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A responsabilidade das plataformas no combate às fake news

O debate legislativo sobre regulação das redes sociais no combate às fake news gira em torno de uma oposição central. De um lado, propostas que atribuem responsabilidade perante terceiros por danos causados pela desinformação veiculada, caso os provedores de aplicação não retirem do ar, no prazo estipulado, o conteúdo reclamado como é o caso do relatório do Senador Ângelo Coronel (PSD-BA) sobre o PL nº 2630/20. De outro, propostas que não atribuem essa responsabilidade, como o PL nº 3063/2020 dos deputados Felipe Rigoni e Tabata Amaral e a Emenda Substitutiva apresentada pelo Senador Antônio Anastasia (PSD-MG) .

Os três projetos avançam na responsabilização das redes, embora em graus bastante distintos, em relação ao que dispõe o art. 19 do Marco Civil da Internet- MCI (Lei nº 12.965/2014). Daí a polêmica, uma vez que aquele dispositivo é considerado, por muitos, como marco para garantia da liberdade de expressão na internet no Brasil. O Supremo Tribunal Federal (RE 1.037.396/SP) deverá enfrentar o tema, ao analisar a constitucionalidade da imposição de necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para responsabilização civil de provedor de internet, por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Ou seja, não se discute a obrigação de agir do provedor, mas sim em qual momento seria configurada a sua culpa por deixar de agir (e.g. remover conteúdo infringente). Sob a perspectiva das fake news, poderia ser acrescentado ao atual debate: deveria o safe harbor do MCI ser afastado especificamente para o conteúdo desinformativo?

Um dos argumentos a favor da responsabilização aponta que as redes sociais já exercem políticas de moderação e excluem ou ordenam conteúdo, de modo que o art. 19 já estaria superado. Aqui, há duas confusões.

Primeiro, o safe harbor diz respeito apenas a responsabilização pelo ilícito praticado nas redes e não à possibilidade de exclusão espontânea de conteúdo. Se a responsabilidade, conforme o MCI, existe, hoje, apenas por descumprimento de ordem judicial, essa ausência de obrigatoriedade de excluir conteúdo, independentemente de ordem judicial, não implica proibição de fazê-lo. Trata-se de óbvio non sequitur deôntico. A ordem judicial leva à obrigatoriedade de exclusão, mas daí não se infere que somente com ordem judicial seria permitido excluir. A plataforma, pode, de acordo com suas políticas de uso – e sempre em respeito à dignidade da pessoa, à liberdade de expressão, e ao direito à honra – moderar o conteúdo seguindo critérios claros, objetivos e transparentes em relação aos usuários. Essa prática, de forma alguma pode ser considerada em desconformidade ou alguma forma de desuetudo em relação ao art. 19 do MCI.

Segundo, a ordenação de conteúdo ou seleção algorítmica do feed de postagens, que é aprimorado e treinado pela própria atividade do usuário da plataforma, não constitui editoração que possa implicar qualquer tipo de participação no conteúdo ou autoria. Vale lembrar que desde a Seção 230 do Communication Decency Act de 1996, os debates sobre a responsabilidade civil das plataformas de internet indicam que os intermediários da internet não devem ser considerados como editores.

Outro argumento a favor da responsabilização aponta o expressivo faturamento das redes com a atividade dos usuários, que deveria ser usado para impedir a desinformação criminosa. Apesar de, muitas vezes, ser veiculado como interjeição indignada com o fenômeno da desinformação, o argumento tem efeito persuasivo para muitos, sendo pertinente identificar e debater suas crenças subjacentes. A primeira é a de que seria possível, com investimentos substantivos, eliminar completamente fake news das redes sociais. A segunda é a de que haveria alguma responsabilidade dos provedores de internet, na medida em que a plataforma torna possível essa prática.

É preciso reconhecer o enorme desafio que enfrentam as plataformas em um modelo de produção descentralizada de conteúdo, fenômeno característico das redes sociais na chamada internet 2.0, que contribuiu para a modificação da a esfera pública. A forma como as informações circulam e são compreendidas mudou, porquanto a sociedade de rede transpassou, em grande parte, a sociedade de organizações, quando a produção de informação era centralizada em grandes empresas jornalísticas.

Na mídia tradicional, centralizada, o controle do conteúdo ocorre antes da publicação pela própria organização de comunicação. Por sua vez, é da essência do modelo de redes que a publicação ocorra espontaneamente pelos usuários, caracterizados por estarem presentes em qualquer tempo e lugar- uma nova condição de leitura e de cognição.

Como em mercados de plataformas de internet, a liderança tende a se consolidar com elevada concentração, não há como o provedor compor uma gestão exclusivamente humana para analisar todo o conteúdo nela veiculado. Os provedores necessariamente terão de lançar mão de tecnologia, como a Inteligência Artificial, para detectar conteúdos que violem suas políticas de uso. Ocorre que há enormes desafios no estado atual de técnicas de processamento de linguagem natural e aprendizagem de máquina para identificar fake news ou hate speech. Assim, para lidar com o problema, as redes devem combinar a detecção e indicação por máquinas com revisores humanos. O equilíbrio nessa combinação é dinâmico e difícil de alcançar, alterando-se conforme evolui a tecnologia. Portanto, as redes deverão aprimorar uma série de procedimentos para apurar denúncias e acompanhar contas com atividade atípica de sistemática propagação de desinformação. O ideal seria manter a flexibilidade nesse ajuste, o que é favorecido pelo modelo de autorregulação.

