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Luciana Gouvêa: Soluções online para os conflitos

João Pedro e Danielle assinaram documento declarando união estável em dezembro de 2019. Três meses antes, em setembro, José Rafael e Clara tiveram a grande emoção de receber o mais novo representante da família, seu primeiro filho. Marialice e Gabriel Luís estão apaixonados, mas cada um mora no seu bairro. Edinho e Luana estão casados há mais de 30 anos e trabalham firme, ele nas duas startups que fundou e ela aplicando terapias alternativas.

O que esses quatro casais têm em comum? As crises que estão passando em 2020 devido à doença do coronavírus (Covid-19), doença infecciosa que faz as pessoas adoecerem apresentando inicialmente sintomas leves a moderados, transmitida principalmente por meio de gotículas de algum infectado que tosse, espirra ou exala, mas que tem levado a óbito aproximadamente seis pessoas de cada cem contaminadas (junho/2020).

O vírus, além de estar impactando a política e a economia mundiais, trouxe os mais diferentes desafios nas relações familiares e pessoais devido às determinações de isolamento social. Exemplo disso foi o registro de crescimento de 82% da pergunta “como dar entrada em um divórcio?” (dados do Google Brasil de abril), também o número recorde de pedidos de divórcio em uma das cidades da China e, mais recentemente, a suspensão de casamentos e divórcios determinada pelo Ministério da Justiça da Rússia.

Ademais, devido ao aumento das mortes em todo o mundo, especialmente entre pessoas com mais idade, incluindo chefes de família e fundadores de empresas, as consultas referentes às questões relativas a herança, partilha e sucessão de bens aumentaram expressivamente nos escritórios de advocacia.

Ora, se os tribunais brasileiros já estão abarrotados de processos (79 milhões), quem vai solucionar as possíveis crises desse momento, quando os acontecimentos podem ser tratados como casos fortuitos ou de força maior devido à determinação de quarentena para todos? Como o Judiciário decidirá sobre quem tem ou não razão se houver desentendimento entre casais, entre sócios ou herdeiros, ou qualquer quebra de contrato?

Primeiramente, vale esclarecer, nos casos fortuitos ou de força maior há a possibilidade de descumprimento das obrigações devido à ocorrência de algo inevitável, previsível ou não, como o caso da pandemia da Covid-19, por isso vivemos tempos de grande insegurança econômica e jurídica e, para momentos assim, de excepcionalidade, melhor usar de precaução consultando bons advogados que auxiliem na resolução do conflito porventura existente, tanto entendendo das leis vigentes, quanto atuando com métodos de autocomposição, a fim de ser possível às partes a realização de negociação ganha-ganha e das soluções melhores para todos os envolvidos.

Ademais, existem diversas medidas anticonflitivas que podem ser realizadas em cartório, e até mesmo particularmente, para aqueles quatro casais e para tantos outros poderem evitar usar os serviços lentos e caros da Justiça  brasileira. Doações, testamentos, contratos de namoro, divórcios via escritura pública e inventários extrajudiciais também, assim como partilha de bens fora do Judiciário, negociação de dívidas tributárias de empresas com uso de precatórios judiciais ou de dívidas com outros credores por intermédio de recuperação extrajudicial, e muito mais, são algumas das possibilidades.

Se um ente familiar faleceu e deixou bens, para que esses bens (imóveis, investimentos, empresas etc) sejam transmitidos aos seus sucessores, eles devem ser organizados e divididos. Isso já pode ser feito fora do Poder Judiciário (inventário extrajudicial), o que acarreta agilidade e barateamento de custos. Foi a Lei 11.441/07 que desburocratizou o procedimento de inventário, e também possibilitou efetuar divórcios e partilhas de bens nos cartórios, por meio de escritura pública, de forma rápida, simples e segura, mas exigindo a participação de ao menos um advogado para assistência das partes.

Para as possíveis desavenças daqueles quatro casais que já completaram três meses de reclusão devido à pandemia, vale a busca por profissionais do Direito, mas também especialistas em conciliação e mediação, técnicas amplamente adotadas para solucionar as questões controvertidas, muito praticadas em países de primeiro mundo e estimuladas pelo Conselho Nacional de Justiça que normatizou audiências virtuais pela Plataforma Emergencial de Videoconferência (Portaria nº 61/2020 do CNJ) e que recentemente anunciou nova plataforma para realização de sessões de conciliação e mediação, totalmente online, especialmente para resolver os conflitos desse tempo de Covid-19.

