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Feliciano e Ebert: Coronavírus e meio ambiente de trabalho

Nos primeiros dias de 2020, o mundo soube do surto endêmico de uma nova forma de coronavírus o SARS-CoV-2 , à altura restrito à cidade chinesa de Wuhan. Ao contrário de seus análogos já conhecidos, a doença provocada pelo SARS-Cov-2 conhecida como Covid-19 tinha por características sintomáticas a manifestação mais intensa e duradoura de coriza, febre, diarreia, vômito, falta de apetite, perda do olfato e do paladar, aguda dificuldade respiratória e dores no corpo que poderiam evoluir para um quadro de pneumonia grave.

Nas semanas e meses seguintes, o surto ganharia o status de epidemia, atingindo as demais metrópoles chinesas e extrapolando as fronteiras daquele país em direção ao Japão e à Coreia do Sul para, então, dispersar-se por todo o mundo, no embalo do frenético trânsito de pessoas e de bens a caracterizar a economia globalizada do século XXI e adquirir o grau de pandemia.

No final de fevereiro, após a Covid-19 se propagar em solo europeu, foram registrados os primeiros casos no Brasil. No decorrer do mês de março, os doentes já eram contados aos milhares e os mortos, às centenas, restando ao Ministério da Saúde reconhecer e anunciar a ocorrência de transmissão comunitária em todo o território nacional.

A partir do momento em que se reconhecia nacionalmente o fenômeno da transmissão comunitária, a dispersão do coronavírus adquiriu outro patamar, tornando-se uma questão efetivamente ambiental, na medida em que a circulação do microorganismo nos espaços naturais e artificiais que abrigam a população em geral passou a consubstanciar risco biológico sistêmico e agravado. Em tal estágio, qualquer indivíduo está sujeito, em maior ou menor grau, a adquirir a Covid-19 nos lugares em que frequenta, e, mais, a transportar o agente transmissor para outros espaços, de modo que o vírus passou a ser um vetor biológico de base antrópica (porque disseminado pelo ser humano) passível de interferir negativamente na qualidade de vida da coletividade e de seus integrantes.

Nesse contexto, o meio ambiente do trabalho, a compreender o sistema formado pelas condições físicas, psíquicas e organizacionais que circundam os indivíduos no desempenho de suas atividades profissionais, passou a figurar como um possível espaço de entronização e circulação do coronavírus, de modo que aquele risco agravado, presente na generalidade dos espaços naturais e artificiais, também passou a integrá-los e a condicionar decisivamente a qualidade de vida dos trabalhadores ali inseridos.

Pode-se afirmar, portanto, que a entronização e a circulação do coronavírus nos espaços laborais constitui um nítido suposto de poluição labor-ambiental, na medida em que tal possibilidade acaba por instituir naqueles espaços um estado de “desequilíbrio sistêmico no arranjo das condições de trabalho (e) da organização do trabalho”, de modo a ocasionar aos indivíduos ali ativados “riscos intoleráveis à segurança e à saúde física e mental (…) arrostando-lhes, assim, a sadia qualidade de vida”.

No ordenamento jurídico brasileiro, com efeito, o direito ao meio ambiente equilibrado, como consagrado pelo artigo 225, caput, da Constituição, abrange todos os aspectos naturais, artificiais e culturais logo, físicos e imateriais que circundam os seres humanos e que interferem na sua sadia qualidade de vida, incluindo-se aí aqueles que integram e condicionam o trabalho por eles desempenhado.

E como corolário do direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado, a Constituição Federal consagrou, no seu artigo 7º, XXII, o direito social jusfundamental à “redução dos riscos inerentes ao trabalho”, que: a) realiza no plano laboral o princípio jurídico-ambiental da melhoria contínua ou do risco mínimo regressivo; b) é titularizado por todos os trabalhadores, sejam ou não subordinados; e c) traduz-se, para os empresários, nos deveres de antecipação, de planejamento e de prevenção dos riscos labor-ambientais.

Em linha com tal diretriz constitucional, a Convenção nº 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, estabelece em seus artigos 16 a 19 que as empresas são obrigadas a garantir a segurança de seus processos operacionais com relação à integridade psicofísica de seus trabalhadores, bem como a implementar todas as medidas cabíveis, segundo a melhor técnica disponível, para elidir ou minimizar os riscos existentes em seus ambientes de trabalho, incluindo-se, aí, a elaboração de procedimentos destinados a lidar com situações de urgência .

Logo, à luz do conceito de meio ambiente do trabalho contemplado pela Constituição Federal de 1988, tem-se que o ingresso do coronavírus nos locais de trabalho, em um contexto de transmissão comunitária, configura um efetivo risco a desestabilizar o equilíbrio das condições de trabalho e a qualidade de vida dos trabalhadores, configurando típica hipótese de poluição labor-ambiental delineada no artigo 3º, “a” e “b” da Lei 6.983/1981.

Note-se, ademais, que, de acordo com a mesma Lei nº 6.938/81, o poluidor é classificado em seu artigo 3º, IV, objetivamente, como “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. Daí porque, oportunizando a entronização e a circulação do coronavírus no meio ambiente artificialmente organizado, em condições de transmissão comunitária, há risco proibido ou “intolerável” que convola o empregador em poluidor, para os fins do referido dispositivo, haja ou não culpa no fato da contaminação interna. Daí porque os tomadores de serviços em geral se encontram obrigados, por força dos artigos 7º, XXII, e 225, caput, da Constituição Federal e dos artigos 16 a 19 da Convenção nº 155 da OIT a implementar programas e medidas concretas de prevenção destinadas a eliminar ou minimizar as ameaças derivadas do novo coronavírus.

