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Responsabilidade civil do dentista é de meio, como a do médico

Mary Otto é médica e jornalista norte-americana, autora da obra The Tooth Divide: Beauty, Class and the Story of Dentristy, publicado pela The New Press em 2017. Além de trazer uma análise sobre como a desigualdade entre classes pode aparecer de forma menos convencional,[1] a autora pondera que, mais do que uma falha no cuidado com a higiene bucal, a queda de um dente pode indicar uma falha do próprio sistema de saúde.[2]

Em entrevista ao The Atlantic, Otto pondera que um dos cenários mais dramáticos da falha acima mencionada é que mais de um milhão de pessoas, por ano, busca os prontos socorros dos Estados Unidos com emergências dentais, mas não recebem o tratamento adequado porque, geralmente, os hospitais não contam com dentistas em suas unidades de pronto atendimento.[3]

Medicados, estes pacientes são orientados a buscar um dentista, sendo que muitas destas pessoas sequer têm um.[4] Neste ponto, Mary Otto relembra que a saúde bucal é parte da saúde geral.[5] Ainda assim, ao menos no Brasil, a odontologia, e tudo que orbita este campo, recebe tratamento diferenciado do conferido à medicina, inclusive juridicamente. O que se está a dizer é que a saúde bucal e a saúde geral seguem em vias diferentes (quando não deveriam).

Em alguns países europeus, a odontologia é considerada uma especialidade da medicina. Em Portugal, por exemplo, para se tornar um dentista, é necessária formação em medicina dentária, com a posterior inscrição na Ordem dos Médicos Dentistas.

Regulamentada pela Lei 5.081/1996, no Brasil, a odontologia é tomada como uma profissão autônoma e desvinculada da medicina. Isso não significa que a atuação do dentista seja menos complexa que a de um médico. É por isso que o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de Goiás (Cremego) defende a transformação da odontologia em uma especialidade da medicina:
Em muitos países a odontologia é uma especialidade da medicina, e no nosso entendimento o Brasil deveria passar por essa transformação, pois, assim como o médico, o cirurgião-dentista faz diagnóstico de doenças, faz prescrição terapêutica e tratamentos, então ele se enquadra na caracterização do exercício profissional da medicina.[6]

Aliás, o curso de odontologia só foi separado da medicina, no Brasil, em 1911. Ainda que tal mudança tenha se dado há pouco mais de 100 anos, o que parece ser bastante tempo, é bom considerar que Hipócrates, ao construir os primeiros pilares da medicina científica, tratava também dos aspectos odontológicos, em seus estudos. É possível afirmar que, sob a bênção de Asclépio, concebeu-se medicina e odontologia como uma só coisa.[7]

Para se ter uma ideia da complexidade da atuação do profissional de odontologia, alguns males, como o câncer de boca, podem ser identificados em uma cadeira de dentista. No caso desta doença, o diagnóstico precoce pode aumentar a chance de cura em 80%. São inúmeras as patologias que se relacionam com a saúde bucal, manifestando-se por sinais identificáveis pelo profissional de odontologia, dentre elas a sífilis, leucemia, anemia, bulimia, diabetes, cirrose hepática e doenças autoimunes.

Por isso, a atuação do odontologista deve ser visualizada sob o prisma da integração da boca ao restante do corpo (por mais óbvio que isto soe). Segundo Salomão Filho, “o tratamento de uma região, ou órgão específico, influencia todo o sistema”. Para o especialista, “mesmo tratando da região mastigatória, quando o dentista prescreve um medicamento, como um antibiótico ou um anti-inflamatório, por exemplo, ele está interferindo em todo o funcionamento do organismo”.[8]

Se a literatura especializada reconhece a complexidade do trabalho do profissional de odontologia, o ordenamento jurídico deve fazer o mesmo, mirando a atuação do dentista pelas lentes da responsabilidade subjetiva.

O contrário seria admitir que um complexo tratamento odontológico (e todo tratamento odontológico guarda complexidade) pode ser equiparado à compra de um eletrodoméstico qualquer em uma loja — cenário em que o fornecedor e/ou comerciante responderia objetivamente por eventual defeito no produto. A hipótese anterior, a propósito, apenas valida a falha no sistema de saúde, ao ignorar que a saúde bocal importa totalmente à saúde geral.

Não obstante, a jurisprudência pátria vem admitindo que a obrigação do dentista é, em regra, de resultado. O ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 1.238.746/MS, já destacou que “nos procedimentos odontológicos, mormente os ortodônticos, os profissionais da saúde especializados nessa ciência, em regra, comprometem-se pelo resultado, visto que os objetivos relativos aos tratamentos, de cunho estético e funcional, podem ser atingidos com previsibilidade”.

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul admite que a obrigação assumida pelo cirurgião dentista é, principalmente, de resultado, recaindo sobre o profissional, o ônus de provar que não agiu com culpa.[9]

O cenário acima destacado foi bem explorado por Maria da Conceição Almeida Lyra, que conduziu um estudo que levantou, em números, ações judiciais em diversos tribunais estaduais, que apuraram a responsabilidade de cirurgiões-dentistas, apontando-se em quais destas ações foi aplicado o entendimento de que a obrigação destes profissionais é de meio. Foram selecionadas 167 ações judiciais dos estados da Amazônia, Bahia, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, no ano de 2017.[10]

Destes 167 julgados, 87 não faziam referência à obrigação de meio ou de resultado. Dos que fizeram referência, contudo, de acordo com o estudo, a maioria dos tribunais considerou a obrigação como de resultado (64). Deste número, 44 resultaram em condenação.[11] Fica claro, portanto, que o entendimento do STJ acerca da obrigação de resultado, quanto à atuação dos odontologistas, está norteando os entendimentos dos tribunais do país.

No que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade do profissional liberal, categoria na qual os odontologistas se enquadram é expressamente tratada no artigo 14, parágrafo 4º, senão vejamos: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.

Dependendo de verificação de culpa, a responsabilidade é subjetiva — e aqui se chama atenção ao fato de que, se há um tratamento diferenciado entre odontologistas e médicos, perante os órgãos de classe, diante do CDC, a análise da responsabilidade civil dos dentistas situa-se no mesmo campo dos médicos.[12]

Com relação aos médicos, já se sabe, a obrigação é eminentemente de meio. O celebrado jurista Caio Mário da Silva Pereira destaca a harmonia deste entendimento, tanto na jurisprudência pátria como na estrangeira: “Ele não assume o compromisso de curar o doente (o que seria contra a lógica dos fatos) mas de prestar-lhe assistência, cuidados, não quaisquer cuidados, porém conscienciosos e adequados ao seu estado”.[13] Doutrina mais recente não se desviou deste entendimento. Ensina Miguel Kfouri Neto:
(…) o fato de considerar como contratual a responsabilidade médica não tem, ao contrário do que poderia parecer, o resultado de presumir a culpa. O médico não se compromete a curar mas a proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão.[14]

Sendo a atuação do profissional de odontologia tão complexa quanto a do profissional em medicina e estando ambos enquadrados como profissionais liberais, no mesmo campo de análise da responsabilidade civil, o resultado lógico da articulação destas proposições só pode levar à conclusão de que a responsabilidade do odontologista é, também, de meio, ao contrário da tendência jurisprudencial. Aliás, Matilde Conti ensina que
Não se pode deixar de reconhecer que o dentista compromete-se a atuar usando toda técnica e conhecimento disponíveis na tentativa da cura, significando que, no exercício profissional, o dentista tem obrigação de meio. Ele tem compromisso com a cura, mas não tem obrigação de curar, impondo-lhe sim, a obrigação de ser diligente.[15]

Já foi dito que em alguns países da Europa o dentista é médico, para todos os efeitos, mas apenas para melhor ilustrar o tratamento jurídico conferido aos odontologistas, transcreve-se a ementa do acórdão no Processo 67/2001.P1, do Tribunal da Relação de Porto, de relatoria de Filipe Caroço:
II — Estando em causa actos médicos contratados entre o médico e o paciente, pelos quais são prestados serviços clínicos, existe um contrato de prestação de serviços a que se aplicam as regras próprias do mandato, já que a lei não regula a contratação daqueles serviços de modo especial.
III — Não obstante essa qualificação, o resultado a que alude o art.º 1154.º do Código Civil deve considerar-se não a cura, mas os cuidados de saúde, por se tratar de uma obrigação de meios.
(…)
VII — Não age com culpa o médico dentista que, após diagnosticar a causa da dor e a necessidade de extracção, extrai um dente do siso, tendo pata tal administrado uma anestesia regional, seguida de duas anestesias locais, por se manter a sensibilidade à dor, apesar de, durante a prática desse acto, ter ocorrido a fractura da correspondente mandíbula, que, por si só, não significa violação da leges artis.[16]

Observe-se o mesmo cenário, de equiparação do odontologista ao médico, no acórdão no Processo 1889/15.4T8CSC.L1-7, do Tribunal da Relação de Lisboa, de relatoria de Carlos Oliveira:
O ato médico de extração de um dente a um paciente, por implicar uma ação invasiva, com necessária e inevitável lesão do corpo de uma pessoa, mesmo que no caso concreto fosse tecnicamente adequado a solucionar o problema de saúde do doente e a melhorar o seu bem-estar, é ilícito se não for realizado com o consentimento do lesado (Art.s 70.º e 340.º do CC e Art. 156.º do CP).[17]

É de se notar, de forma cristalina, que a atuação do odontologista é médica, sob a ótica jurídica, em Portugal. Sendo ato médico, a obrigação é de meio. No Brasil, Silvio Venosa já aponta que em determinados casos, a obrigação do cirurgião-dentista é de meio e não há dissenção a respeito disto. Trata-se da atuação nas áreas de traumatologia buco-maxilo-facial, endodontia, periodontia, ortopediatria e ortodontia.[18] A discussão sobre se a obrigação é de meio ou de resultado cinge-se à atuação dos odontologistas em procedimentos que teriam a chamada “finalidade estética”.

Parte desta discussão perpassa pela alegação de que a obrigação do cirurgião plástico, justamente pela finalidade estética de sua atuação, seria de resultado. Novamente, ignora-se a complexidade e a unicidade do corpo, cuja abordagem e manipulação não é precisa.

Não à toa, a Resolução 1.621/2001, do Conselho Nacional de Medicina, expressamente dispõe a prática do ato médico na cirurgia plástica como “obrigação de meio e não de fim ou resultado”, ao mesmo tempo em que informa que a finalidade da cirurgia plástica é trazer benefício à saúde do paciente — benesse esta que pode ser física, psicológica ou social.

Alguém dirá que a resolução pretendia tratar das cirurgias plásticas reparadoras, porque, em tese, a responsabilidade do profissional de saúde, nestes casos, seria de resultado, mas também a cirurgia plástica puramente estética visa ao benefício à saúde do paciente, ainda que psicológica e, admita-se, não deixa de ser um procedimento sujeito aos mesmos riscos e patologias que qualquer outro. Aliás, neste mesmo passo, Carlos Alberto Menezes já ensinava:
A responsabilidade civil do médico não pode ser analisada sob o ângulo exclusivamente técnico, uma vez que sempre se deve levar em consideração as circunstâncias peculiares ao exercício da profissão. (…) Por isso, é que se pede ter sempre a consideração de que o médico não pode assumir, em nenhuma circunstância, a responsabilidade objetiva. Daí, ao meu ver, por exemplo, a impertinência de se identificar a cirurgia plástica embelezadora como de resultado, pois ela não é diferente de qualquer outro tipo de cirurgia, estando subordinada aos mesmos riscos e às mesmas patologias.[19]

A obrigação do profissional de odontologia, portanto, seja de qual ramificação for, assim como a dos médicos, é de meio e não de resultado, considerando-se que são complexas as inúmeras manifestações orgânicas, nem sempre afetas ao controle do odontologista ou do médico. Também não se pode, portanto, admitir que o “fim estético” dos procedimentos odontológicos direcionem, necessariamente, a obrigação do odontologista para o resultado, já que, a exemplo dos profissionais de medicina, também os procedimentos dentais guardam sua complexidade e risco. E mais, mesmo no caso da odontologia estética, o dentista “não está obrigado a obter um resultado, mas sim, a empregar todas as técnicas e meios adequados, conforme o estado atual da ciência, para obter o melhor possível, sem prejuízo do equilíbrio funcional e estético”.[20]

É de se destacar que, na esteira do que ensina Matilde Condi, independentemente da natureza da relação do vínculo entre o dentista e o seu cliente, na obrigação de meio, o ônus de provar que a obrigação de meio foi infringida recairá sobre o prejudicado, razão pela qual a alegação de inadimplemento contratual também seria afastada.

Portanto, a análise da responsabilidade do dentista não pode deixar de considerar a culpa, nos termos do que preconiza o CDC, quando trata da responsabilização do profissional liberal, sendo a obrigação do dentista, de meio, tal como do médico, posto que não é possível exigir precisão sobre a manipulação do corpo (do qual a boca faz parte), já que tal manipulação é “sempre aleatória”.[21]

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

 


[14]KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 7. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 74-5.

Abner Brandão Carvalho é advogado, sócio do escritório Conde Advogados.

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Reflexões sobre o uso da telemedicina em tempos de Covid-19

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta a respeito do que uma misteriosa pneumonia, originária da cidade de Wuhan. Desde então, o SARS-CoV-2, vírus por trás da Covid-19, já infectou mais de 4 milhões de pessoas no mundo, vitimando mais de 280 mil, de acordo com números de maio de 2020.

Não há cura conhecida para a Covid-19 e uma vacina viável ao uso demorará, no mais otimista dos cenários, cerca de um ano ou um ano e meio, segundo o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid), Anthony Fauci. Neil Ferguson salienta que a Covid-19 é a mais séria ameaça à saúde pública por vírus respiratório desde a pandemia de gripe espanhola, em 1918.[1]

Sem terapias eficazes no combate à Covid-19, abre-se espaço às chamadas intervenções não-farmacêuticas ou non-pharmaceutical interventions (NPIs). Tais medidas têm como objetivo a redução das taxas de transmissão do vírus pelo distanciamento social.[2] Segundo o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, a testagem e o isolamento são fundamentais para a quebra da cadeia de transmissão.

Ainda de acordo com Ferguson, o isolamento dos casos e a quarentena domiciliar, juntamente com o distanciamento daqueles na faixa etária de risco, bem como dos portadores de doenças crônicas, reduzirá, consideravelmente, o número de óbitos ao final desta pandemia, seja pela adoção da estratégia de mitigação ou da supressão.[3]

É preciso ficar em casa, portanto. E, neste sentido, inúmeras empresas e escritórios operam em regime de teletrabalho e os governos estaduais vêm restringindo o funcionamento de estabelecimentos comerciais, ressalvados os que sejam relacionados a serviços tomados como essenciais. As instituições de saúde são exemplos destes serviços essenciais e, a exemplo do que se observa na China e na Itália, os médicos são, a cada dia, mais empurrados na direção do centro da pandemia.

Diante do cenário de urgência global, que foi sendo rapidamente desenhado, o Ministério da Saúde baixou a Portaria 467/2020, que dispõe sobre as ações de telemedicina. Além de se amparar na notória emergência em saúde pública de importância nacional, declarada pela Portaria 188/GM/MS/2020, o ato se apoia na Resolução 1.643/2002 e no Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR.

Na telemedicina, a relação médico-paciente é intermediada por meio de instrumentos tecnológicos. Discute-se sua regulamentação no Brasil, há tempos e, neste momento em que há recomendações de se evitar aglomerações e não buscar os prontos socorros dos serviços de saúde, a não ser quando a medida seja indispensável, este tipo de atendimento médico remoto surge como um aliado à quebra da cadeia de contágio do Covid-19.

Acontece que telemedicina é gênero e comporta algumas espécies/modalidades. O Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR reconheceu a eticidade, apenas, da utilização das modalidades de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta. De forma breve: na primeira modalidade, fala-se de orientação e encaminhamento de pacientes em isolamento, a segunda trata de monitoramento à distância dos parâmetros de saúde e/ou doença e, na última, diz-se de modalidade que objetiva a troca de informações e opiniões entre médicos, para auxiliar no diagnóstico e na terapia. O reconhecimento mencionado neste parágrafo é, ainda, adstrito ao período que durar a pandemia de Covid-19.

A telemedicina é tratada pelo CFM com certa reserva. Na própria Resolução 1.643/2002, balanceia-se as consequências positivas da telemedicina com os “muito problemas éticos e legais decorrentes de sua utilização”. Uma das preocupações do Conselho com relação a este avanço tecnológico, expressa-se pela assertiva de que o médico só deve emitir sua opinião, recomendação ou mesmo tomar decisões se as informações recebidas forem suficientes para tanto. Ainda, há críticas à telemedicina que tocam a “preocupação com os riscos de uma piora no atendimento, com atrasos ou dificuldades no diagnóstico em razão da distância” e o “enfraquecimento da relação de confiança entre médico e paciente”. Além de tudo isso, o artigo 37 do próprio Código de Ética Médica veda a prescrição de tratamento e outros procedimentos sem o exame direto do paciente, ressalvados os casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada da realização do exame.[4]

Outra modalidade dentro da telemedicina é a teleconsulta, não contemplada pelo ofício do CFM. A propósito e apenas a título de informação, a Resolução 2.227/2018 definia como premissa da teleconsulta “prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente”, o que parecia mitigar o pesado caráter de antieticidade desta modalidade de telemedicina, já que o contato presencial com o paciente existiria, ainda que de forma espaçada. A resolução em comento foi revogada em 22 de fevereiro de 2019.

Ocorre que, não obstante o constante do referido ofício, a Portaria 467/2020, ao ser abrangente, acabou por causar certa confusão entre especialistas da área e os próprios profissionais. Isto porque o dispositivo menciona atos médicos típicos de consulta, como atendimento pré-clínico, consulta (em sentido estrito) e diagnóstico, inclusive dispondo sobre a possibilidade de emissão de receitas e atestados médicos.

O fato de o ofício do CFM não reconhecer a eticidade da teleconsulta pode gerar certa preocupação por parte dos médicos e médicas quanto à utilização da referida modalidade de telemedicina no relacionamento com o paciente. Uma vez que, em termos práticos, a eticidade da teleconsulta não foi reconhecida pelo CFM e o seu uso poderia, em tese, representar uma falta ética. Naturalmente, os Conselhos Regionais de Medicina fazem eco ao posicionamento do Conselho Federal.

Para fins de ilustração, o CRM-ES, ao disciplinar a telemedicina no Espírito Santo, pela Instrução Normativa CRM-ES 01/2020, admite a possibilidade de estabelecimento de “canais de orientação médica que objetivem esclarecimentos e orientações preventivas relacionadas a pandemia do Covid-19”,[5] sendo que os atos médicos “desenvolvidos nesse enfrentamento que, porventura, sejam objeto de questionamento, serão avaliados pelo CRM, que levará em consideração todo esse contexto”. O Cremesp, por seu turno, ao mesmo tempo em que reconhece a excepcionalidade da situação, reforça a autorização da assistência médica à distância nas condições de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta.[6] O mesmo tom é observado na Resolução CRM/DF 453/2020.

Não obstante a implicação acima destacada, reconheça-se que o Brasil encontra-se em um verdadeiro estado de exceção, que urge uma resposta, em termos de saúde, eficaz, tempestiva e remota. Decerto, a flexibilização da eticidade da telemedicina deve ser concebida como um apoio aos esforços empreendidos pelas políticas públicas de saúde estabelecidas em prol da saúde dos brasileiros.

A recomendação é que o médico e a médica atentem-se a todas os requisitos das ações de telemedicina trazidos pela portaria, inclusive em teleconsulta, já que não há notícia da flexibilização da eticidade de nenhum dos outros deveres delimitados pelo Código de Ética Médica.

Todo atendimento deverá ser registrado em minucioso prontuário clínico que contenham os dados clínicos pertinentes à boa condução do caso, com preenchimento para cada contato. Atestados e receitas médicas emitidas por meio eletrônico devem passar por validação pelo uso de assinatura eletrônica ou de dados associados à assinatura do médico e a tecnologia utilizada para o contato direto entre o médico e o paciente deve ser capaz de garantir a integridade, a segurança e o sigilo das informações.

Nesse sentido, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), após reunião extraordinária da sua diretoria colegiada, em 31 de março de 2020, firmou o entendimento através da Nota Técnica 7/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO de que: “(…) telessaúde é um procedimento que já tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde, uma vez que se trata de uma modalidade de consulta com profissionais de saúde. Dessa forma, não há que se falar em inclusão de procedimento no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, devendo os profissionais observarem as normativas dos Conselhos Profissionais de Saúde e/ou do Ministério da Saúde.” Sendo, portanto, de cobertura obrigatória para seus beneficiários.

Na respectiva reunião, a diretoria colegiada da ANS também aprovou por meio das Notas Técnicas 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES e 4/2020/DIRAD-DIDES/DIDES que, enquanto permanecer a situação de calamidade pública na saúde, não será necessário a alteração e ou adaptação da contratualização entre operadoras e prestadores de serviços para o exercício da telemedicina, mantendo-se as cláusulas já vigentes nesses contratos, em especial na RN 363/2014, desde que exista qualquer outro instrumento (troca de e-mails, mensagem eletrônica através do portal da operadora) que permita identificar que as partes pactuaram as regras para realização deste tipo de atendimento.

Em resumo, as operadoras deverão prever um desses meios de comunicação com o prestador:

  • “A identificação dos serviços que podem ser prestados, por aquele determinado prestador, por intermédio do tipo de atendimento telessaúde;
  • Os valores que remunerarão os serviços prestados neste tipo de atendimento; e
  • Os ritos a serem observados para faturamento e pagamento destes serviços.”

Ao final da referida nota técnica, a autarquia determina que essa negociação permita a manifestação de vontade de ambas as partes e informa que essa medida irá perdurar enquanto o país estiver em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), “sendo certo que se os atendimentos por meio de telessaúde seguirem autorizados pela legislação e regulação nacional após este período, será necessário ajustar os instrumentos contratuais entre operadoras e prestadores de serviços de saúde”.

A flexibilização da contratualização, adotada pela ANS, é fundamental em tempos de uma pandemia, mas dependerá, sem sombra de dúvidas da flexibilização de inúmeras questões contratuais dessa conturbada relação entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviço, além de uma mudança de hábitos da própria relação médico x paciente, a fim de compatibilizar a telemedicina com o atual momento de isolamento social.

Nosso escritório está preparado para auxiliar nossos clientes e parceiros nesse novo estágio da contratualização no mercado de saúde suplementar, sobretudo no que for necessário a adequação dos stakeholders à regulamentação e ao estado de calamidade pública.

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

Abner Brandão Carvalho é advogado.

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Interpretações equivocadas sobre intervenção militar

Já havia criticado o jornalista Vladimir Safatle (ver aqui) há dois anos, quando este, em artigo na Folha de S.Paulo, errou na interpretação do artigo 142 da CF que trata da “intervenção das forças armadas”, assunto que voltou agora pela pena de Ives Gandra Martins (ver aqui), quem igualmente comete perigoso erro hermenêutico, só que não pelas mesmas razões de Safatle.

Safatle remete o leitor ao artigo 48 da Constituição de Weimar, e ao seguir no sentido do reforço das narrativas históricas daquelas mesmas pessoas que se voltaram contra a república alemã nos anos 30, chega a uma interpretação absurda do artigo 142 da Constituição brasileira.

De todo modo, a critica que aqui faço vale para as duas posições: a de Gandra soa quase que como uma ameaça ao STF, porque escrita logo após a decisão do ministro Alexandre Moraes no caso Ramagem. Vejamos com cuidado:

Não entro no mérito de quem tem razão (Bolsonaro ou Moro), mas no perigo que tal decisão traz à harmonia e independência dos poderes (artigo 2º da CF), a possibilidade de uma decisão ser desobedecida pelo Legislativo que deve zelar por sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) ou de ser levada a questão — o que ninguém desejaria, mas está na Constituição — às Forças Armadas, para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema”.

Com todo o carinho e respeito que merece o professor Ives Gandra, digo: se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Explicarei isso na sequência.

No referido artigo que publiquei na Folha, critiquei fortemente a posição de Safatle, a qual, além de descabida, é estranha porque parte de um campo oposto ao da direita política. No específico, Safatle ignora o que seja interpretação sistemática. Faz um olhar textualista, algo sem sentido no Direito.

Ao tomar para si mesmo que o artigo autoriza intervenção militar interpretação essa que é feita pelos próprios setores a quem ele crítica —, Safatle contribui ele mesmo para essa verdadeira fraude à Constituição, que é fazer desse dispositivo uma espécie de “bomba relógio” ou botão de autodestruição. Sim, o texto de Safatle dá aos intérpretes, por ele criticados, foros de plausibilidade. No fundo, concorda com Gandra.

Bem, espero que Safatle tenha mudado de opinião. Com certeza, já o fez. De todo modo, a crítica que aqui faço vale, como disse, para toda e qualquer interpretação desviante que é feita ao artigo 142 da CF. À época, Safatle fez uma espécie de recuperação ideológica do que quis criticar.

Não, o artigo 142 da Constituição não autoriza que quaisquer poderes constitucionais possam requerer diretamente às Forças Armadas o seu emprego para “garantia da lei e da ordem” (sic), de tal modo que “o que virá depois” estaria “legalizado” de acordo com a própria Constituição. Essa leitura é rasa e errada.

O que diz o artigo 142?

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Assim, há de se ver que:

Primeiro, o artigo 142 determina que é o presidente da República a autoridade suprema sob a qual estão submetidas as Forças Armadas, consagrando o poder civil. Sim, poder civil.

Segundo, a lei e a ordem a serem garantidas são as das próprias instituições democráticas (Título V da CF). Esse é o ponto chave. As FAs não são o fiel da democracia. Ou seja, elas não podem intervir a qualquer momento. Uma leitura dessas é totalmente inconstitucional e antirrepublicana.

Terceiro, o parágrafo único do artigo 142 prevê que lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas no emprego das Forças Armadas (a LC nº 97, artigo 15), que não apenas submete esse emprego a uma cadeia de comando, civil no seu topo, assim como estabelece um procedimento a ser estritamente cumprido para isso e, por fim, determina o caráter somente subsidiário desse emprego, para a garantia da segurança pública, termos em que “lei e ordem” devem ser corretamente interpretadas. “Lei e ordem” não significam “autorização para intervenção golpista”.

Por fim, todos sabemos que, em uma democracia, não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícias e forças armadas. Por essa razão é que somente um poder eleito poderá dispor da palavra final, como Constituição e lei aqui determinam.

Ou seja, as interpretações simplificadoras do artigo 142 devem ser abortadas ab ovo. Por isso a minha crítica a Safatle. A solicitação dos poderes é feita sempre ao presidente da República, que é o comandante das Forças Armadas e que deve determinar a atuação, nos casos e nos termos do previsto constitucionalmente para o estado de defesa e do estado de sítio e de acordo com a lei complementar. O fato de, circunstancialmente, o Poder Executivo estar ocupado por alguém que tenha simpatia por AI-5 e quejandos, não pode, nem de longe, dar azo a uma hermenêutica do retrocesso democrático.

Ainda à época em que Safatle escreveu o texto, os professores Marcelo Cattoni, Emilio Meyer e Tomas Bustamante produziram um alentado artigo para esta ConJur, intitulado “A Constituição protege o sistema político contra qualquer intervenção militar“, quando disseram, inclusive, que o texto de Safatle era um tiro no próprio pé.

Também o professor Bruno Galindo produziu certeiro texto ao dizer que, se observarmos pelo aspecto hermenêutico-jurídico, simplesmente não existe qualquer possibilidade de intervenção militar “constitucional” nos moldes que têm sido defendidos. O próprio teor literal se assim se quiser tomar um textualismo do artigo 142 afasta a possibilidade de ação autônoma das Forças Armadas sem a subordinação a um poder civil. Mas consideremos outros elementos hermenêutico-constitucionais. O princípio da unidade da Constituição e o elemento sistemático permitem ver na Constituição outros dispositivos como aqueles que estabelecem as regras da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (artigos 34, 36, 136 a 141), bem como a existência de conselhos como o da República e o de Defesa Nacional (artigos 89 a 91), tendo os comandantes das FAs e o ministro de Estado da Defesa assento permanente neste último, mas função opinativa, cabendo a decisão superior ao presidente da República. Assim, por todos os ângulos, uma interpretação do artigo 142 que autorize uma intervenção militar é um arrematado absurdo (ver aqui).

Ao fim e ao cabo, resta alertar que artigos como o de Safatle, Ives Gandra e Jorge Zaverucha (aqui) dão azo às lendas urbanas. Já ouvi um general, radialistas e gente de TV dizendo a mesma coisa: a de que as Forças Armadas têm autorização para intervir “no caos”.

Pois é. Lendas se formam assim. Alimentemo-las e lá vem bomba.

 é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).