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Caio Figueroa: A impossibilidade de reequilíbrio contratual

Se a pandemia deixará registro nos livros de história, não menos diferente será nas páginas dos contratos de concessão. Hoje já não se discute a natureza do evento em si, mas sim como preservar esses contratos diante do agora e do “novo normal”. Cada setor terá um impacto, mas escrevo aos casos críticos.

As dificuldades de curto prazo estão associadas à capacidade do Estado de recompor o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, cujo risco lhe tenha sido atribuído, seguido da impossibilidade de se mensurar a totalidade dos seus impactos. Já no cenário pós-pandemia, os obstáculos resultarão da nova realidade que se apresentará, cujas premissas de custos ou demanda que embasaram a licitação jamais poderão ser retomadas [1].

Nessa perspectiva, muitos contratos não poderão ser reequilibrados segundo as premissas originais, restando a extinção antecipada do vínculo como solução. Mas se o reequilíbrio se mostra dificultoso, muito mais tormentosa será a saída pela extinção antecipada, pois exigirá a compensação desses mesmos valores, independente da modalidade considerada (encampação, caducidade, rescisão ou relicitação) além da indenização pelos investimentos não amortizados. São extremos que travam o gestor.

Diversos projetos de lei surgiram para contornar os cenários tradicionais de reequilíbrio-extinção. Entre todos, destaco o PL 2.139, que traz significativas contribuições para uma disciplina da repactuação dos contratos públicos, marcada pela consensualidade e reconhecimento de igualdade entre as partes, além de dispor sobre soluções cautelares de reequilíbrio.

O debate sobre sua pertinência neste momento não deve macular a relevância de propostas efetivamente inovadoras no ordenamento como aquela do artigo 6º, §2º, ao admitir a repactuação da equação econômico-financeira e a alteração da matriz de riscos. Uma blasfêmia para quem se apega à supremacia da licitação, e um alento para quem busca preservar as relações jurídicas.

Sem entrar nesse mérito, fato é que a proposta representa um importante avanço em matéria de mutabilidade, mas talvez, ainda insuficiente para lidar com o novo normal. O compartilhamento do risco de demanda, por exemplo, pode não ter qualquer efeito prático caso a demanda pós-pandemia não seja suficiente à viabilidade da concessão. O desenho de uma nova equação também não diz muito diante de contratos mais maduros, os quais se limitam olhar apenas para tarifas, prazo e a taxa de retorno.

O Congresso não pode desperdiçar a oportunidade para aprofundar o dispositivo, possibilitando a alteração das premissas que antecedem a própria equação econômico-financeira. É sobre essas alterações que quero chamar atenção, considerando o modelo regulatório que se pretende imprimir na relação, como também o próprio regime contratual. São medidas aparentemente não contempladas no projeto de lei.

Primeiro, o modelo regulatório não se confunde com o sistema de equilíbrio econômico-financeiro. Esse último reflete como serão calculadas ou procedidas as compensações por eventos de desequilíbrio. O modelo regulatório consiste no referencial de equilíbrio do contrato [2]. Distinguem-se entre regulação discricionária, cujos preços são definidos a partir dos custos da empresa e regulação por contrato, em que os preços independem dos custos do serviço.

A principal diferença do primeiro em relação ao segundo modelo consiste na ocorrência de revisões periódicas que visam alinhar o preço aos custos, de maneira cíclica. Grande parte das concessões nacionais estão pautadas no modelo de regulação por contrato, cujos preços são definidos no leilão. Exceções estão presentes nos contratos de distribuição de energia elétrica e saneamento.

Nesses casos, as premissas do contrato original são atualizadas a cada ciclo revisional, inclusive a taxa de retorno, sem que se discuta se as variações são riscos alocados a uma ou outra parte. Os riscos do concessionário estão dentro da margem de alcançar ou não a receita estimada no período, até a nova revisão periódica.

