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Feliciano e Ebert: Coronavírus e meio ambiente de trabalho

Nos primeiros dias de 2020, o mundo soube do surto endêmico de uma nova forma de coronavírus o SARS-CoV-2 , à altura restrito à cidade chinesa de Wuhan. Ao contrário de seus análogos já conhecidos, a doença provocada pelo SARS-Cov-2 conhecida como Covid-19 tinha por características sintomáticas a manifestação mais intensa e duradoura de coriza, febre, diarreia, vômito, falta de apetite, perda do olfato e do paladar, aguda dificuldade respiratória e dores no corpo que poderiam evoluir para um quadro de pneumonia grave.

Nas semanas e meses seguintes, o surto ganharia o status de epidemia, atingindo as demais metrópoles chinesas e extrapolando as fronteiras daquele país em direção ao Japão e à Coreia do Sul para, então, dispersar-se por todo o mundo, no embalo do frenético trânsito de pessoas e de bens a caracterizar a economia globalizada do século XXI e adquirir o grau de pandemia.

No final de fevereiro, após a Covid-19 se propagar em solo europeu, foram registrados os primeiros casos no Brasil. No decorrer do mês de março, os doentes já eram contados aos milhares e os mortos, às centenas, restando ao Ministério da Saúde reconhecer e anunciar a ocorrência de transmissão comunitária em todo o território nacional.

A partir do momento em que se reconhecia nacionalmente o fenômeno da transmissão comunitária, a dispersão do coronavírus adquiriu outro patamar, tornando-se uma questão efetivamente ambiental, na medida em que a circulação do microorganismo nos espaços naturais e artificiais que abrigam a população em geral passou a consubstanciar risco biológico sistêmico e agravado. Em tal estágio, qualquer indivíduo está sujeito, em maior ou menor grau, a adquirir a Covid-19 nos lugares em que frequenta, e, mais, a transportar o agente transmissor para outros espaços, de modo que o vírus passou a ser um vetor biológico de base antrópica (porque disseminado pelo ser humano) passível de interferir negativamente na qualidade de vida da coletividade e de seus integrantes.

Nesse contexto, o meio ambiente do trabalho, a compreender o sistema formado pelas condições físicas, psíquicas e organizacionais que circundam os indivíduos no desempenho de suas atividades profissionais, passou a figurar como um possível espaço de entronização e circulação do coronavírus, de modo que aquele risco agravado, presente na generalidade dos espaços naturais e artificiais, também passou a integrá-los e a condicionar decisivamente a qualidade de vida dos trabalhadores ali inseridos.

Pode-se afirmar, portanto, que a entronização e a circulação do coronavírus nos espaços laborais constitui um nítido suposto de poluição labor-ambiental, na medida em que tal possibilidade acaba por instituir naqueles espaços um estado de “desequilíbrio sistêmico no arranjo das condições de trabalho (e) da organização do trabalho”, de modo a ocasionar aos indivíduos ali ativados “riscos intoleráveis à segurança e à saúde física e mental (…) arrostando-lhes, assim, a sadia qualidade de vida”.

No ordenamento jurídico brasileiro, com efeito, o direito ao meio ambiente equilibrado, como consagrado pelo artigo 225, caput, da Constituição, abrange todos os aspectos naturais, artificiais e culturais logo, físicos e imateriais que circundam os seres humanos e que interferem na sua sadia qualidade de vida, incluindo-se aí aqueles que integram e condicionam o trabalho por eles desempenhado.

E como corolário do direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado, a Constituição Federal consagrou, no seu artigo 7º, XXII, o direito social jusfundamental à “redução dos riscos inerentes ao trabalho”, que: a) realiza no plano laboral o princípio jurídico-ambiental da melhoria contínua ou do risco mínimo regressivo; b) é titularizado por todos os trabalhadores, sejam ou não subordinados; e c) traduz-se, para os empresários, nos deveres de antecipação, de planejamento e de prevenção dos riscos labor-ambientais.

Em linha com tal diretriz constitucional, a Convenção nº 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, estabelece em seus artigos 16 a 19 que as empresas são obrigadas a garantir a segurança de seus processos operacionais com relação à integridade psicofísica de seus trabalhadores, bem como a implementar todas as medidas cabíveis, segundo a melhor técnica disponível, para elidir ou minimizar os riscos existentes em seus ambientes de trabalho, incluindo-se, aí, a elaboração de procedimentos destinados a lidar com situações de urgência .