Mesmo nesse período de proibição de ações presenciais, é possível buscar a melhor solução para os conflitos de maneira virtual, por intermédio de videoconferência, até mesmo iniciar pedidos online de divórcio, de divisão de bens, de acerto de dívidas, ou simplesmente buscar informação sobre o que é legal, e o que não está de acordo com a legislação ou conforme os julgamentos jurisprudenciais, lembrando que essas são atividades técnicas e devem ser exercidas por profissionais do Direito, imparciais, sem poder de decisão, experientes na facilitação das soluções consensuais de conflitos.

 é advogada, diretora-executiva do escritório Gouvêa Advogados Associados (GAA), pós-graduada em Neurociências Aplicadas à Aprendizagem (UFRJ) e em Finanças com Ênfase em Gestão de Investimentos (FGV) e especialista em Mediação e Conciliação de Conflitos e Proteção Patrimonial legal.

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MP 966: para “livrar a cara” dos agentes públicos?

Foi editada a Medida Provisória 966, que “dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19”. Trata-se de mais uma nova norma que integra a longa série de medidas editadas para compor um regime jurídico especial e específico para regular situações jurídicas no curso da pandemia de Covid-19.

Muito mistério e polêmica ronda a edição da MP. Teria sido editada para “livrar a cara” dos agentes públicos? Para conferir espécie de “salvo conduto” em relação ao uso de terapias com aplicação de cloroquina? Ou se trata de medida normativa legítima que pode conferir mais segurança jurídica para os responsáveis por condutas públicas em regime de urgência?

À toda vista, não parece se tratar de medida normativa destinada a “livrar a cara do servidor público”, mas a prevenir a responsabilização indevida dos agentes envolvidos nas ações de enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de importância internacional gerada pela pandemia de Covid-19.

A medida provisória praticamente reproduz normas contidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), com a redação dada pela Lei 13.655/18, para limitar a responsabilidade dos agentes públicos aos atos praticados com dolo ou erro grosseiro. Assim, a norma torna específicas para a situações que regula, certas regras que já existiam na Lindb.

A redundância, contudo, não é ruim. A especificidade da norma, de aplicação específica para situações envolvendo atos relacionados com a pandemia, pode contribuir muito para dar mais segurança jurídica para os agentes envolvidos nos processos relacionados a ela. Afinal, é esperado que os agentes públicos devam adotar todas as condutas e providências para proteção de valores jurídicos constitucionalmente tutelados, como a vida humana, a saúde e a proteção dos vulneráveis (incluída nesta noção as pequenas empresas). Estes agentes não devem limitar ou restringir a sua atuação por temor de responsabilização futura, e, em homenagem ao valor supremo da Justiça, não devem ser responsabilizados se não tiverem agido com dolo ou com culpa.

Embora redundante em parte, a MP traz uma inovação significativa em relação ao disposto na Lei 13.655/18: a previsão expressa de que o agente público somente pode ser responsabilizado nas “esferas civil e administrativa” se agir ou se omitir com dolo ou erro grosseiro.

Atente-se para que o artigo 28 da Lindb preceitua que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Perceba-se que esta norma da Lindb não faz referência à natureza da responsabilidade por dolo ou erro grosseiro. A omissão acerca da natureza da responsabilidade albergada na lei tem ensejado múltiplas interpretações sobre seu alcance e seus limites.

Em outros termos, há quem defenda que o limite da responsabilidade pessoal do agente público aos casos de dolo ou erro grosseiro previsto na Lindb somente se aplica para a responsabilidade de cunho sancionatório, não alcançando, portanto, a responsabilidade civil (reparar o dano).

Nesta linha, o agente público pode deixar sofrer sanção, por não ter sido provado o dolo ou o erro grosseiro, mas pode ser condenado a reparar os danos causados com a conduta praticada (responsabilidade civil).

Este é, por exemplo, o entendimento expressado no Acórdão 11.762/18 do Tribunal de Contas da União, pelo qual o agente público, por não ter sido provada conduta dolosa ou em erro grosseiro “deve ser condenado em débito, mas diante da ausência de culpa grave, deve ser dispensado de aplicação de multa”. O TCU neste caso, afastou a responsabilidade de cunho sancionatório, e entendeu presente a responsabilidade civil (reparar os danos).

A MP torna indubitável que os agentes públicos somente podem ser condenados à reparação de danos derivados de condutas comissivas ou omissivas, se tiverem agido com dolo ou erro grosseiro. Assim, se não houver prova de dolo ou de erro grosseiro, o agente público não poderá ser responsabilizado e condenado a reparar danos ou ressarcir prejuízos causados para a Administração Pública – além de não poder receber qualquer sanção.

À evidência, o que faz a MP é afastar a possibilidade de responsabilização objetiva dos agentes públicos – o que ademais nem seria necessário se fosse devida e suficientemente observado o princípio da culpabilidade, de índole constitucional (a este propósito, confira-se a previsão contida no artigo 1º, parágrafo 2º, da MP).

A MP afasta qualquer dúvida: os órgãos de controle interno ou externo estão proibidos de responsabilizar o agente público se não houver prova de dolo ou de erro grosseiro e, portanto, proibidos de aplicar a responsabilidade objetiva quando da apuração da responsabilidade.

Atente-se para que há um conceito normativo de erro grosseiro no artigo 2º da MP: “O erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”. Inegável que se trata de conceito jurídico indeterminado, mas de determinação notadamente possível em razão de situação fática efetiva e concreta.

No plano da hermenêutica jurídica não basta para caracterizar o erro grosseiro que a conduta tenha sido realizada com negligência, com imprudência ou com imperícia, típicos elementos da culpa em sentido estrito. Quer parecer então, que, a partir da edição da MP em questão, a conduta que pode ensejar responsabilização pessoal do agente público no enfrentamento da Covid-19 é apenas aquela de maior gravidade, que supere a simples falta de diligência, de pequena imprudência ou de imperícia que não seja grave.

A conduta descuidada, equivocada, incorreta, apressada, desidiosa, ineficiente, se não for dolosa, somente ensejará responsabilidade pessoal se for grave de modo a caracterizar o erro grosseiro.

Por contraditório que possa parecer, ao fazer referência a que somente o erro grosseiro – verdadeira dimensão qualificada de culpa – pode redundar responsabilização pessoal do agente, fica excluída a possibilidade jurídica de responsabilização pessoal por erro. Aquele que erra, na estrita dimensão do significado jurídico do erro, não pode mais ser responsabilizado pessoalmente. Atua em erro aquele que manifesta sua vontade a partir de uma percepção equivocada ou falsa de uma determinada realidade fática ou jurídica. Nos termos de Fabio Ulhoa “o conceito jurídico de erro é o da decisão tomada em função de falsa representação da realidade”.[1]

A identificação de erro grosseiro passa necessariamente pela análise das condições pessoais e materiais que tinha o agente quando da prática do ato. Aspectos subjetivos e aspectos objetivos da conduta em exame devem ser cuidadosamente examinados para a correta apuração da responsabilidade por erro grosseiro.

No plano subjetivo, demanda-se investigar o grau de capacitação que era exigível do agente, bem como suas aptidões e capacidades pessoais, de ordem técnica ou jurídica. É preciso que sejam exigíveis do agente público certas qualificações e capacitações técnicas ou jurídicas, que se não forem adquiridas e aplicadas podem resultar em condutas viciadas. Em sentido contrário, não se pode exigir certa conduta do agente público que exija capacitação superior àquela legalmente exigida para o exercício das atribuições de seu cargo ou função pública.

No plano objetivo, é preciso investigar acerca da suficiência dos recursos materiais e financeiros que o agente detinha para a prática da conduta reputada irregular. Caso o órgão ou entidade pública não tenha ofertado os recursos materiais, humanos ou financeiros suficientes – sob o prisma da razoabilidade e da proporcionalidade – para a prática da conduta, o agente que a produz de modo irregular não atua com erro grosseiro.

Tem-se que somente haverá erro grosseiro se o erro – rectius, culpa – for inescusável, vale dizer, aquele que “seria suscetível de ser evitado se o agente houvesse precedido com cautela e prudência razoáveis em um indivíduo de inteligência e conhecimento normais, relativamente ao objeto do negócio jurídico”[2] ou “quando a falsa percepção da realidade é produto da falta de empenho da pessoa em se informar adequadamente antes de praticar o negócio jurídico”. [3] Em outro sentido se o erro é escusável, não pode ser grosseiro, pois “é escusável o erro que não poderia ser percebido por pessoa de diligência normal”.

Assim, sob tais argumentos, se defende que o sistema jurídico administrativo fica adjetivado pelas normas contidas na MP 966, e estruturado para coibir a responsabilização dos agentes públicos que, de boa-fé, na percepção de que buscam satisfazer o interesse público, venham a adotar condutas posteriormente reprovadas pelos órgãos de controle interno ou externo.

Em sentido reverso, nenhuma norma contida na MP evita a responsabilização daquele que, atuando com dolo ou erro grosseiro venha a produzir condutas reprovadas ou reprováveis sob o prisma da responsabilidade, seja de que natureza for.

A MP não se presta a evitar que o agente público desonesto, que atua de má-fé, com grave desídia e fora dos limites da legalidade e dos parâmetros constitucionais seja responsabilizado pessoalmente quando houver justo motivo, inclusive no plano da reparação civil.

De outra sorte, o que parece ser preocupação, a mera invocação, em caráter geral e abstrato, das atenuantes previstas no artigo 3º da MP, como a de que uma certa conduta foi praticada sob circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; ou, em contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas – ou qualquer outra das circunstâncias normativas estabelecidas para a apuração da ocorrência de erro grosseiro – não produz o efeito de afastar imediatamente a responsabilidade.

Em qualquer hipótese, como já ocorria antes da edição da MP 966, será preciso análise de caso concreto, para a comprovação efetiva de que a conduta de agente público se subsume à noção legal de erro grosseiro. O contraste concreto entre as disposições normativas e o real e efetivo motivo do ato, e de sua motivação, é que poderão levar a qualquer conclusão acerca da existência ou não de responsabilidade pessoal do agente.

Neste sentido, não parece correto atribuir à MP a condição de “salvo conduto”.

Por fim, parece claro que a edição da MP não torna sem efeito ou reduz a eficácia das disposições contidas na Lei 13.655/18. A edição da MP não implica revogação de nenhuma das normas da Lindb, que continuam aplicáveis para situações jurídicas não albergadas pela nova norma. Em qualquer hipótese, no contexto da pandemia de Covid-19 ou fora dele, os agentes públicos somente respondem pessoalmente por conduta comissiva ou omissiva maculada por dolo ou erro grosseiro, sendo certo que é constitucionalmente proibida a responsabilização objetiva.

Encerrando, no plano da prevenção da responsabilidade, e do afastamento da alegação de erro grosseiro, é bem importante salientar a importância da motivação de todos os atos praticados pelos agentes públicos.

Somente no plano concreto, após o contraste e análise da motivação dos atos praticados será possível concluir acerca de responsabilidade pessoal do agente púbico nos termos da MP 966.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] Curso de Direito Civil. Vol. 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 328.

[2] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Op. Cit. P. 522.

[3] Ulhoa, Fabio. Ob. Cit. P. 330.

José Anacleto Abduch Santos é advogado, procurador do Estado, mestre e doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal do Paraná.

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Reflexões sobre o uso da telemedicina em tempos de Covid-19

Em dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta a respeito do que uma misteriosa pneumonia, originária da cidade de Wuhan. Desde então, o SARS-CoV-2, vírus por trás da Covid-19, já infectou mais de 4 milhões de pessoas no mundo, vitimando mais de 280 mil, de acordo com números de maio de 2020.

Não há cura conhecida para a Covid-19 e uma vacina viável ao uso demorará, no mais otimista dos cenários, cerca de um ano ou um ano e meio, segundo o diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid), Anthony Fauci. Neil Ferguson salienta que a Covid-19 é a mais séria ameaça à saúde pública por vírus respiratório desde a pandemia de gripe espanhola, em 1918.[1]

Sem terapias eficazes no combate à Covid-19, abre-se espaço às chamadas intervenções não-farmacêuticas ou non-pharmaceutical interventions (NPIs). Tais medidas têm como objetivo a redução das taxas de transmissão do vírus pelo distanciamento social.[2] Segundo o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, a testagem e o isolamento são fundamentais para a quebra da cadeia de transmissão.

Ainda de acordo com Ferguson, o isolamento dos casos e a quarentena domiciliar, juntamente com o distanciamento daqueles na faixa etária de risco, bem como dos portadores de doenças crônicas, reduzirá, consideravelmente, o número de óbitos ao final desta pandemia, seja pela adoção da estratégia de mitigação ou da supressão.[3]

É preciso ficar em casa, portanto. E, neste sentido, inúmeras empresas e escritórios operam em regime de teletrabalho e os governos estaduais vêm restringindo o funcionamento de estabelecimentos comerciais, ressalvados os que sejam relacionados a serviços tomados como essenciais. As instituições de saúde são exemplos destes serviços essenciais e, a exemplo do que se observa na China e na Itália, os médicos são, a cada dia, mais empurrados na direção do centro da pandemia.

Diante do cenário de urgência global, que foi sendo rapidamente desenhado, o Ministério da Saúde baixou a Portaria 467/2020, que dispõe sobre as ações de telemedicina. Além de se amparar na notória emergência em saúde pública de importância nacional, declarada pela Portaria 188/GM/MS/2020, o ato se apoia na Resolução 1.643/2002 e no Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR.

Na telemedicina, a relação médico-paciente é intermediada por meio de instrumentos tecnológicos. Discute-se sua regulamentação no Brasil, há tempos e, neste momento em que há recomendações de se evitar aglomerações e não buscar os prontos socorros dos serviços de saúde, a não ser quando a medida seja indispensável, este tipo de atendimento médico remoto surge como um aliado à quebra da cadeia de contágio do Covid-19.

Acontece que telemedicina é gênero e comporta algumas espécies/modalidades. O Ofício CFM 1.756/2020 – COJUR reconheceu a eticidade, apenas, da utilização das modalidades de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta. De forma breve: na primeira modalidade, fala-se de orientação e encaminhamento de pacientes em isolamento, a segunda trata de monitoramento à distância dos parâmetros de saúde e/ou doença e, na última, diz-se de modalidade que objetiva a troca de informações e opiniões entre médicos, para auxiliar no diagnóstico e na terapia. O reconhecimento mencionado neste parágrafo é, ainda, adstrito ao período que durar a pandemia de Covid-19.

A telemedicina é tratada pelo CFM com certa reserva. Na própria Resolução 1.643/2002, balanceia-se as consequências positivas da telemedicina com os “muito problemas éticos e legais decorrentes de sua utilização”. Uma das preocupações do Conselho com relação a este avanço tecnológico, expressa-se pela assertiva de que o médico só deve emitir sua opinião, recomendação ou mesmo tomar decisões se as informações recebidas forem suficientes para tanto. Ainda, há críticas à telemedicina que tocam a “preocupação com os riscos de uma piora no atendimento, com atrasos ou dificuldades no diagnóstico em razão da distância” e o “enfraquecimento da relação de confiança entre médico e paciente”. Além de tudo isso, o artigo 37 do próprio Código de Ética Médica veda a prescrição de tratamento e outros procedimentos sem o exame direto do paciente, ressalvados os casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada da realização do exame.[4]

Outra modalidade dentro da telemedicina é a teleconsulta, não contemplada pelo ofício do CFM. A propósito e apenas a título de informação, a Resolução 2.227/2018 definia como premissa da teleconsulta “prévio estabelecimento de uma relação presencial entre médico e paciente”, o que parecia mitigar o pesado caráter de antieticidade desta modalidade de telemedicina, já que o contato presencial com o paciente existiria, ainda que de forma espaçada. A resolução em comento foi revogada em 22 de fevereiro de 2019.

Ocorre que, não obstante o constante do referido ofício, a Portaria 467/2020, ao ser abrangente, acabou por causar certa confusão entre especialistas da área e os próprios profissionais. Isto porque o dispositivo menciona atos médicos típicos de consulta, como atendimento pré-clínico, consulta (em sentido estrito) e diagnóstico, inclusive dispondo sobre a possibilidade de emissão de receitas e atestados médicos.

O fato de o ofício do CFM não reconhecer a eticidade da teleconsulta pode gerar certa preocupação por parte dos médicos e médicas quanto à utilização da referida modalidade de telemedicina no relacionamento com o paciente. Uma vez que, em termos práticos, a eticidade da teleconsulta não foi reconhecida pelo CFM e o seu uso poderia, em tese, representar uma falta ética. Naturalmente, os Conselhos Regionais de Medicina fazem eco ao posicionamento do Conselho Federal.

Para fins de ilustração, o CRM-ES, ao disciplinar a telemedicina no Espírito Santo, pela Instrução Normativa CRM-ES 01/2020, admite a possibilidade de estabelecimento de “canais de orientação médica que objetivem esclarecimentos e orientações preventivas relacionadas a pandemia do Covid-19”,[5] sendo que os atos médicos “desenvolvidos nesse enfrentamento que, porventura, sejam objeto de questionamento, serão avaliados pelo CRM, que levará em consideração todo esse contexto”. O Cremesp, por seu turno, ao mesmo tempo em que reconhece a excepcionalidade da situação, reforça a autorização da assistência médica à distância nas condições de teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta.[6] O mesmo tom é observado na Resolução CRM/DF 453/2020.

Não obstante a implicação acima destacada, reconheça-se que o Brasil encontra-se em um verdadeiro estado de exceção, que urge uma resposta, em termos de saúde, eficaz, tempestiva e remota. Decerto, a flexibilização da eticidade da telemedicina deve ser concebida como um apoio aos esforços empreendidos pelas políticas públicas de saúde estabelecidas em prol da saúde dos brasileiros.

A recomendação é que o médico e a médica atentem-se a todas os requisitos das ações de telemedicina trazidos pela portaria, inclusive em teleconsulta, já que não há notícia da flexibilização da eticidade de nenhum dos outros deveres delimitados pelo Código de Ética Médica.

Todo atendimento deverá ser registrado em minucioso prontuário clínico que contenham os dados clínicos pertinentes à boa condução do caso, com preenchimento para cada contato. Atestados e receitas médicas emitidas por meio eletrônico devem passar por validação pelo uso de assinatura eletrônica ou de dados associados à assinatura do médico e a tecnologia utilizada para o contato direto entre o médico e o paciente deve ser capaz de garantir a integridade, a segurança e o sigilo das informações.

Nesse sentido, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), após reunião extraordinária da sua diretoria colegiada, em 31 de março de 2020, firmou o entendimento através da Nota Técnica 7/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO de que: “(…) telessaúde é um procedimento que já tem cobertura obrigatória pelos planos de saúde, uma vez que se trata de uma modalidade de consulta com profissionais de saúde. Dessa forma, não há que se falar em inclusão de procedimento no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, devendo os profissionais observarem as normativas dos Conselhos Profissionais de Saúde e/ou do Ministério da Saúde.” Sendo, portanto, de cobertura obrigatória para seus beneficiários.

Na respectiva reunião, a diretoria colegiada da ANS também aprovou por meio das Notas Técnicas 3/2020/DIRAD-DIDES/DIDES e 4/2020/DIRAD-DIDES/DIDES que, enquanto permanecer a situação de calamidade pública na saúde, não será necessário a alteração e ou adaptação da contratualização entre operadoras e prestadores de serviços para o exercício da telemedicina, mantendo-se as cláusulas já vigentes nesses contratos, em especial na RN 363/2014, desde que exista qualquer outro instrumento (troca de e-mails, mensagem eletrônica através do portal da operadora) que permita identificar que as partes pactuaram as regras para realização deste tipo de atendimento.

Em resumo, as operadoras deverão prever um desses meios de comunicação com o prestador:

  • “A identificação dos serviços que podem ser prestados, por aquele determinado prestador, por intermédio do tipo de atendimento telessaúde;
  • Os valores que remunerarão os serviços prestados neste tipo de atendimento; e
  • Os ritos a serem observados para faturamento e pagamento destes serviços.”

Ao final da referida nota técnica, a autarquia determina que essa negociação permita a manifestação de vontade de ambas as partes e informa que essa medida irá perdurar enquanto o país estiver em situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), “sendo certo que se os atendimentos por meio de telessaúde seguirem autorizados pela legislação e regulação nacional após este período, será necessário ajustar os instrumentos contratuais entre operadoras e prestadores de serviços de saúde”.

A flexibilização da contratualização, adotada pela ANS, é fundamental em tempos de uma pandemia, mas dependerá, sem sombra de dúvidas da flexibilização de inúmeras questões contratuais dessa conturbada relação entre operadoras de planos de saúde e prestadores de serviço, além de uma mudança de hábitos da própria relação médico x paciente, a fim de compatibilizar a telemedicina com o atual momento de isolamento social.

Nosso escritório está preparado para auxiliar nossos clientes e parceiros nesse novo estágio da contratualização no mercado de saúde suplementar, sobretudo no que for necessário a adequação dos stakeholders à regulamentação e ao estado de calamidade pública.

JurisHealth é um esforço articulado entre profissionais da Saúde, do Direito e da Comunicação, com o objetivo de melhorar a compreensão em torno de temas relevantes do setor de saúde. É uma iniciativa que visa fornecer referências técnicas e analíticas a respeito do sistema de saúde suplementar do Brasil e, assim, prover elementos consistentes para avaliar controvérsias levadas aos tribunais. Saiba mais em www.jurishealth.com.br

Abner Brandão Carvalho é advogado.