Como antecipamos e ainda à luz da Convenção nº 155 da OIT , as medidas a serem implementadas pelos empresários, no resguardo do meio ambiente laboral e da integridade psicofísica dos trabalhadores, não se limitam às determinações legais e regulamentares expedidas pelos governos federal, estadual, municipal e/ou distrital, abrangentes das medidas concretas esperadas para este momento crítico. Nem tampouco há plena exoneração de responsabilidades (especialmente as administrativas e civis) apenas porque tais determinações foram observadas, o que redundaria em exacerbado formalismo e reducionismo jurídico incompatível com um ordenamento integrado por princípios cogentes.

Bem ao revés, o que os artigos 16 a 19 da Convenção nº 155 da OIT impõem aos empresários com respaldo, igualmente, nos artigos 7º, XXII e 225, caput, da Constituição Federal é o dever geral de proteção, de prevenção (= prevenção/precaução) e/ou de indenidade labor-ambiental, pelo(s) qual(is) compete aos gestores dos riscos das atividades econômicas (i.e., aos empresários e afins) o planejamento, a antecipação e a implementação das medidas que se mostrem necessárias, diante dos casos concretos, para evitar ou minimizar as situações de potencial contágio dos trabalhadores pelo coronavírus.

Formuladas tais premissas, pode-se afirmar, em termos gerais, que a primeira obrigação dos empresários em face dos riscos de introdução e proliferação do coronavírus nos locais de trabalho consiste na elaboração de um plano abrangente, no âmbito do respectivo PCMSO, capaz de: I) antecipar e registrar as possibilidades de ingresso daquele microorganismo em seus estabelecimentos; e II) prever as medidas coletivas e individuais de urgência a serem implementadas nas unidades produtivas com vista a debelar ou minimizar as possibilidades de contágio pelo SARS-Cov-2 por parte dos trabalhadores, na linha do que preleciona o artigo 18 da Convenção nº 155 da OIT.

Nessa alheta, a NR-1 do extinto Ministério do Trabalho (e, atualmente, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia), já com a nova redação conferida pela Portaria nº 6.730, publicada no DOU de 9/3/2020, estabelece textualmente, em seu item 1.4.1, que os empresários estão obrigados a avaliar e antecipar de maneira adequada e realista os riscos ambientais presentes nos locais de trabalho, bem como a agir concretamente para elidir ou minimizar tais riscos, por intermédio: I) da reorganização dos fatores de produção; II) do estabelecimento de medidas de proteção coletiva; e III) do fornecimento de equipamentos de proteção individual.

Em segundo lugar, o dever geral de indenidade labor-ambiental subjacente aos sobreditos dispositivos constitucionais e convencionais impõe aos empresários a implementação “intramuros” das medidas comezinhas de planejamento emergencial nacionalmente preconizadas para toda a população, em observância às recomendações técnicas emanadas das autoridades sanitárias para o combate à proliferação do coronavírus, sendo, portanto, plenamente válidas para os locais de trabalho as seguintes diretrizes sanitárias de aplicação universal:

a) o uso de equipamentos coletivos e individuais de segurança biológica, específicos para os riscos da pandemia (p. ex: álcool em gel e máscaras);

b) o distanciamento mínimo de, aproximadamente, dois metros entre os trabalhadores;

c) a instalação e a disponibilização massiva de equipamentos e insumos destinados à lavagem frequente das mãos;

d) a ventilação dos ambientes e a otimização da circulação do ar;

e) a higienização constante dos equipamentos de uso coletivo;

f) o afastamento imediato dos sujeitos integrantes dos chamados “grupos de risco”; e

g) o afastamento imediato dos sujeitos portadores de sintomas que permitam razoavelmente supor a contaminação pelo SARS-Cov-2;

Em respaldo às imposições acima descritas que, insista-se, deixam de ser meras recomendações sanitárias e se convolam em genuínas obrigações jurídicas para o empregador, mercê do risco profissional engendrado no interesse da atividade econômica e do seu dever de garante do equilíbrio labor-ambiental , a Organização Internacional do Trabalho editou, recentemente, o informe intitulado Las normas de la OIT y el Covid-19 (Coronavirus), em que reitera as obrigações emanadas da Convenção nº 155 no sentido de que os empresários devem: I) implementar todas as medidas possíveis, segundo a melhor técnica, para reduzir ao mínimo os riscos inerentes à exposição ocupacional ao coronavírus; II) proporcionar aos trabalhadores as informações adequadas sobre tais riscos; III) estabelecer procedimentos de urgência para a situação geral da pandemia; e IV) notificar os casos de contaminação às autoridades sanitárias.

Caso tais obrigações essenciais não sejam observadas pelos empresários, ter-se-á a instalação de risco proibido nos ambientes de trabalho por eles administrados, com degradação ambiental de base antrópica que permite considerá-los poluído, comprometendo potencialmente a vida, a saúde, a integridade psicofísica e/ou o bem-estar não apenas dos trabalhadores (subordinados ou não), mas também de toda a comunidade de entorno, mormente no atual contexto de transmissão comunitária do coronavírus.

Nessa esteira, como dizíamos, a omissão patronal no que concerne à antecipação, à prevenção e ao combate efetivo dos riscos representados pela entronização do coronavírus em seus estabelecimentos e isso se aplica a todas as atividades que envolvam trabalhadores, sejam ou não empresariais  sujeita-os, nos termos do artigo 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 à responsabilização objetiva (i.e., independentemente da existência ou comprovação da culpa subjetiva de prepostos do empregador) por todos os danos físicos e psíquicos que, por conta da Covid-19, vierem a acometer os trabalhadores contagiados com o SARS-Cov-2, inclusive em função da inobservância das diretrizes sanitárias amplamente divulgadas para a contenção dos contágios.

Quanto ao nexo causal propriamente dito, mormente após a suspensão da eficácia do artigo 29 da MP nº 927/2020 pelo STF (ADI nº 6.342/DF), havendo evidências de que o trabalhador infectado com o SARS-Cov-2 expôs-se à contaminação em função do seu trabalho, ou mesmo na situação de trabalhadores ativados em empresas nas quais já se detectou a contaminação comunitária intramuros , pode-se desde logo presumir o nexo de causalidade entre a afecção e a atividade laboral (CLT, artigo 818, §1º), cabendo ao empregador fazer a prova contrária.

Por fim, convém recordar que a Convenção nº 155 da OIT, em resguardo aos relevantíssimos bens jurídicos por ela protegidos (e igualmente tutelados pelos artigos 7º, XXII, e 225, caput, da Constituição Federal), legitima a paralisação do trabalho por parte dos próprios obreiros, ex vi de seus artigos 13 e 19, “f”, ante a constatação de um risco grave e iminente à sua vida ou à sua saúde, tal como a transmissão comunitária do coronavírus no meio ambiente de trabalho. Esse direito de resistência, se exercido coletivamente, configurará clara hipótese de greve ambiental, à qual não se aplica a regra do artigo 7º, caput, in fine, da Lei 7.783/1989, pois ‘tem por finalidade resguardar a segurança, a saúde e a higiene do trabalhador em face da degradação ambiental”.

Por tudo o que se viu, é certo que o contágio pelo SARS-Cov-2 configura, no atual contexto de transmissão comunitária e de circulação irrestrita do vírus, um novo risco biológico e social, que interfere sistematicamente no equilíbrio do meio ambiente humano, tanto em sua dimensão natural como em sua dimensão artificial (e, portanto, também no meio ambiente do trabalho). Essa nova realidade demanda dos empregadores, gestores que são de seus próprios espaços produtivos, a implementação de todas as medidas antecipatórias destinadas a neutralizar ou minimizar os impactos do coronavírus.

Por outro lado, internalizado o SARS-Cov-2 no meio ambiente de trabalho, transformando o estabelecimento em uma caixa de ressonância infectológica, configura-se um estado de degradação labor-ambiental, originado pelo elemento humano, que a legislação define como poluição (Lei 6.938/1981, arigo 3º). Sob tais circunstâncias, o empregador passa a responder civilmente pelos danos experimentados por seus trabalhadores, caso desenvolvam a Covid-19, independentemente da existência ou da prova de culpa lato sensu e, havendo dolo ou culpa, poderá responder pessoalmente até mesmo por ilícitos penais.

Para evitar tais consequências, empregadores em geral devem lançar mão de medidas de planejamento e de ação tão excepcionais e ingentes quanto a própria pandemia, transcendendo a lógica do custo-benefício (monetização) para colimar sobretudo o resguardo, na maior medida possível, da vida, da saúde e da integridade psicofísica dos seus trabalhadores.

 é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, livre-docente em Direito do Trabalho e doutor em Direito Penal pela FDUSP, doutor em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa.

 é advogado, professor universitário, doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

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Covid-19 traz lições históricas a tomar

Já se escreveu (Antonio Manuel Hespanha) que a história é um guarda-roupa no qual cabe qualquer fantasia. Tudo se exemplifica, se justifica, se explica. Para tudo há uma lembrança pronta. Eu sempre resisti à armadilha posta por aqueles que acham que a história traz lições e que se repete. É o pensamento de Cícero, o tribuno romano que acreditava que a história era a mestra da vida. Será? Pensava que não. Acho que chegou a hora de mudar de ideia. Penso agora que sim, que a história também ensina e ilustra. Em tempos de Covid-19 há lições históricas a tomar. Quais?

Além de ação (muita ação) o enfrentamento da Covid-19 sugere alguma (muita) reflexão. Há problemas historiográficos, comparativos, dramatúrgicos, políticos (principalmente), epistemológicos (de paradigmas científicos). A Covid-19 sugere também algumas leituras, isto é, para privilegiados que podemos substituir o deslocamento e o trânsito e a espera pela paz dos livros.

Há títulos disputadíssimos. De algum modo são livros que tratam de pestes e de mortes incontáveis. Nessa lista, “A Peste”, de Albert Camus, “O Decameron”, de Giovanni Boccaccio, “Morte em Veneza”, de Thomas Mann. Cristiano Paixão, competentíssimo professor de História do Direito, inclui ainda “O ensaio sobre a cegueira”, do José Saramago. Nesse último livro há dois personagens que sobressaem: a mulher do médico e o cão das lágrimas. Simbolizam a solidariedade, a compreensão para com o outro e a disponibilidade permanente para ajudar. Precisamos imitar a mulher do médico e o cão das lágrimas. Necessitamos de solidariedade e de compreensão.

Quanto ao tema da história há semelhanças e paralelos com fatos passados que chamam a atenção, e que dão ao registro histórico uma autoridade inegável. Refiro-me ao problema da varíola e a revolta da vacina (1904), à gripe espanhola (1918) e ao surto de meningite (meados da década de 1970). Pode-se compreender nosso tempo e nossos horrores no contexto dessas experiências? Claro que sim. Tenho a impressão de que sempre houve negacionistas, ignorantes, brutamontes, aproveitadores da desgraça. Mas também há bem-intencionados. Identifiquemos e dialoguemos com essas figuras. Apoiemos essas últimas, repudiemos aquelas primeiras.

Em 1904 o então presidente Rodrigues Alves (que morreu de gripe espanhola 15 anos depois) contou com uma trinca imbatível: Pereira Passos (o prefeito do Rio, que havia estudado a reforma do Barão Haussmann em Paris), Lauro Müller (que coordenou a reforma do porto do Rio de Janeiro) e Oswaldo Cruz (diretor da saúde pública, o tirano da vacina, como seus críticos o definiam). No combate à varíola a vacinação tornou-se obrigatória.

Contra a ciência e a vacina estavam os positivistas, os florianistas, Lauro Sodré e o próprio Rui Barbosa. Quem diria, Rui, a (suposta) mente mais iluminada da época, condenava a vacina, não admitindo se envenenar, com a introdução, em seu corpo “de um vírus cuja influência existem [iam] os mais bem fundados receios de que seja condutor da moléstia ou da morte”. Estava de olho nas eleições, que sempre perdeu. Já havia a necropolítica, bem antes da criação desse neologismo macabro. A má política já tinha a mania de negar a ciência.

O combate à febre amarela foi conspurcado com uma obstinada perseguição de pobres que habitavam o centro do Rio de Janeiro, o que justificou a revolta popular. Bondes incendiados, barricadas e muitas prisões. A necropolítica aproveitou o momento para negligenciar o pobre. Nenhuma novidade.

Sigo com a “influenza”. A censura em tempos de epidemia explica, inclusive, o batismo da gripe de 18-19 como “espanhola”. Era o tempo da primeira guerra mundial. Os países envolvidos no conflito não noticiavam as mortes pela gripe; era propaganda negativa. A Espanha, porque fora da guerra, não se submetia a essa regra. Os jornais espanhóis tratavam do assunto, o que resultou na identificação da gripe com o país. A gripe espanhola é, assim, mais um exemplo do odioso controle de informações, em desfavor da população. A gripe era um segredo de guerra. Matou mais do que os campos de batalha. A necropolítica política desinforma. Ilude.

Nas primeiras páginas do recentemente lançado “Metrópole à beira-mar” o escritor Ruy Castro narra com precisão de pormenores a tragédia da gripe no Rio de Janeiro. Um contemporâneo da tragédia, Lima Barreto, não tratou da gripe espanhola em suas crônicas, talvez porque internado pelo alcoolismo. No entanto, em seu Diário, registrou a violência policial na revolta da vacina. Lê-se em outro contemporâneo, João do Rio, na “Alma encantadora das ruas”, uma crônica, “Sono calmo”, que descreve o ambiente dos cortiços, cujos proprietários alugavam esteiras para dormir. Os locatários foram sistematicamente dizimados pelas autoridades. Pedro Nava, o grande memorialista, conta que viu uma criança tentando mamar no seio da mãe, morta pela gripe, caída no chão. Gilberto Amado, intelectual e político sergipano que vivia no Rio, conta-nos que via defuntos jogados em caminhões.

A Biblioteca Nacional disponibiliza em sua hemeroteca digital os jornais da época. Sugiro a leitura dos classificados do Jornal do Brasil. Vendiam todos os tipos de remédios milagrosos. Pregava-se o uso do sal de quinino, que na verdade matava por intoxicação. Difundia-se o uso da aspirina, que em doses cavalares era letal. Tragédias se equivalem.

Há também uma dramaturgia que acompanha essas levas de mortes maciças. Parece-me a dramaturgia de toda tragédia. Nega-se o fato, resiste-se a um novo cotidiano, o que fundamental para a retomada da situação perdida. Essa negação se fazia por intermédio da divulgação de informações falsas, a exemplo de um reclame do sindicato dos trabalhadores do comércio no Rio, que afirmava que a gripe era benigna e que apenas atacava os mais fracos. Recomendavam um purgante como remédio certeiro.

No caso da meningite, e nesse caso meu registro é biográfico, e não bibliográfico, recordo-me que se confundia meningite com insolação, retomando-se um determinismo sanitário paliativo. Não se explicou o que houve. E também não se perguntava. Por quê?

Uma reflexão em torno dessas três epidemias (varíola, gripe espanhola e meningite) pode permitir o alcance de denominadores comuns de orientação para qualquer forma de ação no momento presente: informação e precaução. A boa informação (o que de imediato exclui a mensagem do zap do tio mala que todos temos ou somos) exige que nos preocupemos com as fontes. Quem disse? Quem escreveu? O que de fato foi dito? O que de fato foi escrito? Há provas ou outras referências? O uso malicioso de informações, nesse campo sanitário, é imperdoável. E se dúvidas há, a precaução é guia seguro para a ação segura.

