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Vieira Marins: Moratória parcial no apoio a insolventes

Em razão da pandemia da Covid-19, surgiram várias vozes externando preocupação com o desempenho da economia brasileira, em especial se o período de quarentena for prolongado ou se houver outros surtos da doença durante o ano. O posicionamento da imensa maioria dos economistas se dirige no sentido de que serão necessárias intervenções estatais amplas, principalmente no que tange à concessão de crédito com juros baixíssimos às pequenas e médias empresas, à liberação de dinheiro para pessoas de baixa renda (incluídos os trabalhadores informais) e à destinação de mais recursos para o SUS.

No âmbito federal, as medidas de intervenção na economia poderiam ser adotadas por meio de créditos extraordinários vinculados às despesas urgentes e imprevistas decorrentes da calamidade pública (artigo 41, III, da Lei n° 4.320/64), a qual, tendo em vista o Decreto Legislativo n° 6/2020 do Congresso Nacional, eximiria o administrador público do atingimento dos resultados fiscais (artigo 65, II, da LC n° 101/2000) da Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei n° 13.898/2020). Já na esfera estadual e municipal, as autorizações de crédito extraordinário possivelmente esbarrariam na grave situação fiscal da maior parte dos governos subnacionais, os quais, além de, muitas vezes, arrecadarem menos do que o necessário para as suas despesas correntes, ainda possuem vultosas dívidas em relação à União as quais, ao que parece, serão suspensas temporariamente.

No que diz respeito aos municípios de pequeno porte do interior do país (considerados aqui aqueles com menos de 100 mil habitantes), ou mesmo aos de médio porte (no caso em tela, municípios com população entre 100 mil e 500 mil habitantes) que não façam parte de regiões metropolitanas ou que não sejam polos regionais, a autorização de créditos extraordinários pode se tornar ainda mais difícil de ser concretizada, ou mesmo ser insuficiente ante a gravidade da crise econômica local. Assim, a depender da análise contábil e econômico-financeira da administração pública municipal, surge a possibilidade de se utilizar um instrumento de desoneração tributária diferente para tentar manter em atividade as empresas locais: a moratória acompanhada de remissão parcial do crédito tributário.

Tendo em vista que a atual pandemia, provavelmente, provocará a pior crise econômica desde a “quebra da Bolsa” de 1929, o mero parcelamento do crédito tributário poderá ser insuficiente para que contribuintes localizados em pequenos e médios municípios do interior do país se mantenham ativos economicamente em especial, se forem prestadores de serviço. Isto é, diante da magnitude da crise econômica, e não obstante a liberação de recursos oriunda do Governo Federal (a qual se afasta das políticas ultraliberais anteriores), pessoas jurídicas e empreendedores individuais poderão se encontrar no limiar da insolvência, mesmo que governos locais ofereçam moratórias em seu favor.

Surge, então, a figura da moratória acompanhada da remissão parcial do crédito tributário: além de se promover o parcelamento da dívida do Imposto sobre Serviços (ISS), nascida durante os meses anteriores e concomitantes à pandemia, concede-se o perdão de parte da dívida tributária. Aplicar-se-iam, portanto, as regras dos artigos 152 a 155-A do CTN, bem como do artigo 172 do mesmo diploma legal, em especial dos seus incisos I e IV, que tratam, respectivamente, da situação econômica do sujeito passivo e das condições peculiares de determinada região do território da entidade tributante.

Por óbvio, a concessão da moratória acompanhada da remissão parcial do crédito tributário dependeria não só de uma lei específica a respeito do tema como também de análises contábeis e financeiras a serem executadas pelo governo local. Contudo, em caso de resposta positiva da administração tributária municipal, o instrumento jurídico a ser adotado possuiria plena compatibilidade com o Código Tributário Nacional.

Já no que se refere ao artigo 14 da LC n° 101/2000 (LRF), a prefeitura municipal teria de apresentar estudos financeiros que demonstrassem que, diante da paralisação da economia local por força da calamidade pública, a inicial renúncia de receita não seria propriamente uma renúncia de fato, uma vez que os contribuintes, em razão de estarem impedidos de desenvolver suas atividades empresariais, não teriam como gerar faturamento e renda capazes de cumprir com suas obrigações legais ordinárias (incluídas, obviamente, as tributárias). A estimativa do impacto orçamentário-financeiro, por conseguinte, teria de demonstrar que, no período em debate, sequer haveria a perspectiva de arrecadação tributária do ISS, tendo em vista a alta probabilidade de “quebra” das empresas em decorrência da calamidade pública (o que geraria perdas de receita tributária não só no exercício orçamentário atual, mas também nos seguintes).

Por fim, alguns poderiam questionar a proposta de moratória acompanhada de remissão parcial do crédito tributário ao afirmar que se trataria de mais um exemplo de “guerra fiscal”, contrariando o artigo 88 do ADCT (incluído pela EC n° 37/2002). Contudo, não haveria a possibilidade de “guerra fiscal”, pois não há de se falar em disputa entre governos subnacionais por investimentos privados quando se está diante de uma calamidade pública. Vale dizer, há situações em que, seja por uma questão de fato ou de direito, simplesmente não é possível a ocorrência de competição tributária sendo este justamente o caso de pandemias que gerem a decretação de calamidade pública.

A hipótese em debate também poderia ser entendida como um benefício fiscal concedido em caráter emergencial e transitório, tendo por objetivo apenas enfrentar uma situação excepcional, sem que haja o intuito de promover a transferência de investimentos privados localizados em outros municípios. Nesse aspecto, vale lembrar os desastres ambientais ocorridos no município de Mariana, em novembro de 2015, no município de Brumadinho, em janeiro de 2019, na Amazônia Legal, em agosto de 2019, e na costa da Região Nordeste, em outubro de 2019, os quais demonstram como pequenas e médias empresas locais, profissionais autônomos e empresários individuais podem ser gravemente afetados por situações extremas e excepcionais, as quais têm o potencial de tornar insolventes comerciantes, prestadores de serviço, pecuaristas, agricultores, pescadores e até mesmo pequenas indústrias.

 é procurador da Fazenda Nacional, Mestre e Doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ.

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Menezes Breyner: Direito Tributário de (em) crise?

Opinião

Com o coronavírus, temos um Direito Tributário de (em) crise?

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A pandemia do coronavírus trouxe impactos de inúmeras ordens, os quais não cabe aqui enumerar ou discutir em sua integralidade, se é que tal tarefa seria viável. Destaque-se, porém, que um dos efeitos geralmente reconhecidos é a queda da atividade econômica de diversos setores, comprometendo inclusive sua liquidez e consequente capacidade de pagar tributos. Pela ótica do poder público, a queda de arrecadação e a necessidade de recursos para sustentar a sobrecarga da rede de proteção social exigida pelos direitos fundamentais aparentam propor uma equação de difícil resolução.

Contudo, questões relativas à compreensão do nosso sistema tributário surgem em um panorama mais geral a partir dessa nova, imprevista e irresistível circunstância.

No primeiro ponto, podemos indagar se o direito tributário positivado está preparado para absorver o impacto da calamidade pública sobre a capacidade de pagamento dos contribuintes. Não resta dúvida que ao Poder Legislativo está aberta a possibilidade de reformatar ao menos algumas obrigações tributárias, respeitando-se a igualdade tributária, de forma a adequar a tributação ao momento de crise pandêmica. O Poder Executivo pode atuar dentro dos limites da lei e nas matérias que não estão sujeitas à reserva legal, a exemplo da alteração do prazo de pagamento de tributos durante o período de crise. No plano federal, essa regra existe (Portaria MF nº 12/2012), mas seu cumprimento sofreu resistência da Administração Pública e motivou o deferimento de liminares para assegurar a prorrogação nela prevista. A propósito desse episódio, faz-se pertinente perquirir os limites da atuação do Poder Judiciário nesse contexto. No caso mencionado, os juízes fizeram valer uma norma já colocada pelo Poder Executivo. Contudo, a questão permanece em aberto na ausência de atuação prévia de Legislativo e Executivo. A resposta provisória a ser testada parece passar pela aplicação judicial da equidade, cujas admissão e limite encontram previsão expressa no artigo 108, IV e §2º do CTN.

No segundo ponto, a questão se coloca no plano da constitucionalidade da criação ou do aumento de tributos para suprir a demanda financeira do combate à crise. Relembre-se, por oportuno, o acolhimento da teoria finalística pelo STF para abordar a classificação e a validade das espécies tributárias (teoria pentapartida), ainda que em casuísmo legitimador de “contribuições sociais” determinadas. Faz-se necessário testar a compreensão finalística das espécies tributárias em momentos de crise, de forma a verificar se seria ela uma classificação universalizável e que alcançaria o efeito de limitar o poder de tributar em qualquer situação de calamidade pública formalmente reconhecida. Mais especificamente o debate passa por analisar se a Constituição esgotou a indicação de quais são os tributos a serem utilizados para atendimento a determinadas finalidades, em especial a finalidade de custear o combate a crises decorrentes de calamidade pública (artigo 148, I) e a sobrecarga do sistema de saúde (artigo 195).

Tais indagações assumem um relevante aspecto geral diante da imprevisibilidade que marca o mundo globalizado e da impossibilidade de antevisão de uma limitação territorial das consequências de eventos ocorridos nos mais diversos locais do globo terrestre, ultrapassando a especificidade da crise pandêmica do coronavírus. O Direito Tributário de crise merece, portanto, uma análise sob o prisma dogmático permanente e com pretensão de universalização, sob pena de ter-se mais um motivo, além das já conhecidas deficiências de nosso sistema (basta ver as discussões sobre as propostas de reforma tributária), para reforçar seu reconhecimento como um Direito Tributário em crise.

 é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. Mestre e doutorando em Direito Tributário (UFMG). Professor da Faculdade de Direito Milton Campos.

Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2020, 11h18