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Caio Figueroa: A impossibilidade de reequilíbrio contratual

Se a pandemia deixará registro nos livros de história, não menos diferente será nas páginas dos contratos de concessão. Hoje já não se discute a natureza do evento em si, mas sim como preservar esses contratos diante do agora e do “novo normal”. Cada setor terá um impacto, mas escrevo aos casos críticos.

As dificuldades de curto prazo estão associadas à capacidade do Estado de recompor o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, cujo risco lhe tenha sido atribuído, seguido da impossibilidade de se mensurar a totalidade dos seus impactos. Já no cenário pós-pandemia, os obstáculos resultarão da nova realidade que se apresentará, cujas premissas de custos ou demanda que embasaram a licitação jamais poderão ser retomadas [1].

Nessa perspectiva, muitos contratos não poderão ser reequilibrados segundo as premissas originais, restando a extinção antecipada do vínculo como solução. Mas se o reequilíbrio se mostra dificultoso, muito mais tormentosa será a saída pela extinção antecipada, pois exigirá a compensação desses mesmos valores, independente da modalidade considerada (encampação, caducidade, rescisão ou relicitação) além da indenização pelos investimentos não amortizados. São extremos que travam o gestor.

Diversos projetos de lei surgiram para contornar os cenários tradicionais de reequilíbrio-extinção. Entre todos, destaco o PL 2.139, que traz significativas contribuições para uma disciplina da repactuação dos contratos públicos, marcada pela consensualidade e reconhecimento de igualdade entre as partes, além de dispor sobre soluções cautelares de reequilíbrio.

O debate sobre sua pertinência neste momento não deve macular a relevância de propostas efetivamente inovadoras no ordenamento como aquela do artigo 6º, §2º, ao admitir a repactuação da equação econômico-financeira e a alteração da matriz de riscos. Uma blasfêmia para quem se apega à supremacia da licitação, e um alento para quem busca preservar as relações jurídicas.

Sem entrar nesse mérito, fato é que a proposta representa um importante avanço em matéria de mutabilidade, mas talvez, ainda insuficiente para lidar com o novo normal. O compartilhamento do risco de demanda, por exemplo, pode não ter qualquer efeito prático caso a demanda pós-pandemia não seja suficiente à viabilidade da concessão. O desenho de uma nova equação também não diz muito diante de contratos mais maduros, os quais se limitam olhar apenas para tarifas, prazo e a taxa de retorno.

O Congresso não pode desperdiçar a oportunidade para aprofundar o dispositivo, possibilitando a alteração das premissas que antecedem a própria equação econômico-financeira. É sobre essas alterações que quero chamar atenção, considerando o modelo regulatório que se pretende imprimir na relação, como também o próprio regime contratual. São medidas aparentemente não contempladas no projeto de lei.

Primeiro, o modelo regulatório não se confunde com o sistema de equilíbrio econômico-financeiro. Esse último reflete como serão calculadas ou procedidas as compensações por eventos de desequilíbrio. O modelo regulatório consiste no referencial de equilíbrio do contrato [2]. Distinguem-se entre regulação discricionária, cujos preços são definidos a partir dos custos da empresa e regulação por contrato, em que os preços independem dos custos do serviço.

A principal diferença do primeiro em relação ao segundo modelo consiste na ocorrência de revisões periódicas que visam alinhar o preço aos custos, de maneira cíclica. Grande parte das concessões nacionais estão pautadas no modelo de regulação por contrato, cujos preços são definidos no leilão. Exceções estão presentes nos contratos de distribuição de energia elétrica e saneamento.

Nesses casos, as premissas do contrato original são atualizadas a cada ciclo revisional, inclusive a taxa de retorno, sem que se discuta se as variações são riscos alocados a uma ou outra parte. Os riscos do concessionário estão dentro da margem de alcançar ou não a receita estimada no período, até a nova revisão periódica.