No limite, a precaução justifica o medo. Filho de Ares e de Afrodite, o Medo era também uma figura mitológica que acompanhava o deus da guerra (Ares) nas batalhas. Apavorava os inimigos, que em desespero fugiam. O medo tem uma função estabilizadora de nossas defesas. Não se confunde com a covardia. A lição histórica que se tira dos fatos aqui narrados, parece-me, consiste em pensarmos que viver cautelosamente, e de par com a informação qualificada, pode ser, em momento crítico, um meio adequado para vivermos mais, e melhor, bem como para acudirmos quem precisa de ajuda nessa hora difícil. E também no limite, como a mulher do médico e como o cão das lágrimas, precisamos ser solidários.

 é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.

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Reflexões sobre o uso da telemedicina em tempos de Covid-19

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta a respeito do que uma misteriosa pneumonia, originária da cidade de Wuhan. Desde então, o SARS-CoV-2, vírus por trás da Covid-19, já infectou mais de 4 milhões de pessoas no mundo, vitimando mais de 280 mil, de acordo com números de maio de 2020.

Não há cura conhecida para a Covid-19 e uma vacina viável ao uso demorará, no mais otimista dos cenários, cerca de um ano ou um ano e meio, segundo o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid), Anthony Fauci. Neil Ferguson salienta que a Covid-19 é a mais séria ameaça à saúde pública por vírus respiratório desde a pandemia de gripe espanhola, em 1918.[1]

Sem terapias eficazes no combate à Covid-19, abre-se espaço às chamadas intervenções não-farmacêuticas ou non-pharmaceutical interventions (NPIs). Tais medidas têm como objetivo a redução das taxas de transmissão do vírus pelo distanciamento social.[2] Segundo o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, a testagem e o isolamento são fundamentais para a quebra da cadeia de transmissão.

Ainda de acordo com Ferguson, o isolamento dos casos e a quarentena domiciliar, juntamente com o distanciamento daqueles na faixa etária de risco, bem como dos portadores de doenças crônicas, reduzirá, consideravelmente, o número de óbitos ao final desta pandemia, seja pela adoção da estratégia de mitigação ou da supressão.[3]

É preciso ficar em casa, portanto. E, neste sentido, inúmeras empresas e escritórios operam em regime de teletrabalho e os governos estaduais vêm restringindo o funcionamento de estabelecimentos comerciais, ressalvados os que sejam relacionados a serviços tomados como essenciais. As instituições de saúde são exemplos destes serviços essenciais e, a exemplo do que se observa na China e na Itália, os médicos são, a cada dia, mais empurrados na direção do centro da pandemia.

Diante do cenário de urgência global, que foi sendo rapidamente desenhado, o Ministério da Saúde baixou a Portaria 467/2020, que dispõe sobre as ações de telemedicina. Além de se amparar na notória emergência em saúde pública de importância nacional, declarada pela Portaria 188/GM/MS/2020, o ato se apoia na Resolução 1.643/2002 e no Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR.

Na telemedicina, a relação médico-paciente é intermediada por meio de instrumentos tecnológicos. Discute-se sua regulamentação no Brasil, há tempos e, neste momento em que há recomendações de se evitar aglomerações e não buscar os prontos socorros dos serviços de saúde, a não ser quando a medida seja indispensável, este tipo de atendimento médico remoto surge como um aliado à quebra da cadeia de contágio do Covid-19.

Acontece que telemedicina é gênero e comporta algumas espécies/modalidades. O Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR reconheceu a eticidade, apenas, da utilização das modalidades de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta. De forma breve: na primeira modalidade, fala-se de orientação e encaminhamento de pacientes em isolamento, a segunda trata de monitoramento à distância dos parâmetros de saúde e/ou doença e, na última, diz-se de modalidade que objetiva a troca de informações e opiniões entre médicos, para auxiliar no diagnóstico e na terapia. O reconhecimento mencionado neste parágrafo é, ainda, adstrito ao período que durar a pandemia de Covid-19.

A telemedicina é tratada pelo CFM com certa reserva. Na própria Resolução 1.643/2002, balanceia-se as consequências positivas da telemedicina com os “muito problemas éticos e legais decorrentes de sua utilização”. Uma das preocupações do Conselho com relação a este avanço tecnológico, expressa-se pela assertiva de que o médico só deve emitir sua opinião, recomendação ou mesmo tomar decisões se as informações recebidas forem suficientes para tanto. Ainda, há críticas à telemedicina que tocam a “preocupação com os riscos de uma piora no atendimento, com atrasos ou dificuldades no diagnóstico em razão da distância” e o “enfraquecimento da relação de confiança entre médico e paciente”. Além de tudo isso, o artigo 37 do próprio Código de Ética Médica veda a prescrição de tratamento e outros procedimentos sem o exame direto do paciente, ressalvados os casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada da realização do exame.[4]

Outra modalidade dentro da telemedicina é a teleconsulta, não contemplada pelo ofício do CFM. A propósito e apenas a título de informação, a Resolução 2.227/2018 definia como premissa da teleconsulta “prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente”, o que parecia mitigar o pesado caráter de antieticidade desta modalidade de telemedicina, já que o contato presencial com o paciente existiria, ainda que de forma espaçada. A resolução em comento foi revogada em 22 de fevereiro de 2019.

Ocorre que, não obstante o constante do referido ofício, a Portaria 467/2020, ao ser abrangente, acabou por causar certa confusão entre especialistas da área e os próprios profissionais. Isto porque o dispositivo menciona atos médicos típicos de consulta, como atendimento pré-clínico, consulta (em sentido estrito) e diagnóstico, inclusive dispondo sobre a possibilidade de emissão de receitas e atestados médicos.