Logo, à luz do conceito de meio ambiente do trabalho contemplado pela Constituição Federal de 1988, tem-se que o ingresso do coronavírus nos locais de trabalho, em um contexto de transmissão comunitária, configura um efetivo risco a desestabilizar o equilíbrio das condições de trabalho e a qualidade de vida dos trabalhadores, configurando típica hipótese de poluição labor-ambiental delineada no artigo 3º, “a” e “b” da Lei 6.983/1981.

Note-se, ademais, que, de acordo com a mesma Lei nº 6.938/81, o poluidor é classificado em seu artigo 3º, IV, objetivamente, como “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. Daí porque, oportunizando a entronização e a circulação do coronavírus no meio ambiente artificialmente organizado, em condições de transmissão comunitária, há risco proibido ou “intolerável” que convola o empregador em poluidor, para os fins do referido dispositivo, haja ou não culpa no fato da contaminação interna. Daí porque os tomadores de serviços em geral se encontram obrigados, por força dos artigos 7º, XXII, e 225, caput, da Constituição Federal e dos artigos 16 a 19 da Convenção nº 155 da OIT a implementar programas e medidas concretas de prevenção destinadas a eliminar ou minimizar as ameaças derivadas do novo coronavírus.

Como antecipamos e ainda à luz da Convenção nº 155 da OIT , as medidas a serem implementadas pelos empresários, no resguardo do meio ambiente laboral e da integridade psicofísica dos trabalhadores, não se limitam às determinações legais e regulamentares expedidas pelos governos federal, estadual, municipal e/ou distrital, abrangentes das medidas concretas esperadas para este momento crítico. Nem tampouco há plena exoneração de responsabilidades (especialmente as administrativas e civis) apenas porque tais determinações foram observadas, o que redundaria em exacerbado formalismo e reducionismo jurídico incompatível com um ordenamento integrado por princípios cogentes.

Bem ao revés, o que os artigos 16 a 19 da Convenção nº 155 da OIT impõem aos empresários com respaldo, igualmente, nos artigos 7º, XXII e 225, caput, da Constituição Federal é o dever geral de proteção, de prevenção (= prevenção/precaução) e/ou de indenidade labor-ambiental, pelo(s) qual(is) compete aos gestores dos riscos das atividades econômicas (i.e., aos empresários e afins) o planejamento, a antecipação e a implementação das medidas que se mostrem necessárias, diante dos casos concretos, para evitar ou minimizar as situações de potencial contágio dos trabalhadores pelo coronavírus.

Formuladas tais premissas, pode-se afirmar, em termos gerais, que a primeira obrigação dos empresários em face dos riscos de introdução e proliferação do coronavírus nos locais de trabalho consiste na elaboração de um plano abrangente, no âmbito do respectivo PCMSO, capaz de: I) antecipar e registrar as possibilidades de ingresso daquele microorganismo em seus estabelecimentos; e II) prever as medidas coletivas e individuais de urgência a serem implementadas nas unidades produtivas com vista a debelar ou minimizar as possibilidades de contágio pelo SARS-Cov-2 por parte dos trabalhadores, na linha do que preleciona o artigo 18 da Convenção nº 155 da OIT.

Nessa alheta, a NR-1 do extinto Ministério do Trabalho (e, atualmente, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia), já com a nova redação conferida pela Portaria nº 6.730, publicada no DOU de 9/3/2020, estabelece textualmente, em seu item 1.4.1, que os empresários estão obrigados a avaliar e antecipar de maneira adequada e realista os riscos ambientais presentes nos locais de trabalho, bem como a agir concretamente para elidir ou minimizar tais riscos, por intermédio: I) da reorganização dos fatores de produção; II) do estabelecimento de medidas de proteção coletiva; e III) do fornecimento de equipamentos de proteção individual.

Em segundo lugar, o dever geral de indenidade labor-ambiental subjacente aos sobreditos dispositivos constitucionais e convencionais impõe aos empresários a implementação “intramuros” das medidas comezinhas de planejamento emergencial nacionalmente preconizadas para toda a população, em observância às recomendações técnicas emanadas das autoridades sanitárias para o combate à proliferação do coronavírus, sendo, portanto, plenamente válidas para os locais de trabalho as seguintes diretrizes sanitárias de aplicação universal:

a) o uso de equipamentos coletivos e individuais de segurança biológica, específicos para os riscos da pandemia (p. ex: álcool em gel e máscaras);

b) o distanciamento mínimo de, aproximadamente, dois metros entre os trabalhadores;

c) a instalação e a disponibilização massiva de equipamentos e insumos destinados à lavagem frequente das mãos;

d) a ventilação dos ambientes e a otimização da circulação do ar;

e) a higienização constante dos equipamentos de uso coletivo;

f) o afastamento imediato dos sujeitos integrantes dos chamados “grupos de risco”; e

g) o afastamento imediato dos sujeitos portadores de sintomas que permitam razoavelmente supor a contaminação pelo SARS-Cov-2;

Em respaldo às imposições acima descritas que, insista-se, deixam de ser meras recomendações sanitárias e se convolam em genuínas obrigações jurídicas para o empregador, mercê do risco profissional engendrado no interesse da atividade econômica e do seu dever de garante do equilíbrio labor-ambiental , a Organização Internacional do Trabalho editou, recentemente, o informe intitulado Las normas de la OIT y el Covid-19 (Coronavirus), em que reitera as obrigações emanadas da Convenção nº 155 no sentido de que os empresários devem: I) implementar todas as medidas possíveis, segundo a melhor técnica, para reduzir ao mínimo os riscos inerentes à exposição ocupacional ao coronavírus; II) proporcionar aos trabalhadores as informações adequadas sobre tais riscos; III) estabelecer procedimentos de urgência para a situação geral da pandemia; e IV) notificar os casos de contaminação às autoridades sanitárias.

Caso tais obrigações essenciais não sejam observadas pelos empresários, ter-se-á a instalação de risco proibido nos ambientes de trabalho por eles administrados, com degradação ambiental de base antrópica que permite considerá-los poluído, comprometendo potencialmente a vida, a saúde, a integridade psicofísica e/ou o bem-estar não apenas dos trabalhadores (subordinados ou não), mas também de toda a comunidade de entorno, mormente no atual contexto de transmissão comunitária do coronavírus.

Nessa esteira, como dizíamos, a omissão patronal no que concerne à antecipação, à prevenção e ao combate efetivo dos riscos representados pela entronização do coronavírus em seus estabelecimentos e isso se aplica a todas as atividades que envolvam trabalhadores, sejam ou não empresariais  sujeita-os, nos termos do artigo 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 à responsabilização objetiva (i.e., independentemente da existência ou comprovação da culpa subjetiva de prepostos do empregador) por todos os danos físicos e psíquicos que, por conta da Covid-19, vierem a acometer os trabalhadores contagiados com o SARS-Cov-2, inclusive em função da inobservância das diretrizes sanitárias amplamente divulgadas para a contenção dos contágios.

Quanto ao nexo causal propriamente dito, mormente após a suspensão da eficácia do artigo 29 da MP nº 927/2020 pelo STF (ADI nº 6.342/DF), havendo evidências de que o trabalhador infectado com o SARS-Cov-2 expôs-se à contaminação em função do seu trabalho, ou mesmo na situação de trabalhadores ativados em empresas nas quais já se detectou a contaminação comunitária intramuros , pode-se desde logo presumir o nexo de causalidade entre a afecção e a atividade laboral (CLT, artigo 818, §1º), cabendo ao empregador fazer a prova contrária.

Por fim, convém recordar que a Convenção nº 155 da OIT, em resguardo aos relevantíssimos bens jurídicos por ela protegidos (e igualmente tutelados pelos artigos 7º, XXII, e 225, caput, da Constituição Federal), legitima a paralisação do trabalho por parte dos próprios obreiros, ex vi de seus artigos 13 e 19, “f”, ante a constatação de um risco grave e iminente à sua vida ou à sua saúde, tal como a transmissão comunitária do coronavírus no meio ambiente de trabalho. Esse direito de resistência, se exercido coletivamente, configurará clara hipótese de greve ambiental, à qual não se aplica a regra do artigo 7º, caput, in fine, da Lei 7.783/1989, pois ‘tem por finalidade resguardar a segurança, a saúde e a higiene do trabalhador em face da degradação ambiental”.