A flexibilidade é a principal vantagem desse modelo, permitindo adaptação dos contratos ao cenário econômico vivenciado. Por essa característica, o modelo é recomendado especialmente em setores mais dinâmicos (evolução tecnológica). Mas, afinal, o que não é dinâmico na vida dos contratos de longo prazo? É cada vez mais comum a ocorrência de eventos imprevisíveis e de efeitos extraordinários, valendo mencionar a crise financeira do subprime em 2008, a crise econômica nacional de 2016 e, agora, a pandemia [3].

A opção desse modelo regulatório pode, em tese, minimizar os efeitos (atual e futuro) da crise. Trata-se de regime tarifário baseado no custo do serviço, cuja fiscalização pressupõe uma base open book. Por não descaracterizar a concessão, e desde que deliberada consensualmente, não há, a princípio, impeditivos constitucionais para sua adoção. Obviamente, a conversão deve ser antecedida por estudos que reflitam sobre suas dificuldades, como a dependência de informações setoriais e a capacidade do agente regulador, elevando os custos para o poder público viabilizar a conversão do modelo de maneira satisfatória.

Paralelamente a conversão do modelo regulatório, será natural alguns gestores cogitarem da modificação do regime contratual, isto é, admitindo que concessões comuns possam ser transmutadas para a modalidade patrocinada. Nessa hipótese, o poder concedente assume a obrigação de pagar uma contraprestação ao concessionário, adicionalmente a tarifa arcada pelos usuários.

A doutrina encampa essa possibilidade, sustentando que a modificação limita-se a forma de remuneração (artigo 65, II, “c”, da Lei 8.666/93), preservando a essência do contrato, que é a prestação do serviço público.[4]. Contudo, parece-me que a alteração é muito mais profunda, seja por acrescer um novo risco ao privado (inadimplência do concedente), como também por propiciar novos direitos e obrigações às partes (observância do nível de comprometimento da RCL, constituição de garantias públicas, entre outros).

Olhando apenas da perspectiva da juridicidade da alteração, não me parece que seja tão diferente da já cogitada repactuação aventada no PL, já que também não implica descaracterização do objeto. O prazo de vigência limite de 35 anos e o valor mínimo dos investimentos já executados e a executar são quesitos essenciais para sua admissão. A concessão patrocinada exige ainda rigoroso cumprimento de requisitos fiscais, no momento da licitação (artigo 10 da Lei 11.079/04). Isso não impede que os mesmos requisitos sejam posteriormente validados, já que não refletem qualquer benefício para o concessionário, preservando-se a igualdade de condições garantida aos concorrentes quando da licitação original.

Por certo que nem todo aporte constante pelo concedente tenha que necessariamente se sujeitar ao regime das PPPs [5]. É que ainda é viável optar pela concessão comum subvencionada, a exemplo do que se admite na mobilidade urbana, por força da própria legislação (artigo 9º, §5º da Lei 12.587/12). A escolha da subvenção em detrimento da contraprestação em nada significa abandonar os preceitos de Direito Financeiro, na medida em que esta modalidade de pagamento possui disciplina própria na Lei 4.320/64 e na LRF. No fim do dia, prevalecerá a discricionariedade do gestor, limitada pela capacidade financeira do contratante à conversão do regime.

Essas são algumas provocações que procurei colocar em debate, como forma de contribuir ao aprimoramento do texto legal, sem prejuízo de reconhecer sua complexa implementação, na medida em que exigem algum grau de comprometimento de recursos orçamentários, já bastante escassos. Ainda assim, são alternativas que podem preservar a relação contratual, cuja adoção não afasta todas as premissas já repercutidas no PL 2.139, em especial a consensualidade e a transparência na renegociação dos contratos em momentos de crise.

 é advogado em Infraestrutura no escritório Cordeiro, Lima e AdvogadosCaio Figueiroa e mestrando em Direito Público pela Direito FGV-SP.

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Souza Mello: As suspensões de prazo sem análise do juízo

No dia 25 de maio, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, interpretando o artigo 3º, § 2º, de sua Resolução 314 de 2020 que basta a comunicação pelo advogado da impossibilidade de cumprir um prazo para impedir a preclusão temporal [1]. O relator concluiu que se trata de comunicação, não de pedido. O juízo não pode, portanto, apreciar a razoabilidade da justificativa. O pedido de providências foi formulado pela Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF) e comemorado por ela como vitória da advocacia [2].

