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Opinião: A perícia no caso Bolsonaro x Moro

A controvérsia que mobilizou o país merece uma análise técnico‑pericial criteriosa tanto das mensagens contidas no celular de Sérgio Moro quanto das gravações audiovisuais da reunião ministerial de 22 de abril. Afinal, a eventual comprovação dos crimes atribuídos ao presidente da República impacta diretamente nos rumos da nação.

Ocorre que o trabalho pericial até aqui desempenhado não corresponde ao protagonismo esperado na elucidação das graves imputações de ambos os lados, na medida em que há flagrante atropelo da lei. De saída, nunca existiu o necessário controle da cadeia de custódia da prova, assim definido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) como “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte” (artigo 158-A). Lamentável. Preservar a integridade do objeto de prova é fundamental para garantir a idoneidade da perícia.

Nesse sentido, tanto o equipamento que contiver a gravação audiovisual relativa à reunião ministerial havida em abril quanto o celular de Moro exigem os mesmos cuidados na coleta, preservação da integridade dos dados, extração de informações patentes e recuperação de dados eventualmente “apagados”, por intermédio de ferramentas distintas para cada qual dos exames.

Há informação de que o arquivo audiovisual foi fornecido por meio de um HD externo, o que certamente indica que não se trata do arquivo original. Se isso for verdade, trata-se de grave equívoco. O correto, necessário e imprescindível é que esse arquivo fosse obtido mediante extração forense (do sistema de gravação que o gerou, ou dos arquivos originais), gerando-se a cópia e criando-se o hashcode, assegurando a integralidade e a integridade do arquivo, fornecendo-se cópia do auto de coleta, no qual deve ser consignado o respectivo código gerado (hash). Isso dificultaria, inclusive, que ocorresse edição do arquivo, pois, se ocorreu, e se foi bem feita, será muito difícil constatar.

Nesse particular, consta da investigação que o Laudo nº 1.242/2020 focou na transcrição dos áudios sem que tenha sido concluída a averiguação preliminar sobre a eventual edição do material; restou consignado que tal análise será objeto de laudo diverso.

Cabe o alerta, entretanto, de que o segundo exame não deve ser relegado; sabidamente, o arquivo de vídeo coletado não possui time stamp (marcador de data e horário). Essa peculiaridade, sob a ótica pericial, exige que seja percorrida e descartada a hipótese de eventual supressão de trecho(s). Aliás, bastaria que tal supressão tivesse sido conduzida por alguém tecnicamente capacitado, fazendo-o de maneira a restabelecer os atributos originais do arquivo, para mascarar a eventual eliminação.

No caso do celular de Moro, o procedimento de coleta também se mostrou inadequado, na medida em que se permitiu ao próprio investigado que selecionasse os conteúdos que poderiam servir à investigação, a despeito de outras conversas que pudessem interessar à Justiça, inclusive aquelas eventualmente apagadas. Por sorte, mesmo arquivos apagados podem ser recuperados, uma vez que meros fragmentos podem ser reconstruídos ou “esculpidos” (carving files). Vale destacar ainda que, tecnicamente, recuperar arquivo apagado é muito mais fácil do que se comprovar que houve edição, pois há ferramentas muito eficazes para encobrir edições e modificações de certos atributos de arquivos.

Não cabe ao investigado decidir o que interessa à investigação
Nesse contexto, marcante contradição no comportamento do ex‑ministro merece destaque. Em sua oitiva, Moro disponibilizou o aparelho celular tão-somente “para extração das mensagens trocadas via WhatsApp com Bolsonaro e Carla Zambelli”. E por que não as demais mensagens? Será mesmo que a controvérsia se resume a poucos diálogos? Ora, desde quando o investigado decide aquilo que é do interesse da investigação? Na verdade, nunca decidiu. Bem por isso, quando chamado a se manifestar sobre a conveniência de entrega parcial, pelo Executivo, dos vídeos da reunião, Moro pontuou que escolher trechos “que são ou não importantes para investigação é tarefa que não pode ficar a cargo exclusivo do investigado”, porquanto isso não garantiria a integridade do elemento de prova fornecido. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço…

A cereja do bolo no tocante à inconsistência pericial reside no fato de que o Pacote Anticrime, de iniciativa do então ministro da Justiça Sérgio Moro, sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro, disciplinou rigorosamente a questão relativa à cadeia de custódia da prova, preconizando tudo aquilo que é obrigatório e não está sendo feito, ironicamente, no caso concreto.

Ocorre que o STF sempre destacou a relevância pericial para o fiel esclarecimento dos fatos. Isso porque o decano e relator do inquérito em andamento, ministro Celso de Mello, ao requisitar as gravações, consignou expressamente que “as autoridades destinatárias de tais ofícios deverão preservar a integridade do conteúdo de referida gravação ambiental (com sinais de áudio e vídeo), em ordem a impedir que os elementos nela contidos possam ser alterados, modificados ou, até mesmo, suprimidos, eis que mencionada gravação constitui material probatório destinado a instruir, a pedido do senhor procurador-geral da República, procedimento de natureza criminal”.

Nessa toada, obrigatório ter em mente que ao menor sinal de adulteração dos arquivos periciados será imprescindível e urgente nova diligência pericial, agora com observância estrita da cadeia de custódia da prova, que tenha por objeto o equipamento utilizado na gravação da reunião ministerial ou o celular do ex-ministro, fazendo-se a respectiva extração forense do arquivo desejado. Somente dessa forma será preservada a integralidade (todo o arquivo) e a integridade (na forma original) dos arquivos, de maneira não só a garantir que não tenham sido anteriormente modificados ao exame, como também desmascarando eventuais adulterações. Tudo em prol da necessária e cabal apuração dos fatos.

 é sócio-fundador do escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (GV-LAW).

 é sócio-fundador do Dynamics Perícias, perito criminal aposentado, professor de Criminalística da Academia de Polícia Civil de São Paulo e especialista em compliance e governança.

 é advogado associado ao escritório Damiani Sociedade de Advogados e especialista em Compliance.

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Anderson Almeida: O direito ao silêncio do réu

O famigerado direito ao silêncio, positivado no artigo 5º, LXIII, da Carta Maior [1] apresenta-se como uma das decorrências do princípio nemo tenetur se detegere. Nas palavras de Maria Elizabeth Queijo [2], o aludido princípio “tem sido considerado direito fundamental do cidadão e, mais especificamente, do acusado. Cuida-se do direito à não auto-incriminação, que assegura esfera de liberdade ao indivíduo, oponível ao Estado, que não se resume ao direito ao silêncio”.

Superada a breve elucidação contextual do princípio preconizado pelo artigo 8º, II, “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos [3], surge o seguinte questionamento: a conduta do réu de opor-se fornecer ao juízo seus dados bancários existentes no exterior constitui crime de desobediência?

Aury Lopes Jr., diga-se, de maneira pontualíssima, leciona que o “direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, esculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo a qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando interrogado” [4] (grifo do autor).

Na mesma esteira, Alberto Zacharias Toron [5], de modo clínico, realça que a guarita contra a autoincriminação significa, num todo, “a afirmação de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma”.

Em suma, o direito à não autoincriminação é um direito individual, humano e fundamental, de observância inescusável no processo penal. Não é exequível compelir o ser humano a agir contra sua própria vontade, o que, caso acontecesse na prática, violaria por completo a integridade mental e moral do réu.

Na hipótese, a negativa do réu em fornecer ao juízo seus dados bancários estabelecidos no exterior, não constitui a conduta típica insculpida no artigo 330 do Código Penal, haja vista que, se assim fosse, estar-se-ia transgredindo a natureza humana e, portanto, a dignidade do acusado, transferindo-o o ônus que compete integralmente ao Estado-acusação, subvertendo a lógica do processo penal acusatório.

Ora, forçar o acusado a propiciar ao juízo seus dados sigilosos abre indiscutível margem para que se origine múltiplas consequências negativas, haja vista que, nesta etapa, o polo passivo da ação penal pode optar por manter-se em silêncio, confessar, autoincriminar-se ou não e, por fim, até mesmo mentir, com fundamento no princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais.

Simplificando, ao preferir permanecer em silêncio e não se autoincriminar, o réu estará agindo no exercício regular de um cristalino direito constitucional, logo, não poderá o magistrado imputar ao acusado a prática do delito de desobediência, com fundamento no artigo 23, inciso III, do Código Penal [6].

Ademais, a Lei Processual também efetiva o direito ao silêncio em seu artigo 186 [7], tonificando que este não será manipulado juridicamente em desfavor do réu. No mesmo sentido é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a exemplo dos seguintes precedentes: HC 79.589/DF [8], HC 73.035/DF [9], HC 79.244/DF [10], HC 101.909/MG [11] e HC 79.812/SP [11].

Sem mais delongas, é cristalino que o direito ao silêncio denota-se elemento inexorável que compõe a autodefesa do réu, decorrente do supracitado princípio nemo tenetur se detegere, que possui esteio legal tanto na Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA) como no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU).

Por derradeiro, é cediço que ao atribuir ao réu a prática do delito capitulado no artigo 330 do Código Penal, na hipótese de opor-se apresentar seus dados bancários estabelecidos no exterior, o magistrado estaria barganhando sua competência de autoridade no procedimento criminal, trocando-a, lamentavelmente, pela conveniência cinzelada no ranço inculcado por aquilo que mais se teme no cenário processual penal contemporâneo, isto é, o autoritarismo.

 


[2] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003.

[3] 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm

[4] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 446.

[5] TORON, Alberto Zacharias. Habeas Corpus e o Controle do Devido Processo Legal: Questões Controvertidas e de Processamento do Writ. 2ª ed., revista atualizada e ampliada. Revista dos Tribunais, 2018, p. 64.

[7] Artigo 186  Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm