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Por desvio produtivo, TJ-GO condena banco a indenizar cliente

O tempo é um valor e um bem relevante passível de proteção jurídica. Por isso, fazer com que alguém o desperdice de forma injusta e ilegítima, na seara consumerista, gera indenização. 

Para magistrado, tempo é um bem passível de proteção jurídica
123RF

O entendimento é da 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás, que condenou a massa falida do Banco Cruzeiro do Sul a pagar R$ 5 mil a um consumidor por cobrança indevida. O dano moral foi reconhecido com base na Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, conceito criado pelo advogado capixaba Marcos Dessaune. 

“O banco apelado não prestou serviços a contento, impondo-se o reconhecimento de que a via crucis enfrentada pelo apelante, em busca de solução de algo que não deu causa, não constitui mero dissabor, ensejando, portanto, a reparação por dano moral, conquanto capaz de causar impaciência, angústia, desgaste físico, sensação de cansaço e irritação, perda de tempo injustificada, impressões estas que, indiscutivelmente, provocam um sofrimento íntimo além dos meros aborrecimentos próprios do cotidiano”, afirma a decisão, proferida na última quinta-feira (21/5). 

O relator do caso, desembargador Marcus da Costa Ferreira, argumentou que a doutrina, durante anos, não cuidou de perceber a importância do tempo como um bem jurídico. Mas nos últimos anos, diz, este panorama se modificou. 

“As exigências da contemporaneidade têm nos defrontado com situações de agressão inequívoca à livre disposição e uso do nosso tempo livre, em favor do interesse econômico ou da mera conveniência negocial de um terceiro”, afirma o magistrado. 

Segundo os autos, mesmo depois do consumidor quitar seu empréstimo, ele teve descontado, em folha de pagamento, duas parcelas de uma dívida bancária. O autor relata que buscou a instituição de forma administrativa para que os valores fossem restituídos. Mesmo depois de recorrer ao Procon, o reclamante não obteve resultado. 

Clique aqui para ler a decisão

Processo 5058755.88.2018.8.09.0093

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Opinião: O cumprimento da pena antes do trânsito em julgado

Por um lado, a presunção da inocência é uma garantia individual que alberga o suposto autor de um ilícito penal. Só  é permitido considerá-lo culpado depois do trânsito julgado. Por outro lado, as vultosas quantidades de recursos postergam o fim do processo e em razão disso parece não promover efetividade  aplicação da lei penal.

Essa problemática foi recentemente enfrentada pelo supremo. Todavia, parece também estar distante do consenso. Analisar os posicionamentos antagônicos dos senhores ministros mostra-se imperioso para uma reflexão sobre a temática. Desta forma, serão trazidos os principais argumentos dos senhores Ministros do supremo Tribunal Federal na ocasião do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44.

O Supremo tribunal Federal posicionou-se favorável à execução provisória da pena[2]. Esse entendimento vem gerando grande controvérsia jurisprudencial. Em que pese não tenha força vinculante a decisão incentivou os tribunais de todo o país a passarem a adotar idêntico posicionamento: mitigar o princípio constitucional da presunção de inocência e ignorar o disposto no artigo 283 do CPP.

A pena de prisão, dada a sua severidade, deve ser utilizada como último recurso para a punição do condenado. Todavia, extraordinariamente a prisão precautelar e a cautelar podem se mostrar necessárias desde que presentes certos pressupostos tais como: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, nos termos do artigo 312 do código de processo penal.

Mesmos aqueles que são condenados o encarceramento deve a última medida. Isto é, como bem preconiza a teoria do “Direito Penal Mínimo”, também denominada de Teoria da Intervenção Mínima, as penas alternativas ou restritivas de direito mostram-se mais eficazes em crimes tidos como de menor ofensividade. Desta forma, o cárcere somente deve ser destinado aos indivíduos de alta periculosidade e que representam uma ameaça à paz pública e à integridade física dos cidadãos.

Valiosa pesquisa empírica[3] nos autoriza a reconhecer que a Justiça, a Polícia Judiciária e o próprio Ministério Público são instituições que respondem amplamente pelo atraso do procedimento criminal e com o prolongamento por demais as prisões pré-processuais.

Outro ponto importante a ser destacado é a fragilidade das fundamentações que buscam sustentar a necessidade das prisões provisórias. Estudos mais detalhados demostram que  A grande maioria das impetrações de HC atacam a deficiência ou falta da fundamentação da prisão cautelar[4]. Desta forma, a mera referência ao art. 312 do CPP. Não tem o condão de justificar uma medida tão radical como a prisão pré processual.

Pesquisas indicam também que 41% da população carcerária brasileira é compostas por presos provisórios.[5]. Esses suportam traumas irreparáveis. O fato é que esses números podem aumentar mais ainda em razão do recente entendimento do STF que autoriza a antecipação da execução da pena antes do trânsito em julgado.

Outras pesquisas no Rio de Janeiro[6] apontam a triste  trajetória dos presos até o final do processo. Ela relata como a prisão provisória é utilizada não apenas de forma abusiva, mas também ilegal. Para mais de 50% dos casos os juízes mantiveram os réus presos durante o processo e no final essas pessoas foram colocadas em liberdade, ou foram absolvidas.

Na prática, prolongar a prisão provisória por um período demasiado é na melhor das hipóteses uma forma disfarçada de antecipar a execução da pena se o réu chegar a ser condenado ou pior ainda, uma medida irreparável de se promover a injustiça se no final do processo o réu restar absolvido.

Desta forma, é preciso promover o diálogo sobre a possibilidade de se promover a execução antecipada da pena, mas também sobre os efeitos deletérios de uma prisão provisória excessivamente prolongada.

Todavia, a partir desse momento passaremos a promover considerações apenas acerca dos votos dos ministros do supremo que entendem ser descabida a antecipação da execução da pena antes do trânsito em julgado. Assim é o entendimentos dos seguintes ministros:

Ministra Rosa Weber, Ministro Dias Toffoli , Ministro Lewandowski, Ministro Celso de Mello.[7]

Rosa Weber, não vê como não promover uma interpretação conforme a constituição e consagrar o princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência. Desta forma, não há como se promover a execução antecipada da pena. Neste sentido, André Estefam [8]  lembra que o ministro Celso de Melo esclareceu que : “Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita”

Dias Toffoli por sua vez  entende que a Constituição Federal exige que haja a certeza da culpa para fim de aplicação da pena, e não só sua probabilidade. Segundo Fernando Capez[9] todos se presumem inocentes, cabe ao Estado provar sua culpa primeir e, só então, exercer seu jus puniendi.

Ministro Lewandowski também faz o apelo à norma constitucional e assevera  : “Não vejo como fazer uma interpretação contrária a esse dispositivo tão taxativo” o artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal é muito claro quando estabelece que a presunção de inocência permanece até trânsito em julgado.

Ministro Celso de Mello esclarece que  a presunção de inocência é conquista histórica dos cidadãos na luta contra a opressão do Estado. Trata-se de valor fundamental que tem estreita relação com o princípio da dignidade humana.

Quando ocorre um crime nasce para o Estado o direito de punir. O Direito Penal tem a pena como uma resposta proporcional a conduta delituosa do agente. As Teorias da pena, que são opiniões científicas sobre a pena, buscam justificá-las.

A pena se justifica, ora pela retribuição, ora pela prevenção: um estímulo negativo para que as pessoas se sintam desestimuladas a delinquir. Nesse sentido, a pena tem como uma das finalidades o firme propósitos de lembrar a lei[10]. É deixar claro que existe um regramento. Assim a pena seria uma garantia pública[11] uma maneira de garantir a lei. O direito penal faz previsão de condutas proibitivas[12] e a pena serve para trazer uma forma de proteção para a vítima.

 É inegável que a possibilidade de interposição de uma infinidade de recursos pode levar a uma sensação de impunidade. O fato é que o crime ocorreu, todavia o processo se estende quase que ad eterno e aquele que dispõe de recursos não apenas como um meio de defesa e inconformismo, mas um instrumento meramente protelatório.  

O Ministro Edson Fachin, o Ministro Roberto Barroso, o Ministro Teori Zavascki, o Ministro Luiz Fux, o Ministro Gilmar Mendes e a Ministra Cármen Lúcia. Firmam o entendimento que é possível o cumprimento antecipado da pena antes do trânsito em julgado.

O Ministro Edson Fachin entende que o início da execução criminal é coerente com a Constituição Federal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo quando for conferido efeito suspensivo a eventual recurso a cortes superiores.

O Ministro Roberto Barroso entende como legítima a execução provisória da pena, entretanto após a decisão do segundo grau. Esclarece: “A Constituição Federal abriga valores contrapostos, que entram em tensão, como o direito à liberdade e a pretensão punitiva do estado”. Para ele a presunção de inocência é princípio, e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios.

O Ministro Teori Zavasck entende por sua vez que  o princípio da presunção da inocência não impede o cumprimento da pena. Ele assevera: “a dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país” Ele também destaca que

se de um lado a presunção da inocência e as demais garantias individuais,  do outro há a necessidade de não se esvaziar o sentido público de justiça. Asseverou ainda:“O processo penal deve ser minimamente capaz de garantir a sua finalidade última de pacificação social”

O Ministro Luiz Fux entende que há necessidade de se dar efetividade à Justiça: “Estamos tão preocupados com o direito fundamental do acusado que nos esquecemos do direito fundamental da sociedade, que tem a prerrogativa de ver aplicada sua ordem penal”

O Ministro Gilmar Mendes  entende que a execução da pena com decisão de segundo grau não deve ser considerada como violadora do princípio da presunção de inocência. Ele esclarece que:“Há diferença entre investigado, denunciado, condenado e condenado em segundo grau”. Assim, o condenado em segundo grau pode cumprir a pena antecipadamente.

A Ministra Cármen Lúcia por sua banda entende que a prisão do condenado não tem aparência de arbítrio. Ela esclarece que “A comunidade quer uma resposta, e quer obtê-la com uma duração razoável do processo” Para ela de um lado há a presunção de inocência, mas do outro há a necessidade de preservação do sistema e de sua confiabilidade..

Quando o presente artigo foi concluído, por maioria, o Plenário do Supremo Tribunal Federal entendia que o artigo 283 do Código de Processo Penal não impederia o início da execução da pena após condenação em segunda instância.

Com a inovação interpretativa a prisão pena que por definição seria aquela em que o condenado deve suportar depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória deveria ter um novo conceito.

Na nossa singela opinião lamentável tal retrocesso. Em um Estado democrático os direitos e garantias constitucionais não gozam de imutabilidade.

Todavia, no momento da revisão do presente texto constatamos que o Supremo Tribunal Federal, por intermédio da ADC 54 voltou atrás e mudou o entendimento acerca do que configuraria uma presunção de inocência mitigada.

Concluímos que a mudança de entendimento foi uma atitude institucional acertada, posto que seja na literalidade do texto constitucional, seja na interpretação devem caminhar para um alargamento de proteção e não para uma restrição.

Por derradeiro e oportuno, é importante consignar que a prisão em flagrante delito, a prisão temporária e a prisão preventiva continuam sendo espécies de prisão cautelar ou precautelar. Nada mudaram acerca das suas necessidades e conveniências.

 


2] Habeas Corpus (HC) 126292

[3] SANTOS, Rogério Dutra (coord.). Excesso de Prisão Provisória no Brasil: um estudo empírico sobre a duração da prisão nos crimes de furto, roubo e tráfico (Bahia e Santa Catarina, 2008-2012). Série Pensando o Direito nº 54. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos, IPEA, 2015, p. 57 (Capítulo 2).

[6] INSTITUTO SOU DA PAZ. Monitorando a aplicação da Lei das Cautelares e o uso da prisão provisória nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Instituto Sou da Paz, 2014 Disponível em:<http://www.soudapaz.org/upload/pdf/pesquisa_lei_das_cautelares_comparativo_sp_e_rj.pdf>.

[8] Estefam, André

Direito penal esquematizado®: parte geral / André Estefam e Victor Eduardo Rios Gonçalves; coordenador Pedro Lenza. 5. ed. São Paulo:

Saraiva, 2016. (Coleção esquematizado®)

[10] GROS, Frédéric. Os quatro centros de sentido da pena. Capítulo 1. Punir é recordar a lei. In: GARAPON, Antoine. GROS, Frédéric. PECH, Thierry. Punir em democracia. E a justiça será. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.pág. 33

 é servidor público, bacharel em Direito e graduado em Gestão e Educação para o Trânsito, pós-graduado em Ciências do Trânsito.

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Covid-19 e proteção de dados pessoais: o antes, o agora e o depois

O surgimento da pandemia do Covid-19 traz ao mundo contemporâneo desafio que não havia sido enfrentada nesse século. A necessidade de solidariedade e das incessantes pesquisas científicas ressaltam, de modo muito claro, a importância desses valores que vêm sendo tão atacados no Brasil dos últimos tempos.

Da experiência colhida de países que estão lidando com a doença já desde momento anterior ao Brasil, se destaca a necessidade de isolamento social e de testagem massiva, justamente para evitar que pessoas doentes contaminem outras até então saudáveis.

Acontece que, ao contrário de outros momentos em que pandemias assolaram o mundo, a capacidade de vigilância e controle hoje possíveis sobre as pessoas se encontra em patamar nunca visto.

Vive-se hoje, como afirma Shoshana Zuboff, na sociedade do capitalismo de vigilância que, nas palavras da autora “se qualifica como uma nova lógica de acumulação, com uma nova política e relações sociais que substituem os contratos, o Estado de direito e a confiança social pela soberania do Big Other”. O mundo, especialmente ao longo da última década, foi moldado para extrair dados dos usuários da Internet em escala massiva. Estes dados, reunidos e processados através do que se convencionou chamar de Big Data, que permite a obtenção de informações e o poder de influenciar condutas, em escalas até o presente momento ainda não inteiramente esclarecidas.

Assim, os dados pessoais são transformados em importante ativo comercial das grandes empresas de tecnologia do mundo, com o claro objetivo de obtenção de capital, além de outros até o momento não tão claros assim.

Há imensa disparidade informacional entre os que fornecem os dados e aqueles que deles se apropriam. Embora muitos sujeitos, em abstrato, indiquem se preocupar com a proteção de dados pessoais, na prática essa preocupação muitas vezes não se reflete, por razões das mais diversas, incluso aí o desconhecimento sobre a real extensão de que dados estão sendo coletados ou para que fim serão utilizados. Este momento do Covid-19 tem servido para jogar algumas luzes sobre essas questões.

Correm as notícias das mais diversas práticas de monitoramento para tentar identificar e isolar os infectados com o novo vírus, realizadas em diversos países. Na China, ponto inicial da pandemia, são utilizados drones, tecnologia de reconhecimento facial, scanners infravermelhos, além da implementação de aplicativo para classificar as pessoas de acordo com o risco de contágio, sendo tal informação transmitida às autoridades competentes.

A Coreia do Sul, por sua vez, rastreia os celulares dos usuários para criar um mapa que fica disponível publicamente para que todos cidadãos possam consultar por onde passaram as pessoas infectadas. Diversas outras medidas de monitoramento, em maior ou menor grau das acima narradas, já foram adotadas também no Irã, Israel, Taiwan, Áustria, Polônia, Bélgica, Alemanha e Itália.

Para Byung-Chul Han, China e Coreia do Sul, por exemplo, adotaram práticas de vigilância em geral mais pesadas e com maior aceitação por parte da população do que suas contrapartes ocidentais. Para o autor, isso se explica, em parte, por conta de que, ao contrário da cultura ocidental, a oriental seria mais voltada para o coletivo do que para o individual, sem que isso necessariamente indique se tratar de uma cultura com menor grau de egoísmo.

No Brasil, bem recentemente, uma empresa nacional, que trabalha com geolocalização, e da qual provavelmente a maior parte dos leitores jamais ouviu falar, se ofereceu para auxiliar no monitoramento durante a pandemia e já está sendo utilizada pela prefeitura de Recife com tal intuito. A referida empresa declarou que atualmente 60 milhões de smartphones carregam algum app com seu algoritmo, que os permite dizer onde cada uma dessas pessoas está, com uma margem de erro de dois a três metros.

Também no Brasil, o Governo Federal já anunciou seu interesse na adoção de medidas de monitoramento de celulares, similares às realizadas na China, o que encontra, inclusive, alguns óbices legais. Por enquanto, de acordo com o SindiTelebrasil (Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal), dentro de cerca de duas semanas deverá começar o repasse de dados de quase 220 milhões de aparelhos celulares, “com um dia de atraso de modo aglomerado, estatístico e anonimizado, a partir da coleta de informações por quase cem mil antenas”.

Estes exemplos acabam por remeter ao primeiro ponto: o antes. A pandemia do Covid-19 ajuda a mostrar ao mundo o que já vem sendo analisado por diversos pesquisadores: as dimensões de vigilância e monitoramento a que as pessoas estão sendo (real ou potencialmente) submetidas, principalmente a partir dos seus smartphones, ultrapassa em muito o que normalmente são capazes de imaginar quando clicam em um “aceito os termos de uso e privacidade” de um aplicativo qualquer.

É verdade que agora, ou seja, no durante, boa parte da população coloca essa preocupação em segundo lugar. A luta coletiva pela saúde, faz com que o comportamento de aceitação quanto ao monitoramento e vigilância se torne mais forte. Medidas como as acima elencadas, que são extremas, soam como medidas razoáveis em um tempo de anormalidade.

No Brasil a lei que se destina à regulamentação da matéria de proteção de dados pessoais é a Lei n. 13.709/2018, conhecida Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Importante destacar que a referida Lei se encontra em período de vacatio legis, porém, a despeito de ainda não estar em vigor, será utilizada como parâmetro para algumas análises, especialmente por se considerar que as consequências dos tratamentos de dados realizados agora impactarão em reflexos para o futuro.

Na LGPD os dados pessoais relacionados à saúde, que estão sendo coletados para o combate à pandemia, são classificados como dados pessoais sensíveis.

Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:

(…)

II – dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural; (grifo nosso)

Estes dados pessoais sensíveis, nos termos dos arts. 11 a 13 da LGPD, recebem grau ainda maior de proteção do que os dados pessoais que não se encaixam em tal categoria. Isto se dá justamente por conta da natureza personalíssima ou de maior potencial de risco ao seu titular se utilizados de maneira indevida. Informações sobre a saúde, opinião política e orientação religiosa de um indivíduo, apenas para exemplificar algumas das elencadas, podem ser utilizadas de forma preconceituosa e excludente.

Como adverte Yuval Harari, o esforço na coleta de dados para o combate à pandemia pode levar a novos níveis de vigilância. Se antes um simples movimento do dedo, dando um like, poderia servir identificar o tipo de preferência do sujeito (over the skin), pode ser que se pretenda agora identificar até mesmo a temperatura e pressão sanguínea do sujeito a partir do próprio dedo (under the skin), o que acabaria por inaugurar um padrão ainda mais agressivo de monitoramento, conhecimento e controle.

O entendimento sobre a necessidade de proteção desses dados pessoais sensíveis nos leva ao último ponto desse texto: o depois. É que esta crise irá passar, mas o que for feito ao longo dela pode ter reflexos bem mais duradouros. Sobre tal, vamos nos ater a dois problemas.

O primeiro deles é que a coleta desses dados pessoais, ainda que se realize sua anonimização, o transformando em dado anonimizado, que, nos termos da LGPD, “é dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento”, as garantias de tal proteção têm se mostrado falhas. Os processos de anonimização, do modo como são feitos atualmente, acabam por permitir em diversos casos que se reidentifique o usuário de quem os dados foram extraídos. Então, mesmo tratamentos feitos de forma anonimizada, buscando preservar a privacidade e a proteção dos dados pessoais dos sujeitos, para o combate à pandemia, podem vir posteriormente a serem vinculadas aos seus respectivos titulares.

O segundo problema, talvez ainda maior, diz respeito ao que será feito, depois que a crise acabar, com esses sistemas de tratamento de dados montados em todo o mundo para combater a pandemia.

Não pode essa grave crise mundial servir como justificativa para montar um sistema de vigilância e monitoramento, por parte de empresas e governos, ainda mais severo sobre os cidadãos. A preocupação sobre como se dará o uso desses dados e dos seus sistemas de tratamento no futuro se agrava, principalmente, quando se pensa em governos que tendam ao autoritarismo. Esta excepcional capacidade de monitoramento, somada a poderes especiais que têm sido dados a governantes em alguns países, podem, inclusive, trazer prejuízo à própria democracia.

Cidadãos extremamente monitorados podem encontrar dificuldades até mesmo para a liberdade de expressão e para a manutenção da vida privada, direito que, como o próprio nome diz, é um dos pilares da ideia de Direito Privado. Uma “polícia do pensamento”, muito mais eficaz do que aquela descrita por George Orwell, em sua clássica obra “1984”, é realidade já palpável. Que com isso em mente, as escolhas do momento sejam feitas com sabedoria, para que após a pandemia ainda tenhamos um mundo em que gostaríamos de viver.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


ZUBOFF, Shoshana. Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação. In. Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. Tradução Heloísa Cardoso Mourão. 1.ed. São Paulo. Boitempo, 2018, p.49.

Ehrhardt Júnior, MARCOS; SILVA, Gabriela Buarque Pereira. Privacidade e proteção de dados pessoais durante a pandemia da COVID-19. Disponível em <https://direitocivilbrasileiro.jusbrasil.com.br/artigos/824478175/privacidade-e-protecao-de-dados-pessoais-durante-a-pandemia-da-covid-19>. Acesso em 31 mar 2020.

MOURA, Raíssa; FERRAZ, Lara. Meios de Controle à Pandemia da COVID-19 e a Inviolabilidade da Privacidade. Disponível em: <https://content.inloco.com.br/hubfs/Estudos%20-%20Conte%C3%BAdo/Coronavirus/Meios%20de%20controle%20a%CC%80%20pandemia%20da%20COVID-19%20e%20a%20inviolabilidade%20da%20privacidade.pdf?hsCtaTracking=ad1577ba-e5bc-4ff3-afdd-54a896891088%7C07ab4d6b-53d3-4a06-9f43-fb43621df88f>. Acesso em 31 mar. 2020.

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BIEBER, Florian. Authoritarianism in the Time of the Coronavirus. In: Foreign Police Magazine. Disponível em <https://foreignpolicy.com/2020/03/30/authoritarianism-coronavirus-lockdown-pandemic-populism/>. Acesso em 31 mar. 2020.

 é advogado, doutor em Direito pela UFBA. Professor de Direito Civil na UFBA e Faculdade Baiana de Direito.