Em tempos normais, em que se procura aplicar o Código de Processo Civil, a justa causa para não praticar o ato processual também evita a preclusão. É o disposto no artigo 223 e parágrafos. A parte tem o ônus de provar esse fato, alheio à sua vontade, que a impede de cumprir o prazo. O juízo deve, por consequência, indeferir o pleito de novo prazo e declarar a preclusão temporal em três hipóteses: a) quando a parte não se desincumbir do ônus de provar o evento; b) quando o evento não for alheio à vontade da parte; e c) quando o evento não impedir efetivamente a prática do ato.

A regra de crise instituída pelo CNJ exclui a possibilidade de indeferimento: a comunicação do evento impeditivo pelo advogado basta. Exclui, portanto, a necessidade de provar. Mais: como esses elementos também não estão sujeitos à apreciação judicial, os requisitos de que o fato seja externo e efetivamente impeditivo também desapareceram. Basta a comunicação. Mas, como seu conteúdo não pode ser analisado, é uma comunicação sem referente. O requisito da suspensão do prazo, na prática, é apenas o ato volitivo do advogado. Por fim, se o indeferimento é vedado, o Poder Judiciário não poderá apreciar nem sequer os casos de má-fé e abuso de direito. A resolução, na sua mais recente interpretação, cria ainda outro requisito divergente do CPC, e curiosamente mais restrito: a comunicação precisa ser feita antes do fim do prazo.

É evidente que o CNJ criou um poderosíssimo instrumento protelatório. Nenhum advogado ignora que algumas partes têm interesse na inefetividade da Justiça. No processo, como muitos autores têm apontado [3], o tempo é um ônus: quem o suporta — em regra, o autor — é privado de usufruir do bem-da-vida em disputa enquanto o litígio durar. A duração excessiva do processo de qualquer natureza costuma beneficiar o demandado que não tem razão. Pior: o demandado, quando sabe que não tem razão, não raro lança mão de todos os expedientes suspensivos e impeditivos que puder para adiar a solução do caso. Nos processos de natureza cível, em particular, o demandante que tem razão, que tem direito ao bem-da-vida, mas não pode gozá-lo, é o prejudicado pelo curso do tempo.

Com a regra de crise, o réu sem razão, o executado que não quer pagar (algum executado quer pagar?), aqueles, enfim, que têm o ônus do tempo em seu favor poderão adiar indefinidamente a solução dos conflitos e a efetivação dessas soluções pela simples prática de atos potestativos por seus advogados.

Isso é bom para a advocacia? Talvez para aquela com clientes que ocupam com mais frequência a posição de demandados do que a de demandantes — como é o caso de vários agentes econômicos de maior expressão, como companhias telefônicas, companhias aéreas e instituições financeiras. E isso apenas até que precise ir à Justiça cobrar seus honorários. Para a advocacia que patrocina quem tem o ônus do tempo contra si, vitória são processos rápidos e efetivos, sem dilações indevidas.

Do ponto de vista normativo, a interpretação atribuída pelo CNJ à sua resolução viola a Constituição Federal. Formalmente, porque cria hipótese inovadora de suspensão de prazo, violando a competência privativa da União para legislar sobre Direito Processual (artigo 22, I, da Constituição). Materialmente, porque a garantia da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII) não é compatível com um instrumento de protelação processual segundo o arbítrio de uma das partes. Ou, por outra, se um processo sem dilações indevidas é direito do jurisdicionado, excluir da apreciação jurisdicional a avaliação de se a dilação provocada por seu adversário é indevida viola a própria garantia de acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV).