A flexibilidade é a principal vantagem desse modelo, permitindo adaptação dos contratos ao cenário econômico vivenciado. Por essa característica, o modelo é recomendado especialmente em setores mais dinâmicos (evolução tecnológica). Mas, afinal, o que não é dinâmico na vida dos contratos de longo prazo? É cada vez mais comum a ocorrência de eventos imprevisíveis e de efeitos extraordinários, valendo mencionar a crise financeira do subprime em 2008, a crise econômica nacional de 2016 e, agora, a pandemia [3].

A opção desse modelo regulatório pode, em tese, minimizar os efeitos (atual e futuro) da crise. Trata-se de regime tarifário baseado no custo do serviço, cuja fiscalização pressupõe uma base open book. Por não descaracterizar a concessão, e desde que deliberada consensualmente, não há, a princípio, impeditivos constitucionais para sua adoção. Obviamente, a conversão deve ser antecedida por estudos que reflitam sobre suas dificuldades, como a dependência de informações setoriais e a capacidade do agente regulador, elevando os custos para o poder público viabilizar a conversão do modelo de maneira satisfatória.

Paralelamente a conversão do modelo regulatório, será natural alguns gestores cogitarem da modificação do regime contratual, isto é, admitindo que concessões comuns possam ser transmutadas para a modalidade patrocinada. Nessa hipótese, o poder concedente assume a obrigação de pagar uma contraprestação ao concessionário, adicionalmente a tarifa arcada pelos usuários.

A doutrina encampa essa possibilidade, sustentando que a modificação limita-se a forma de remuneração (artigo 65, II, “c”, da Lei 8.666/93), preservando a essência do contrato, que é a prestação do serviço público.[4]. Contudo, parece-me que a alteração é muito mais profunda, seja por acrescer um novo risco ao privado (inadimplência do concedente), como também por propiciar novos direitos e obrigações às partes (observância do nível de comprometimento da RCL, constituição de garantias públicas, entre outros).

Olhando apenas da perspectiva da juridicidade da alteração, não me parece que seja tão diferente da já cogitada repactuação aventada no PL, já que também não implica descaracterização do objeto. O prazo de vigência limite de 35 anos e o valor mínimo dos investimentos já executados e a executar são quesitos essenciais para sua admissão. A concessão patrocinada exige ainda rigoroso cumprimento de requisitos fiscais, no momento da licitação (artigo 10 da Lei 11.079/04). Isso não impede que os mesmos requisitos sejam posteriormente validados, já que não refletem qualquer benefício para o concessionário, preservando-se a igualdade de condições garantida aos concorrentes quando da licitação original.

Por certo que nem todo aporte constante pelo concedente tenha que necessariamente se sujeitar ao regime das PPPs [5]. É que ainda é viável optar pela concessão comum subvencionada, a exemplo do que se admite na mobilidade urbana, por força da própria legislação (artigo 9º, §5º da Lei 12.587/12). A escolha da subvenção em detrimento da contraprestação em nada significa abandonar os preceitos de Direito Financeiro, na medida em que esta modalidade de pagamento possui disciplina própria na Lei 4.320/64 e na LRF. No fim do dia, prevalecerá a discricionariedade do gestor, limitada pela capacidade financeira do contratante à conversão do regime.

Essas são algumas provocações que procurei colocar em debate, como forma de contribuir ao aprimoramento do texto legal, sem prejuízo de reconhecer sua complexa implementação, na medida em que exigem algum grau de comprometimento de recursos orçamentários, já bastante escassos. Ainda assim, são alternativas que podem preservar a relação contratual, cuja adoção não afasta todas as premissas já repercutidas no PL 2.139, em especial a consensualidade e a transparência na renegociação dos contratos em momentos de crise.

 é advogado em Infraestrutura no escritório Cordeiro, Lima e AdvogadosCaio Figueiroa e mestrando em Direito Público pela Direito FGV-SP.

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ConJur – Crise e tributação

Seguindo a linha de expor às empresas formas de economia fiscal na crise, iniciada com o texto anterior acerca do ICMS na demanda contratada de energia elétrica (veja aqui), escrevo nesta coluna sobre a contribuições ao Sistema S, que incidem sobre a folha de salários, conforme a tabela abaixo:


Instituição Alíquota
Senai 1,0%
Sesi 1,5%
Senac 1,0%
Sesc 1,5%
Sebrae

variável no intervalo de 0,3% a 0,6%

Senar

variável no intervalo de 0,2% a 2,5%

Sest 1,5%
Senat 1,0%
Sescoop 2,5%

Existem duas novidades sobre o tema.