O fato de o ofício do CFM não reconhecer a eticidade da teleconsulta pode gerar certa preocupação por parte dos médicos e médicas quanto à utilização da referida modalidade de telemedicina no relacionamento com o paciente. Uma vez que, em termos práticos, a eticidade da teleconsulta não foi reconhecida pelo CFM e o seu uso poderia, em tese, representar uma falta ética. Naturalmente, os Conselhos Regionais de Medicina fazem eco ao posicionamento do Conselho Federal.

Para fins de ilustração, o CRM-ES, ao disciplinar a telemedicina no Espírito Santo, pela Instrução Normativa CRM-ES 01/2020, admite a possibilidade de estabelecimento de “canais de orientação médica que objetivem esclarecimentos e orientações preventivas relacionadas a pandemia do Covid-19”,[5] sendo que os atos médicos “desenvolvidos nesse enfrentamento que, porventura, sejam objeto de questionamento, serão avaliados pelo CRM, que levará em consideração todo esse contexto”. O Cremesp, por seu turno, ao mesmo tempo em que reconhece a excepcionalidade da situação, reforça a autorização da assistência médica à distância nas condições de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta.[6] O mesmo tom é observado na Resolução CRM/DF 453/2020.

Não obstante a implicação acima destacada, reconheça-se que o Brasil encontra-se em um verdadeiro estado de exceção, que urge uma resposta, em termos de saúde, eficaz, tempestiva e remota. Decerto, a flexibilização da eticidade da telemedicina deve ser concebida como um apoio aos esforços empreendidos pelas políticas públicas de saúde estabelecidas em prol da saúde dos brasileiros.

A recomendação é que o médico e a médica atentem-se a todas os requisitos das ações de telemedicina trazidos pela portaria, inclusive em teleconsulta, já que não há notícia da flexibilização da eticidade de nenhum dos outros deveres delimitados pelo Código de Ética Médica.

Todo atendimento deverá ser registrado em minucioso prontuário clínico que contenham os dados clínicos pertinentes à boa condução do caso, com preenchimento para cada contato. Atestados e receitas médicas emitidas por meio eletrônico devem passar por validação pelo uso de assinatura eletrônica ou de dados associados à assinatura do médico e a tecnologia utilizada para o contato direto entre o médico e o paciente deve ser capaz de garantir a integridade, a segurança e o sigilo das informações.

Nesse sentido, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), após reunião extraordinária da sua diretoria colegiada, em 31 de março de 2020, firmou o entendimento através da Nota Técnica 7/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO de que: “(…) telessaúde é um procedimento que já tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde, uma vez que se trata de uma modalidade de consulta com profissionais de saúde. Dessa forma, não há que se falar em inclusão de procedimento no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, devendo os profissionais observarem as normativas dos Conselhos Profissionais de Saúde e/ou do Ministério da Saúde.” Sendo, portanto, de cobertura obrigatória para seus beneficiários.

Na respectiva reunião, a diretoria colegiada da ANS também aprovou por meio das Notas Técnicas 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES e 4/2020/DIRAD-DIDES/DIDES que, enquanto permanecer a situação de calamidade pública na saúde, não será necessário a alteração e ou adaptação da contratualização entre operadoras e prestadores de serviços para o exercício da telemedicina, mantendo-se as cláusulas já vigentes nesses contratos, em especial na RN 363/2014, desde que exista qualquer outro instrumento (troca de e-mails, mensagem eletrônica através do portal da operadora) que permita identificar que as partes pactuaram as regras para realização deste tipo de atendimento.

Em resumo, as operadoras deverão prever um desses meios de comunicação com o prestador:

  • “A identificação dos serviços que podem ser prestados, por aquele determinado prestador, por intermédio do tipo de atendimento telessaúde;
  • Os valores que remunerarão os serviços prestados neste tipo de atendimento; e
  • Os ritos a serem observados para faturamento e pagamento destes serviços.”

Ao final da referida nota técnica, a autarquia determina que essa negociação permita a manifestação de vontade de ambas as partes e informa que essa medida irá perdurar enquanto o país estiver em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), “sendo certo que se os atendimentos por meio de telessaúde seguirem autorizados pela legislação e regulação nacional após este período, será necessário ajustar os instrumentos contratuais entre operadoras e prestadores de serviços de saúde”.

A flexibilização da contratualização, adotada pela ANS, é fundamental em tempos de uma pandemia, mas dependerá, sem sombra de dúvidas da flexibilização de inúmeras questões contratuais dessa conturbada relação entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviço, além de uma mudança de hábitos da própria relação médico x paciente, a fim de compatibilizar a telemedicina com o atual momento de isolamento social.

Nosso escritório está preparado para auxiliar nossos clientes e parceiros nesse novo estágio da contratualização no mercado de saúde suplementar, sobretudo no que for necessário a adequação dos stakeholders à regulamentação e ao estado de calamidade pública.

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

Abner Brandão Carvalho é advogado.

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Arantes e Ramos: Empregador é responsável por adoecimento ocupacional

Após o reconhecimento da pandemia decorrente do surto da doença Covid-19, ocasionada pelo novo coronavírus, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou fortemente o distanciamento social horizontal entre pessoas sãs, o isolamento das pessoas suspeitas de portarem o SARS-CoV-2 e a restrição de atividades em geral (quarentena), com o claro objetivo de salvar vidas.

Tais medidas têm sido adotadas gradativamente pela grande maioria dos países e vão desde o fechamento de escolas, shoppings, academias e comércio em geral até a restrição da circulação de pessoas nas ruas. Principalmente na Europa, em cidades italianas, espanholas e alemãs, a população está autorizada a sair de casa apenas para comprar alimentos, medicamentos ou ir ao hospital, por vezes em sistema de revezamento. Embora as diferentes condutas estabelecidas por governos de países, por estados ou cidades gerem opiniões controversas acerca de seu rigor ou insuficiência, um aspecto é indiscutível: precisamos de que os trabalhadores das denominadas atividades essenciais continuem trabalhando em prol da sobrevivência de todos, especialmente para tratarem as vítimas da Covid-19.

Merecem destaque entre esses trabalhadores, em razão de sua maior exposição ao novo agente viral, os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, fisioterapeutas), do ramo de alimentação, de segurança, de transporte, de telecomunicações, em serviços funerários e de tratamento de água, esgoto e lixo.

Medidas de proteção a serem adotadas por empregadores

Daí porque medidas tendentes a evitar a propagação da Covid-19 nos locais de trabalho têm merecido especial atenção de diversos organismos internacionais além da OMS, com destaque para a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo a OIT, trabalhadores e suas famílias devem ser protegidos dos riscos à saúde ocasionados pela Covid-19 no local de trabalho. Para a OIT, é de se exigir uma postura responsável das empresas, cabendo aos empregadores monitorar constantemente as orientações fornecidas por autoridades no assunto, visando ao fornecimento de informações corretas aos trabalhadores e à adoção de medidas que evitem o contágio desses trabalhadores com o novo coronavírus.

Nesse cenário, as decisões dramáticas relativas a escolher entre quem deve viver ou morrer, relatadas por médicos europeus diante do gradual colapso dos sistemas de saúde dos seus países, poderiam ser evitadas, em alguma medida, em momento anterior a esse. Na verdade, esse dilema já surge quando hospitais (públicos e privados), supermercados, farmácias, empresas de transporte, inclusive desenvolvedoras de aplicativos com essa finalidade, ou quaisquer outros empregadores, decidem preservar ou não seus trabalhadores em grupos de risco (imunodeficientes, idosos, diabéticos, hipertensos, asmáticos) quando os submetem ao transporte coletivo ou privado, ou então quando decidem fornecer ou não equipamentos de proteção individual (EPIs) suficientes (álcool em gel, óculos, protetores faciais ou viseiras, capotes impermeáveis, gorros) e ambientes apropriados (lavatórios e distanciamento entre os postos de trabalho). Além disso, a adoção de jornadas de trabalho não exaustivas e em conformidade aos limites constitucionalmente estabelecidos também configura importante medida protetiva a ser considerada pelos empregadores.

Particularmente para os profissionais de saúde que atuam heroicamente no combate direto ao SARS-CoV-2, os EPIs são as únicas proteções possíveis para se evitar a contaminação, especialmente porque esses trabalhadores não podem distanciar-se socialmente e lidam com pacientes com alta carga viral. No entanto, denúncias da Associação Médica Brasileira e do Conselho Federal de Enfermagem apontam que o Brasil já tem mais de oito mil registros de falta de EPI. O quadro se agrava diante do fato de que a utilização de EPIs não constitui garantia de neutralização de acidentes ou adoecimentos ocupacionais.

A eficácia horizontal dos direitos fundamentais à saúde, à vida e ao meio ambiente laboral hígido

Em relação à responsabilidade dos empregadores em razão do adoecimento ocupacional dos trabalhadores pela Covid-19, um primeiro e importante aspecto jurídico a destacar é que os preceitos consagradores dos direitos, liberdades e garantias fundamentais não se dirigem exclusivamente ao Estado. A eficácia desses direitos deve ser observada também entre trabalhadores e empresas.

Com efeito, a partir da elaboração de normas constitucionais a estabelecerem pautas sociais e orientarem a atividade econômica dos atores privados, fixando marcos mínimos de proteção, o Estado dessacralizou a autonomia privada e a propriedade, estabelecendo matérias de ordem pública (como, por exemplo, a vida e a integridade psicofísica dos trabalhadores e o dever de preservação do meio ambiente), a justificarem a limitação à livre estipulação contratual e o desempenho de atividades econômicas lesivas àqueles bens jurídicos. Não fosse a incidência das normas constitucionais nas relações jurídicas privadas, as conquistas seculares do Direito Público, que produziram sucessivos direitos e garantias do cidadão perante o Estado, tornar-se-iam inoperantes para as transformações sociais pretendidas.

Em luminar artigo a respeito do tema, Zeno Simm lembra que o ambiente de trabalho se mostrou propício à chamada horizontalização dos direitos fundamentais (ou eficácia dos direitos fundamentais entre particulares), pois “ali, pela própria natureza da relação contratual, o empregado abre mão de uma parte de suas liberdades, na medida em que se coloca a serviço do empregador, subordinado a este e por ele controlado e fiscalizado. Quando, porém, a atuação patronal extrapola os limites do razoável, do aceitável, do necessário ao desenvolvimento das atividades empresariais, entram em ação os direitos fundamentais do trabalhador como limitação do poder empresarial…”. Desse modo, o contrato de trabalho contribuiu para a mudança dogmática dos direitos fundamentais, que deixaram de ser oponíveis somente ao Estado, para o serem também no âmbito das relações privadas.