Por tudo o que se viu, é certo que o contágio pelo SARS-Cov-2 configura, no atual contexto de transmissão comunitária e de circulação irrestrita do vírus, um novo risco biológico e social, que interfere sistematicamente no equilíbrio do meio ambiente humano, tanto em sua dimensão natural como em sua dimensão artificial (e, portanto, também no meio ambiente do trabalho). Essa nova realidade demanda dos empregadores, gestores que são de seus próprios espaços produtivos, a implementação de todas as medidas antecipatórias destinadas a neutralizar ou minimizar os impactos do coronavírus.

Por outro lado, internalizado o SARS-Cov-2 no meio ambiente de trabalho, transformando o estabelecimento em uma caixa de ressonância infectológica, configura-se um estado de degradação labor-ambiental, originado pelo elemento humano, que a legislação define como poluição (Lei 6.938/1981, arigo 3º). Sob tais circunstâncias, o empregador passa a responder civilmente pelos danos experimentados por seus trabalhadores, caso desenvolvam a Covid-19, independentemente da existência ou da prova de culpa lato sensu e, havendo dolo ou culpa, poderá responder pessoalmente até mesmo por ilícitos penais.

Para evitar tais consequências, empregadores em geral devem lançar mão de medidas de planejamento e de ação tão excepcionais e ingentes quanto a própria pandemia, transcendendo a lógica do custo-benefício (monetização) para colimar sobretudo o resguardo, na maior medida possível, da vida, da saúde e da integridade psicofísica dos seus trabalhadores.

 é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, livre-docente em Direito do Trabalho e doutor em Direito Penal pela FDUSP, doutor em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa.

 é advogado, professor universitário, doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

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Reflexões sobre o uso da telemedicina em tempos de Covid-19

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta a respeito do que uma misteriosa pneumonia, originária da cidade de Wuhan. Desde então, o SARS-CoV-2, vírus por trás da Covid-19, já infectou mais de 4 milhões de pessoas no mundo, vitimando mais de 280 mil, de acordo com números de maio de 2020.

Não há cura conhecida para a Covid-19 e uma vacina viável ao uso demorará, no mais otimista dos cenários, cerca de um ano ou um ano e meio, segundo o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid), Anthony Fauci. Neil Ferguson salienta que a Covid-19 é a mais séria ameaça à saúde pública por vírus respiratório desde a pandemia de gripe espanhola, em 1918.[1]

Sem terapias eficazes no combate à Covid-19, abre-se espaço às chamadas intervenções não-farmacêuticas ou non-pharmaceutical interventions (NPIs). Tais medidas têm como objetivo a redução das taxas de transmissão do vírus pelo distanciamento social.[2] Segundo o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, a testagem e o isolamento são fundamentais para a quebra da cadeia de transmissão.

Ainda de acordo com Ferguson, o isolamento dos casos e a quarentena domiciliar, juntamente com o distanciamento daqueles na faixa etária de risco, bem como dos portadores de doenças crônicas, reduzirá, consideravelmente, o número de óbitos ao final desta pandemia, seja pela adoção da estratégia de mitigação ou da supressão.[3]

É preciso ficar em casa, portanto. E, neste sentido, inúmeras empresas e escritórios operam em regime de teletrabalho e os governos estaduais vêm restringindo o funcionamento de estabelecimentos comerciais, ressalvados os que sejam relacionados a serviços tomados como essenciais. As instituições de saúde são exemplos destes serviços essenciais e, a exemplo do que se observa na China e na Itália, os médicos são, a cada dia, mais empurrados na direção do centro da pandemia.

Diante do cenário de urgência global, que foi sendo rapidamente desenhado, o Ministério da Saúde baixou a Portaria 467/2020, que dispõe sobre as ações de telemedicina. Além de se amparar na notória emergência em saúde pública de importância nacional, declarada pela Portaria 188/GM/MS/2020, o ato se apoia na Resolução 1.643/2002 e no Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR.

Na telemedicina, a relação médico-paciente é intermediada por meio de instrumentos tecnológicos. Discute-se sua regulamentação no Brasil, há tempos e, neste momento em que há recomendações de se evitar aglomerações e não buscar os prontos socorros dos serviços de saúde, a não ser quando a medida seja indispensável, este tipo de atendimento médico remoto surge como um aliado à quebra da cadeia de contágio do Covid-19.

Acontece que telemedicina é gênero e comporta algumas espécies/modalidades. O Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR reconheceu a eticidade, apenas, da utilização das modalidades de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta. De forma breve: na primeira modalidade, fala-se de orientação e encaminhamento de pacientes em isolamento, a segunda trata de monitoramento à distância dos parâmetros de saúde e/ou doença e, na última, diz-se de modalidade que objetiva a troca de informações e opiniões entre médicos, para auxiliar no diagnóstico e na terapia. O reconhecimento mencionado neste parágrafo é, ainda, adstrito ao período que durar a pandemia de Covid-19.

A telemedicina é tratada pelo CFM com certa reserva. Na própria Resolução 1.643/2002, balanceia-se as consequências positivas da telemedicina com os “muito problemas éticos e legais decorrentes de sua utilização”. Uma das preocupações do Conselho com relação a este avanço tecnológico, expressa-se pela assertiva de que o médico só deve emitir sua opinião, recomendação ou mesmo tomar decisões se as informações recebidas forem suficientes para tanto. Ainda, há críticas à telemedicina que tocam a “preocupação com os riscos de uma piora no atendimento, com atrasos ou dificuldades no diagnóstico em razão da distância” e o “enfraquecimento da relação de confiança entre médico e paciente”. Além de tudo isso, o artigo 37 do próprio Código de Ética Médica veda a prescrição de tratamento e outros procedimentos sem o exame direto do paciente, ressalvados os casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada da realização do exame.[4]

Outra modalidade dentro da telemedicina é a teleconsulta, não contemplada pelo ofício do CFM. A propósito e apenas a título de informação, a Resolução 2.227/2018 definia como premissa da teleconsulta “prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente”, o que parecia mitigar o pesado caráter de antieticidade desta modalidade de telemedicina, já que o contato presencial com o paciente existiria, ainda que de forma espaçada. A resolução em comento foi revogada em 22 de fevereiro de 2019.

Ocorre que, não obstante o constante do referido ofício, a Portaria 467/2020, ao ser abrangente, acabou por causar certa confusão entre especialistas da área e os próprios profissionais. Isto porque o dispositivo menciona atos médicos típicos de consulta, como atendimento pré-clínico, consulta (em sentido estrito) e diagnóstico, inclusive dispondo sobre a possibilidade de emissão de receitas e atestados médicos.

O fato de o ofício do CFM não reconhecer a eticidade da teleconsulta pode gerar certa preocupação por parte dos médicos e médicas quanto à utilização da referida modalidade de telemedicina no relacionamento com o paciente. Uma vez que, em termos práticos, a eticidade da teleconsulta não foi reconhecida pelo CFM e o seu uso poderia, em tese, representar uma falta ética. Naturalmente, os Conselhos Regionais de Medicina fazem eco ao posicionamento do Conselho Federal.

Para fins de ilustração, o CRM-ES, ao disciplinar a telemedicina no Espírito Santo, pela Instrução Normativa CRM-ES 01/2020, admite a possibilidade de estabelecimento de “canais de orientação médica que objetivem esclarecimentos e orientações preventivas relacionadas a pandemia do Covid-19”,[5] sendo que os atos médicos “desenvolvidos nesse enfrentamento que, porventura, sejam objeto de questionamento, serão avaliados pelo CRM, que levará em consideração todo esse contexto”. O Cremesp, por seu turno, ao mesmo tempo em que reconhece a excepcionalidade da situação, reforça a autorização da assistência médica à distância nas condições de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta.[6] O mesmo tom é observado na Resolução CRM/DF 453/2020.

Não obstante a implicação acima destacada, reconheça-se que o Brasil encontra-se em um verdadeiro estado de exceção, que urge uma resposta, em termos de saúde, eficaz, tempestiva e remota. Decerto, a flexibilização da eticidade da telemedicina deve ser concebida como um apoio aos esforços empreendidos pelas políticas públicas de saúde estabelecidas em prol da saúde dos brasileiros.

A recomendação é que o médico e a médica atentem-se a todas os requisitos das ações de telemedicina trazidos pela portaria, inclusive em teleconsulta, já que não há notícia da flexibilização da eticidade de nenhum dos outros deveres delimitados pelo Código de Ética Médica.

Todo atendimento deverá ser registrado em minucioso prontuário clínico que contenham os dados clínicos pertinentes à boa condução do caso, com preenchimento para cada contato. Atestados e receitas médicas emitidas por meio eletrônico devem passar por validação pelo uso de assinatura eletrônica ou de dados associados à assinatura do médico e a tecnologia utilizada para o contato direto entre o médico e o paciente deve ser capaz de garantir a integridade, a segurança e o sigilo das informações.

Nesse sentido, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), após reunião extraordinária da sua diretoria colegiada, em 31 de março de 2020, firmou o entendimento através da Nota Técnica 7/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO de que: “(…) telessaúde é um procedimento que já tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde, uma vez que se trata de uma modalidade de consulta com profissionais de saúde. Dessa forma, não há que se falar em inclusão de procedimento no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, devendo os profissionais observarem as normativas dos Conselhos Profissionais de Saúde e/ou do Ministério da Saúde.” Sendo, portanto, de cobertura obrigatória para seus beneficiários.

Na respectiva reunião, a diretoria colegiada da ANS também aprovou por meio das Notas Técnicas 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES e 4/2020/DIRAD-DIDES/DIDES que, enquanto permanecer a situação de calamidade pública na saúde, não será necessário a alteração e ou adaptação da contratualização entre operadoras e prestadores de serviços para o exercício da telemedicina, mantendo-se as cláusulas já vigentes nesses contratos, em especial na RN 363/2014, desde que exista qualquer outro instrumento (troca de e-mails, mensagem eletrônica através do portal da operadora) que permita identificar que as partes pactuaram as regras para realização deste tipo de atendimento.

Em resumo, as operadoras deverão prever um desses meios de comunicação com o prestador:

  • “A identificação dos serviços que podem ser prestados, por aquele determinado prestador, por intermédio do tipo de atendimento telessaúde;
  • Os valores que remunerarão os serviços prestados neste tipo de atendimento; e
  • Os ritos a serem observados para faturamento e pagamento destes serviços.”

Ao final da referida nota técnica, a autarquia determina que essa negociação permita a manifestação de vontade de ambas as partes e informa que essa medida irá perdurar enquanto o país estiver em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), “sendo certo que se os atendimentos por meio de telessaúde seguirem autorizados pela legislação e regulação nacional após este período, será necessário ajustar os instrumentos contratuais entre operadoras e prestadores de serviços de saúde”.

A flexibilização da contratualização, adotada pela ANS, é fundamental em tempos de uma pandemia, mas dependerá, sem sombra de dúvidas da flexibilização de inúmeras questões contratuais dessa conturbada relação entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviço, além de uma mudança de hábitos da própria relação médico x paciente, a fim de compatibilizar a telemedicina com o atual momento de isolamento social.

Nosso escritório está preparado para auxiliar nossos clientes e parceiros nesse novo estágio da contratualização no mercado de saúde suplementar, sobretudo no que for necessário a adequação dos stakeholders à regulamentação e ao estado de calamidade pública.

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

Abner Brandão Carvalho é advogado.

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Damiani e Mazzieiro:Isolamento vertical é ilegal e ineficaz

O mundo vivencia as mazelas do novo coronavírus. Cada país tenta combatê-lo à sua maneira — alguns com relativo sucesso, outros, nem tanto. A pandemia parece longe do fim, contudo, já deixou importante lição: há que se aprender com a experiência alheia, isto é, replicar e aprimorar o que funcionou e abandonar o que deu errado.

A China, por exemplo, enfrentou o vírus em sua fase embrionária. Entre as várias medidas sanitárias adotadas, impôs regime de isolamento total em Wuhan – epicentro da primeira contaminação. Pouco tempo depois, combinou testagem massiva e duras restrições para todo o seu território. Quatro meses se passaram e pouquíssimos casos de transmissão local foram registrados. Na mesma esteira, Coreia do Sul, Cingapura e Hong Kong obtiveram relativo sucesso contra o vírus.

Na contramão, vieram Estados Unidos, Espanha e Itália. Quando realmente foram desafiados pela força da Covid-19, não seguiram a cartilha dos asiáticos. Prevaricaram. Por exemplo, num primeiro momento, os italianos ignoraram o surto. Focados na economia, lançaram a campanha virtual #MilanoNonSiFerma (“Milão não para”) e mantiveram o comércio aberto. Dias depois, perceberam o erro mortífero, afinal, o vírus nunca parou. Como consequência direta, a Itália soma dezenas de milhares de mortes. Por muito tempo, liderou o ranking global nesse quesito. Hoje, ocupa a segunda posição. Os norte-americanos ocupam a primeira — e trágica — posição. Triste cenário!

De outro lado, pode-se dizer que Holanda e Inglaterra, a duras penas, seguiram precioso ensinamento do filósofo romano Cícero — “qualquer pessoa pode errar, mas ninguém que não seja tolo persiste no erro”. No meio do caminho, replicaram as medidas adotadas por outros países na luta contra o coronavírus. Copiaram o que deu certo, em sábia decisão.

Já o Brasil, desde o início, promoveu o isolamento horizontal — também chamado de lockdown horizontal. Até o momento, tal decisão demonstra ser a mais acertada. De acordo com o Centro de Estudos Estratégicos do Exército (Ceeex), países que adotaram o isolamento social, fechamento do comércio e das escolas, proibição de eventos públicos e rígido controle das fronteiras têm conseguido diminuir o avanço da doença.

No entanto, ao longo das últimas semanas, alguns poucos governantes, entre eles o próprio presidente da República, sugerem mudança drástica: sai o isolamento horizontal, entra o vertical. Mesmo na falta de informações precisas sobre quantos infectados há no Brasil, propõem a imediata reabertura de escolas, universidades e comércio, mantendo-se isolados exclusivamente os idosos e pessoas com doenças pré-existentes.

Na teoria, o isolamento “cirúrgico” parece sedutor. Sozinho, contudo, ele não se sustenta, seja porque carece de fundamento legal (viola aspectos do Direito Constitucional e Penal), seja pela sua comprovada ineficácia. Ora, na prática, os idosos dificilmente estarão protegidos, uma vez que mais de 16% deles residem com adultos e crianças, conforme dados do censo do IBGE de 2010 e estudos do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ou seja, assim que a população ativa retomar suas atividades cotidianas, o vírus fatalmente pegará carona até os mais velhos, tornando a medida insustentável.

Além disso, o isolamento vertical mostra-se ainda mais deletério quando se analisa o grupo dos portadores de doenças pré-existentes. Estudos desenvolvidos por pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Associação Brasileira de Educação e Tecnologia apontam que cerca de 45% dos brasileiros com mais de 18 anos possuem alguma enfermidade crônica, como hipertensão, insuficiência renal, diabetes, câncer e complicações cardiovasculares. Em síntese, caso adotado apressadamente, o lockdown vertical representará verdadeira “política genocida”, na expressão cunhada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.

No detalhe, o artigo 196 da Constituição Federal prevê que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, devendo este assegurar, inclusive, a “redução do risco de doença (…)”. Bem por isso, referido texto constitucional proíbe, expressamente, a criação de medidas capazes de colocar em risco a saúde e, reflexamente, a vida dos cidadãos. De qualquer um.

Por consequência lógica, não pode o Estado agir como um propagador de doenças, sob pena de que seus agentes sejam eventual e criminalmente responsabilizados por “causar epidemia”, nos termos do artigo 267 do Código Penal. Destaque-se que as sanções para esse delito são de dez a 15 anos de reclusão e, em caso de morte, aplicam-se em dobro.

Dessa forma, somando-se o retumbante fracasso do isolamento vertical em outros países e a muralha jurídica nacional, endurecida pela argamassa constitucional e penal, o isolamento vertical somente será permitido caso outros tantos requisitos legais e científicos sejam fielmente cumpridos.

João Paulo Mazzieiro é sócio da Damiani Sociedade de Advogados e especializado em Teoria Geral do Direito Penal pela USP.

 é sócio fundador do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GV-LAW).