A primeira é a Medida Provisória 932, que reduziu em 50% as alíquotas acima apontadas até 30 de junho de 2020, em razão da pandemia. Seguramente foi um alívio que o governo federal deu com o chapéu alheio, pois tais receitas não entram nos cofres federais, mas servem para o custeio dos serviços desenvolvidos por essas entidades. Logo, a despeito de não impactar os cofres públicos, alivia a pressão sobre o caixa das empresas, mesmo que de forma temporária. Registra-se a existência de posições contrárias a essa medida (veja aqui).

A segunda novidade não se caracteriza bem como tal, pois se refere a um julgamento ocorrido pelo Superior Tribunal de Justiça em 2008, que retornou agora ao debate em razão de outro julgamento recente que reafirmou a posição jurisprudencial daquela corte.

Em 2008 o STJ julgou o Recurso Especial 953.742, que teve por relator o ministro José Delgado, em um acórdão no qual diversas diferentes matérias foram apreciadas, e decidiu que ”tem aplicação o artigo 4º, parágrafo único, da Lei 6.950/81, que limita o recolhimento do salário-de-contribuição de vinte vezes o valor do salário-mínimo para o cálculo da contribuição de terceiros”.

Tal entendimento foi reafirmado no REsp 1.570.980, de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, publicado em março de 2020, reconhecendo que o artigo 4º da Lei 6.950/81 não foi revogado pelo DL 2.318/86 (veja aqui).

Em apertada síntese, o que as decisões estabelecem é que há um teto legal no valor de 20 salários-mínimos para a incidência das contribuições ao Sistema S (contribuições de terceiros), não sendo pertinente a cobrança de valor superior a esse montante.

Explicando com mais vagar, contata-se que o assunto é linear.

Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, a Lei 3.807/60 conferiu às instituições da Previdência Social a função de arrecadar as contribuições devidas a terceiros.

Em 1973, o artigo 14 da Lei 5.890 fixou o limite de 10 vezes o salário-mínimo vigente no país, como teto da base de cálculo dessas contribuições.

Em 1981, o artigo 4º da Lei 6.950 previu expressamente o aumento do limite máximo do salário de contribuição, que passou a corresponder a 20 vezes o valor do salário-mínimo vigente no país, sendo que o parágrafo único do mesmo artigo sacramentou que o referido limite se aplicava às contribuições “parafiscais” arrecadadas por conta de terceiros[1].

Em 1986 foi publicado o artigo 3º do Decreto-lei 2.318 explicitando que a limitação prevista no parágrafo único do artigo 4º da Lei 6.950/81 não se aplicava às contribuições previdenciárias dos empregadores. Nada disse acerca das contribuições de terceiros[2].

Aqui adentra a Constituição Federal de 1988, pois seu artigo 149 tornou clara a diferença entre essas diferentes espécies de contribuições, que antes já existia: (1) as contribuições sociais em sentido estrito (como por exemplo o salário-educação e as contribuições previdenciárias); (2) as contribuições de intervenção no domínio econômico (como por exemplo as Cide-Petróleo) e (3) as contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas (nesta última enquadram-se as contribuições ao Sistema S, conhecidas também como contribuições de terceiros, pois recolhidas na mesma guia de pagamento ao INSS).

Pois bem, concluiu o STJ nos julgados acima relatados que o artigo 3º do Decreto-lei 2.318/86 não afastou a aplicação do teto de 20 salários mínimos (parágrafo único do artigo 4º da Lei 6.950/81) para as contribuições de terceiros. O dispositivo legal é expresso em afastar a aplicação da norma exclusivamente em face das contribuições previdenciárias dos empregadores, que permanecem fora do teto de 20 salários mínimos. Logo, as contribuições “parafiscais” (estas do Sistema S, que se caracterizam como contribuições no interesse de categorias econômicas, ou contribuições de terceiros) estão dentro do teto, em razão de não terem sido expressamente afastadas pelo parágrafo único do artigo 4º da Lei 6.950/81, o qual não foi revogado pelo artigo 3º do Decreto-lei 2.318/86

Esse entendimento do STJ traz dois tipos de repercussão para as empresas: (1) imediato, pois reduz seus pagamentos referentes a essas contribuições para o Sistema S ao limite de 20 salários mínimos estabelecidos como teto; e (2) a possibilidade de recuperar o que foi pago a maior, com retroação de cinco anos como regra geral, a ser recebido em espécie ou pela via da compensação.

Não se sabe se este assunto ainda tramitará pelo STF, o que pode alterar a posição adotada pelo STJ. Todavia, a decisão do STJ está valendo e se trata de uma boa via de economia fiscal para os contribuintes, e com maior perenidade do que a estabelecida pela MP 932.

[1] Lei 6.950/81: “Art 4º – O limite máximo do salário-de-contribuição, previsto no art. 5º da Lei nº 6.332, de 18 de maio de 1976, é fixado em valor correspondente a 20 (vinte) vezes o maior salário-mínimo vigente no País. Parágrafo único – O limite a que se refere o presente artigo aplica-se às contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros.”

[2] Decreto-lei 2.318/86: “Art 3º Para efeito do cálculo da contribuição da empresa para a previdência social, o salário de contribuição não está sujeito ao limite de vinte vezes o salário mínimo, imposto pelo art. 4º da Lei nº 6.950, de 4 de novembro de 1981.”

 é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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Cassação de aposentadoria e as flores de plástico

Há tempos não escrevo uma coluna sobre servidores públicos. Motivou-me a elaborar a presente o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, no Plenário Virtual de 03 a 14.04.2020, da ADPF 418, Rel. Min. Alexandre Moraes (Informativo 975), cujo objeto foi o reconhecimento da constitucionalidade dos artigos 127, IV e 134 da Lei 8.112/90, que versam sobre a penalidade de cassação de aposentadoria dos servidores públicos federais em processos administrativos disciplinares.

A ADPF 418 foi movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), as quais argumentavam, basicamente, que os artigos 127 (inciso IV) e 134 do Estatuto dos Servidores Civis da União (Lei 8.112/90) não haviam sido recepcionados pelas Emendas Constitucionais 3/93, 20/98 e 41/03, tornando-se incompatíveis com o regime contributivo e solidário da previdência dos servidores públicos.

No julgamento do STF, compreendeu-se que as referidas emendas constitucionais que estabeleceram o caráter contributivo e o princípio da solidariedade para o financiamento do regime próprio de previdência dos servidores públicos, não revogaram as disposições do Estatuto dos Servidores Públicos Federais.

A decisão do STF tem como base os seguintes argumentos:

  • As emendas inauguraram um sistemática que demanda atuação colaborativa entre o respectivo ente público, os servidores ativos, os servidores inativos e os pensionistas;

  • A contribuição previdenciária do servidor público não é um direito representativo de relação sinalagmática entre a contribuição e o eventual benefício previdenciário futuro;

  • A aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria ou disponibilidade é compatível com o caráter contributivo e solidário do regime próprio de previdência dos servidores públicos;

  • A penalidade decorre do Poder Disciplinar da Administração e a impossibilidade de aplicação de sanção administrativa a servidor aposentado resultaria em tratamento diverso entre servidores ativos e inativos, relativamente aos mesmos ilícitos, em prejuízo do princípio isonômico e da moralidade administrativa, favorecendo a impunidade.

Afora os argumentos de índole moral sustentados na decisão suprema, convém observar que o fato de o STF ter reconhecido a constitucionalidade dos dispositivos da Lei 8.112/90 não elimina as controvérsias, as quais são como as titânicas “flores de plástico” — não morrem…

Elegi duas dessas “flores” para serem versadas nesta coluna, em ordem a comprovar a veracidade da afirmativa: (a) a contagem recíproca por tempo de serviço; (b) a impossibilidade de aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria em ações de improbidade administrativa.

Contagem recíproca de tempo de serviço

A primeira “flor” refere-se ao tempo de contribuição realizado compulsoriamente pelo servidor (contribuição previdenciária é tributo) à previdência pública, em face da previsão de contagem recíproca prevista nos artigos 40, §9º e 201, §9º da Constituição da República, que continuam a refletir a mesma orientação do texto originário, independente da Emenda Constitucional nº 103, de 2019 (Reforma da Previdência).

A Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro já faz algum tempo apontou em artigo publicado nesta coluna que “há que se ponderar que, em se tratando de pena de demissão, não há impedimento a que o servidor volte a ocupar outro cargo público, uma vez que preencha os respectivos requisitos, inclusive a submissão a concurso público, quando for o caso. Se assim não fosse, a punição teria efeito permanente, o que não é possível no direito brasileiro. E não há dúvida de que, se vier a ocupar outro cargo, emprego ou função, o tempo de serviço ou de contribuição, no cargo anterior, será computado para fins de aposentadoria e disponibilidade, com base no artigo 40, parágrafo 9º, da Constituição.”

Os argumentos da ilustrada professora falam por si só. O fato de o servidor vir a ser apenado em processo administrativo disciplinar com a sanção de cassação de aposentadoria não apaga automaticamente o seu tempo de contribuição. Mesmo porque se outra atividade vier a ser por ele “prestada no setor privado ou em regime de emprego público, esse tempo de serviço ou de contribuição no cargo em que se deu a demissão tem que ser considerado pelo INSS, por força da chamada contagem recíproca, prevista no artigo 201, parágrafo 9º, da Constituição.”

Bem de ver que para que o ex aposentado venha a pleitear aposentadoria em um novo cargo público ou nos quadros do INSS, desta feita por conta do novo vínculo subordinado, terá de cumprir requisitos previstos na Constituição e na lei. Então, por exemplo, se o indivíduo sancionado pela cassação de aposentadoria vier a ocupar um novo cargo público por concurso público, terá que cumprir, a fim de se aposentar mediante contagem recíproca, “o tempo de contribuição e os demais requisitos estabelecidos em lei complementar do respectivo ente federativo”, nos termos do art. 40, III, da Constituição da República (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019).

Impossibilidade de aplicação da penalidade em ações de improbidade administrativa

A segunda “flor” refere-se à impossibilidade de aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria nas ações de improbidade administrativa.

Já tive a oportunidade de anotar que esse tipo de ação tem um colorido quase penal, asseverando que são ações de conteúdo punitivo, participantes do microssistema do Direito Administrativo Sancionador. São “ações penaliformes”, subordinadas muito mais de perto à “principiologia” típica do Direito Penal e do Processo Penal.

“[O] objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim — a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal —, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal”.

Com efeito, de acordo com o art. 37, §4º da Constituição e com o art. 12, I, II e III da Lei 8.429/92, uma das penas aplicáveis ao caso de condenação judicial transitada em julgado na ação de improbidade administrativa (art. 20 da Lei 8.429/92) é a “perda da função pública”.

Diferentemente da Lei 8.112/90 cujos artigos 127, IV e 134 da Lei 8.112/90 acabam de ser declarados constitucionais em ADPF pelo STF   a lei de improbidade simplesmente não alude à penalidade de cassação de aposentadoria.

Logo, uma vez ausente a previsão legal na Lei 8.429/92 é descabida a aplicação da penalidade de cassação de aposentadoria – nullum crimen nulla poena sine lege.

A questão, portanto, no caso específico da improbidade administrativa, é antes de legalidade do que de isonomia. É que o princípio da legalidade constitui uma efetiva limitação ao poder punitivo estatal […] é um imperativo que não admite desvios nem exceções e representa uma conquista da consciência jurídica que obedece a exigências de justiça, que somente os regimes totalitários o tem negado.”