De outro lado, o Estado não deve ficar de mãos atadas diante da livre iniciativa, sendo impelido, por vezes, a coibir abusos ou até mesmo a limitar tal exercício em determinadas circunstâncias, a fim de evitar o sacrifício de outros valores e princípios constitucionais relevantes. Nesse contexto, cumpre ressaltar o papel relevante que vem sendo desempenhado por sindicatos de categorias profissionais e pelo Ministério Público do Trabalho no ajuizamento de ações civis públicas com pedidos de obrigação de fazer quanto ao fornecimento de EPIs ou para afastamento de trabalhadores em grupos de risco do trabalho.

A caracterização da Covid-19 como doença profissional ou do trabalho e a responsabilidade dos empregadores

Dito isso, é de se indagar a respeito da responsabilização indenizatória dos empregadores no contexto da pandemia e do adoecimento ocupacional dos trabalhadores, ou ainda, se a Covid-19 pode ser caracterizada como doença profissional ou do trabalho.

A OIT já se manifestou acerca da possibilidade de caracterização da Covid-19 como doença profissional, como têm feito alguns países. E, de fato, à luz da interpretação sistemática da legislação brasileira, a Covid-19 pode ser caracterizada como doença ocupacional (ou profissional) caso o adoecimento seja desencadeado pelo exercício do trabalho característico à função ou profissão desses trabalhadores, mais comum na situação dos profissionais de saúde, ou ainda como doença do trabalho, quando causada pelo meio ambiente do trabalho ou pelas condições a que o empregado é exposto.

Em ambos os casos, o empregado doente deverá ser indenizado pelo empregador, seja em decorrência da responsabilidade pela atividade de risco (classificada como objetiva), que se caracteriza pela natureza da atividade laboral e pelo trabalho em situações em que o dano é previsível, seja em face da responsabilidade pela culpa ou dolo do empregador (classificada como subjetiva), existente nos casos em que o empregador deixa de cuidar de modo eficaz do ambiente laboral, por imprudência, imperícia ou negligência, como em decorrência da ausência ou fornecimento insuficiente de EPIs.

Nesse sentido, a Constituição de 1988 consagra, no artigo 7º, inciso XXVIII, a responsabilidade do empregador pelo dano que causar ao trabalhador, mediante comprovação de dolo ou culpa. O Código Civil, por sua vez, no parágrafo único do artigo 927, prevê a responsabilidade objetiva do autor do dano nos casos de atividade de risco ou quando houver expressa previsão legal, situação em que não é necessária a comprovação de dolo ou culpa. A regra civilista é perfeitamente aplicável às relações trabalhistas, como amplamente reconhecido pela Justiça do Trabalho.

Destaque-se, aliás, que muito recentemente o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade do dispositivo do Código Civil (artigo 927, parágrafo único) que garante ao trabalhador o direito à indenização em razão de danos decorrentes de acidente de trabalho ou adoecimento ocupacional, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do empregador, se a atividade é considerada de risco (responsabilidade objetiva). Seja como for, a responsabilidade do patrão nos casos de acidente de trabalho ou adoecimento ocupacional sempre existiu em qualquer situação de culpa (negligência, imperícia e imprudência).

Assim, embora a Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, em seu artigo 29, tenha pretendido excluir a natureza ocupacional das contaminações por SARS-Cov-2 ocorridas no ambiente de trabalho de modo apriorístico e abstrato, a norma mostra-se incompatível com os artigos 7º, XXII, e 225 da Constituição de 1988. No contexto da pandemia vivenciada, em que o contágio se dá pelo ar e de modo invisível, é de se presumir que as atividades desempenhadas por profissionais de saúde, por exemplo, representam risco especial a esses trabalhadores.

Portanto, há forte embasamento jurídico a sustentar que a responsabilidade do empregador existente no caso de adoecimento por Covid-19 dos profissionais de saúde e em quaisquer outras atividades essenciais é objetiva. Isso porque o risco da atividade desempenhada por tais trabalhadores é inerente ao fato de ser necessário, em suas funções ordinárias, o trato frequente com pessoas contaminadas com o novo coronavírus, num contexto de pandemia.

Epílogo

Como se sabe, o heroísmo é uma categoria social antiga. Considera-se herói quem age independentemente da opinião pública, com coragem e determinação, mesmo nas piores adversidades, apesar das consequências que possa vir a sofrer. Na antiguidade, estava atrelado ao uso da força. A tradição judaico-cristã alterou a concepção de heroísmo, ao concebê-lo como um processo diário e oculto de sacrifício em favor de outrem, desapegado das aparências do mundo.

Aos trabalhadores chamados a enfrentar a Covid-19, direta ou indiretamente, conforme a profissão que abraçaram ou o emprego que conseguiram obter, inclusive mediante a realização de trabalho extraordinário a qualquer hora do dia ou da noite, é devido mais que a alcunha de heróis e o reconhecimento por meio de aplausos da sociedade. Eles merecem, preventivamente, o gozo de toda proteção a que fazem jus, não apenas em decorrência dos direitos constitucionalmente assegurados acima mencionados, mas, assim como a pequena paz de consciência de saberem que seus filhos e filhas, maridos e esposas, apesar de suas ausências, receberão justa compensação em decorrência de seu altruísmo, se vierem a falecer no campo de batalha. O ordenamento jurídico brasileiro, felizmente, assegura-lhes esses direitos, ainda que alguns empregadores ou governantes possam vir a querer descumpri-los, o que nos faz recordar a famosa frase de Lacordeire: “Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”

Denise Arantes é advogada e sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados.

Gustavo Ramos é advogado, sócio-diretor do escritório Mauro Menezes & Advogados e mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas.