria se estivessem em liberdade, e certamente a determinação de isolamento social impõe certas barreiras ao exercício deste direito. A convivência por meio de chamadas virtuais se mostra uma excelente alternativa, contudo, estando limitada ao máximo de dez minutos, não demonstra uma atitude do Estado em garantir que esse direito seja efetivamente exercido – mas apenas garantido em seu patamar mínimo o suficiente para que o ente estatal se exima de eventual responsabilidade por obstar a convivência familiar.

Terceiro, as visitas virtuais exigem que o visitante tenha acesso à internet em sua residência, com aparelho e conexão que tenham capacidade de suportar o aplicativo Skype. Deve ter-se em mente a realidade da parcela da população brasileira que, em geral, é selecionada pelo sistema penal – ou seja, as camadas sociais mais baixas.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), de 2017, há um crescimento no acesso à internet pela população brasileira. De acordo com os dados da referida pesquisa, 79% dos domicílios da zona urbana da Região Sul possuem banda larga, dos quais 20,1% possuem somente banda larga fixa, e 19,4 % somente banda larga móvel, sendo o celular o principal meio de acesso à internet, utilizado por 97% dos usuários. Porém, esses dados variam de acordo com a localidade, tendo em vista que, na zona rural, o percentual de domicílios permanentes na Região Sul com acesso à internet somente por banda larga fixa é de 61,1%, e somente por banda larga móvel de 37,4%. Os dados também são diferentes quando isoladas as classes sociais, verificando-se na camada mais pobre, as classes D e E, que o acesso à internet está presente em 48% dos domicílios.

Para além disso, considerando que os familiares e amigos não mais se farão presentes fisicamente no estabelecimento prisional, há de se considerar a possibilidade de que a pessoa presa se veja estruturalmente desassistida, dado que não poderá contar com os suprimentos que lhe são entregues durante as visitas.

Assim, ainda que se pudesse garantir a todos os aprisionados acesso ao sistema de televisitas, não é possível garantir que suas famílias teriam a mesma oportunidade, haja vista que o acesso à internet não está presente em todas as residências – e, nas que estão, considerável parcela usa somente a rede móvel, mais instável para a realização de chamadas virtuais. E, novamente trazendo o Estatuto da Criança e do Adolescente, não é possível que os filhos sejam obstados do convívio familiar em razão da sua pobreza, sendo dever do Estado garantir as condições para o exercício deste direito.

Se não é possível garantir que todos os familiares terão acesso à ferramenta utilizada para as televisitas, pelo menos que seja disponibilizado às famílias o equipamento à disposição nos órgãos estatais para esta finalidade. Uma possível solução a isto seria a regionalização dos atendimentos, com agendamento conjunto entre o estabelecimento prisional e os serviços de atendimento à população, como os CRAS, Conselhos Tutelares, e até mesmo escolas e universidades que se disponibilizem e contem com os equipamentos necessários para a realização das televisitas, para garantir que aqueles familiares que não possam acessar o Skype de suas residências ainda assim tenham acesso a essa modalidade de visitação.

Por certo, a pandemia do coronavírus é a maior crise sanitária e de saúde vivida nos últimos tempos. De forma ainda embrionária, e trazendo mais perguntas do que respostas, pretende-se dar eco a questões urgentes e graves que, dentre tantos atravessamentos, são (in)visíveis para muitos. Em um sistema de justiça criminal seletivo, mais uma vez, serão famílias vulnerabilizadas as mais afetadas, o que exige atenção e complexidade de análise. Os tempos atuais são nebulosos, incertos e desconhecidos; os problemas já existentes, contudo, se potencializam e se reinventam. Este artigo, pois, junta-se ao coro de escritos que pretendem abrir caminhos para potenciais debates acerca do sistema de justiça criminal em tempos de pandemia: diálogo urgente e necessário.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


Brasil. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras. Brasília, 2016. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/cd8bc11ffdcbc397c32eecdc40afbb74.pdf. Acesso em: 14 abr 2020.

Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. § 4o Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independentemente de autorização judicial.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Brasília, 2015. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/201clugar-de-crianca-nao-e-na-prisao-nem-longe-de-sua-mae201d-diz-pesquisa/pesquisa-dar-a-luz-na-sombra-1.pdf. Acesso em: 15 de abr de 2020.

SUSEPE. Portaria nº 160/2014, de 29 de dezembro de 2014. Disponível em: <http://www.susepe.rs.gov.br/upload/1461590367_Portaria%20de%20Visitas%20SUSEPE%202014%20V13.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2020.

SEAPEN E SUSEPE. Portaria Conjunta nº 002/2020, de 8 de abril de 2020. Disponível em: <http://www.intrasusepe.rs.gov.br/upload/1586368502_Portaria%20visitas-2.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2020.

DEPEN. Levantamento Nacional 2019. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/infopen>. Acesso em: 20 abr. 2020.

SUSEPE. Horário das visitas. Disponível em: <http://www.susepe.rs.gov.br/upload/1577458130_Horários,%20regulamentação%20e%20%20confecção%20de%20carteiras.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2020.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2017. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 20 abr. 2020.

 é mestranda bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 é advogada e economista. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 é mestranda bolsista CAPES no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.