Para não dizer que não falei das flores…


A competência para legislar sobre servidores públicos estatuários, respeitados os quadrantes constitucionais, é de cada entidade federativa. É comum que se contate em muitos estatutos a inexistência de previsão legal da penalidade de cassação de aposentadoria dos servidores (v.g., Lei 869/52 do Estado de Minas Gerais).

Sobre o tema, ver a coluna “Senso Incomum” semanalmente elaborada pelo jurista Lenio Luiz Streck aqui na ConJur. O ponto de convergência dos textos do autor reside na compreensão de que o Direito não é um subproduto da moral.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. https://www.conjur.com.br/2015-abr-16/interesse-publico-cassacao-aposentadoria-incompativel-regime-previdenciario-servidores. A redação atual do art. 40, §9º da Constituição é a seguinte: “o tempo de contribuição federal, estadual, distrital ou municipal será contado para fins de aposentadoria, observado o disposto nos §§ 9º e 9º-A do art. 201, e o tempo de serviço correspondente será contado para fins de disponibilidade”. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019).

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. https://www.conjur.com.br/2015-abr-16/interesse-publico-cassacao-aposentadoria-incompativel-regime-previdenciario-servidores. A redação atual do art. 201, §9º da Constituição é a seguinte: “para fins de aposentadoria, será assegurada a contagem recíproca do tempo de contribuição entre o Regime Geral de Previdência Social e os regimes próprios de previdência social, e destes entre si, observada a compensação financeira, de acordo com os critérios estabelecidos em lei.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)

Não se desconhece a existência de precedentes do STJ que sustentam a possibilidade de aplicação da penalidade, como se pode ver dos seguintes arestos do STJ, EDcl no REsp 1.682.961/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA; STJ, AgInt no REsp 1.781.874/DF, Rel. Min. FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, DJe de 14/05/2019; e do AgRg no AREsp 826.114/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 25/05/2016.

FERRAZ, Luciano. https://www.conjur.com.br/2020-jan-30/interesse-publico-ausencia-duplo-grau-jurisdicao-obrigatorio-acoes-improbidade.

Voto do Ministro Teori Albino Zavascki no RECURSO ESPECIAL Nº 885.836 – MG (2006/0156018-0), 1ª T, DJ de 02/08/2007, p. 398.

É fundamental compreender a diferença entre a aplicação da penalidade disciplinar em âmbito interno (poder hierárquico da Administração Pública) e a aplicação judicial das penas da lei de improbidade administrativa em âmbito externo (Poder Judiciário).

Saliente-se que o cabimento da penalidade de cassação de aposentadoria, mediante o exercício do Poder Disciplinar da Administração Pública, pressupõe que a falta apenável tenha sido cometida enquanto o indivíduo esteve vinculado ao serviço público. Isso porque se a falta tiver sido cometida depois da ruptura do vínculo, o aposentado não mais se subordina a essa ‘relação de especial sujeição’.

Ver a recente decisão o STJ no AgInt no REsp 1761937/SP. Registra a ementa que “as normas que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva (REsp. 1.564.682/RO, Rel. Min. OLINDO MENEZES, DJe 14.12.2015). Outro exemplar: AgInt no REsp. 1.496.347/ES, Rel. Min. SÉRGIO KUKINA, DJe 9.8.2018. Na espécie, o Tribunal de origem, ao apreciar o tema, assinalou que, em consonância com os precedentes desta E. Turma, verifica-se a impossibilidade de aplicação da pena de cassação da aposentadoria, ante a inexistência de previsão legal desta modalidade de pena no rol do art. 12 da LIA (fls. 4.739). Referida compreensão, bem por isso, não se aparta de ilustrativos desta Corte Superior no tema” (AgInt no REsp 1761937/SP, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 19/12/2019).

A expressão, verdadeiramente iluminista — e reputada à obra de Cesare Beccaria — transmite a noção secular de que “só as leis podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a sociedade unida por um contrato social. Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o crime de um cidadão.” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000015.pdf).

BITEENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, Vol. 1, 17. ed., São Paulo: Saraiva, 2012. p. 48.

 é advogado e professor associado de Direito Administrativo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).