Para garantir a efetividade da Justiça diante da decisão do CNJ, o juiz tem três opções: a) afirmando sua independência, dar à resolução interpretação diversa daquela atribuída e apreciar a adequação da justificativa no caso concreto; b) admitindo a interpretação dada pelo CNJ, fazer a declaração incidental de inconstitucionalidade da resolução e apreciar a adequação da justificativa no caso concreto; ou c) inverter o ônus do tempo mediante a concessão de tutela provisória, retirando o incentivo para as manobras protelatórias. Nos tribunais, em que o controle difuso se submete à reserva de plenário (artigo 97 da Constituição), as duas providências são necessárias: a declaração de inconstitucionalidade e a tutela provisória enquanto o jurisdicionado aguarda a manifestação do colegiado.

Com os inconvenientes da pandemia, os eventos que impedem o cumprimento dos prazos se tornaram, é claro, mais numerosos. Mas para essas situações a regra dos tempos normais dá solução: se a justificativa for adequada, o juiz poderá afastar a preclusão ou estender o prazo. Se não, não. A crise mudou muitas coisas, mas não é preciso inventar sempre um novo Direito. Em época de calamidade, mais do que nunca a sociedade precisa de um Direito efetivo. E se o sistema é o da vedação da autotutela, não há efetividade do Direito fora do Poder Judiciário. Em tempos como estes é que as ideias que tornam a Justiça inefetiva mais devem ser rechaçadas.

 


[3] Ver, por exemplo, MARINONI, Luiz Guilherme. La necesidad de distribuir la carga del tiempo en el processo. THEMIS: Revista de Derecho. n. 43, 2001, p. 45-51.

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OAB-SP pede ao CNJ flexibilização de atos judiciais na epidemia

A seccional paulista da OAB foi ao Conselho Nacional de Justiça pedir que prazos e atos processuais sejam suspensos em caso de impossibilidade do advogado cumprir o ato judicial. O pedido de providências foi protocolado na última sexta-feira (29/5) e distribuído para relatoria da conselheira Maria Tereza Uille Gomes.

OAB de São Paulo pede que TJ-SP adeque suas normas para abordar situações excepcionais dos advogadosCNJ

A OAB-SP alega que, devido à epidemia de Covid-19, o advogado não pode ser obrigado a se deslocar para postar cartas às testemunhas ou ainda transportá-las de um local para outro. Além disso, chama de “ação de elitização da Justiça” exigir que todo advogado tenha equipamentos e internet adequados para acesso ao Judiciário.

Por esse motivo, a entidade sustenta que as audiências só podem ser feitas quando o advogado tiver como contatar as testemunhas por meios eletrônicos, além de garantir que partes e testemunhas também tenham recursos tecnológicos para participar delas.

“Quando não for possível que tal aconteça, incumbência que não pode ser atribuída ao advogado, a simples informação prestada por ele quanto à impossibilidade do ato é de ser considerada pelo Judiciário para sobrestamento”, argumenta a OAB-SP.

Na inicial, os advogados narram que, num primeiro momento, o Tribunal de Justiça de São Paulo disciplinou que toda audiência de instrução processual só poderia ser feita com prévia concordância das partes e seus advogados. Mas logo depois mudou seu posicionamento e passou a prever as audiências por videoconferência, considerando a possibilidade de intimação e de participação das partes e testemunhas no ato, por meio de um link.

Ao CNJ, a entidade aponta os problemas decorrentes da mudança, dentre eles a não publicação das pautas das audiências virtuais na imprensa oficial. Segundo a seccional paulista, o dia e a hora das audiências “seguem a conveniência e oportunidade dos magistrados”. “Em muitos casos, o advogado é questionado se pode participar de uma audiência logo no dia seguinte ao telefonema, quando não no mesmo dia”, criticam.

A OAB pede que o TJ de São Paulo esclareça que a comunicação expressa da impossibilidade de cumprir o ato judicial pelo advogado é suficiente para ensejar a suspensão de prazos e atos processuais por parte do magistrado, inclusive a realização de audiências, sem que haja qualquer sanção processual. E ainda que seja determinada a adequação das normas editadas pelo TJ-SP referente ao tema.

Clique aqui para ler o pedido.

0004106-34.2020.2.00.0000