Por outro lado, deter a infraestrutura que possibilita a propagação de desinformação não implica coparticipação, ainda que esta infraestrutura seja bastante lucrativa para o provedor. Como toda tecnologia, seu efeito é dual, e o modelo descentralizado, de comunicação direta entre pares, traz diversos benefícios à comunicação e à liberdade de expressão.

Se o alvo da regulação das redes é a atividade criminosa e organizada de propagação de desinformação, a responsabilidade por sua persecução e condenação é em primeiro lugar do Estado e não pode ser simplesmente delegada ao particular. Não cabe, de modo oblíquo, transferir esse dever, por meio da responsabilização civil das redes por todo o ilícito nela veiculado.

As redes sociais ou plataformas de comunicação interpessoal constituem hoje grande parte da infraestrutura que condiciona a atual esfera pública comunicacional, sendo responsáveis por preservar um ambiente no qual a democracia, e a liberdade de expressão sejam preservadas, mitigando riscos de lesão a direitos fundamentais previstos na Constituição Federal brasileira. Aliás, a função social das empresas de internet constitui importante vetor para o exercício de sua atividade econômica, o que lhes impõe deveres positivos a orientar seus serviços na construção de uma esfera pública democrática e que respeite direitos humanos. Porém, isso não significa que os intermediários devam ser responsabilizados por violações de terceiros, que inevitavelmente ocorrerão. Sua responsabilidade não pode ser pelo resultado, mas apenas procedimental, ou seja, por estruturar, dentro dos limites técnicos disponíveis e melhores modelos de governança, os meios para a detecção, identificação e combate à atividade desinformativa, sem perder de vista possíveis caminhos de Online Dispute Resolution, visando trazer maior agilidade e reduzir a judiciallização.


O texto do Senador Antônio Anastasia utiliza o modelo da autorregulação regulada. Sobre o assunto ver MARANHÃO, Juliano; CAMPOS, Ricardo. Exercício de autorregulação regulada das redes sociais no Brasil. In: NERY, N. Campos; ABBOUD, George. (Orgs). Fake news e regulação. São Paulo: RT, 2018

Thomas Vesting, A mudança da esfera pública pela inteligência artificial, em: Ricardo Campos, Georges Abboud, Nelson Nery Jr. (Orgs.) Fake News e Regulação. Coleção Direito e Estado em Transformação, Thomson Reuters-RT Sao Paulo 2018, p. 91 – 108.

Ver sobre o leitor ubíquo em SANTAELLA, Lucia. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013, p.277-279.

Sobre essa dificuldade, ver Wagner, B. Liable, but Not in Control? Ensuring meaningful human agency in automated decision-making systems, Policy & Internet, vol 11, n.1, 2019.

Juliano Maranhão é diretor do instituto LGPD, professor Livre-Docente da Faculdade de Direito da USP, membro do Comitê Diretor da International Association of Artificial Intelligence and Law e pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt.

Juliana Abrusio é diretora do instituto LGPD, doutora em Direito e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócia da Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados.

Ricardo Campos é diretor do instituto LGPD (Legal Grounds for Privacy Design) e docente assistente na Goethe Universität Frankfurt am Main (ALE).

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Processos relacionados à Covid-19 chegam a quase R$ 2 bilhões

São 35.699 processos com valor estimado em R$ 1,99 bilhão. É o impacto até esta quinta-feira (11/6) da pandemia de Covid-19 na Justiça do Trabalho.

Os dados são do Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, plataforma publicada pela ConJur e organizada pela instituição de educação Finted e a startup Datalawyer Insights, que permite a visualização, em tempo real, dos dados dos processos cujas petições iniciais citam “Covid-19”, “coronavírus” ou “pandemia”.

Clique aqui para acessar os dados

do Termômetro Covid-19 em tempo real

O valor médio das causas gira em torno de R$ 55 mil e o estado de São Paulo corresponde a 19,9% dos processos, seguidos de Minas Gerais, com 11,8%, e do Rio de Janeiro, com 8,2%. O estado na lanterna das ações é Roraima, com 0,11% do total.

O setor com maior número de processos é o da indústria de transformação, seguido por comércio, reparação de veículos e atividades financeiras como seguros e serviços relacionados.

Além do impacto econômico, o avanço da Covid-19 no Brasil tem promovido intenso debate jurídico. Uma das teses que ficou famosa no período foi a argumentação baseada no artigo 486 da CLT para justificar que  empresários repassassem parte dos custos das demissões para os governos municipais e estaduais.

A teoria do Fato do príncipe foi amplamente utilizada por advogados, mas na opinião de especialistas, ela não deve prosperar nas instâncias superiores da Justiça do Trabalho. Em webinário promovido pela TV ConJur, o ministro Alexandre Belmonte (TST) explicou que o Fato do príncipe é um ato unilateral da autoridade pública capaz de alterar ou distinguir relações jurídicas privadas já constituídas para atendimento do interesse público, a exemplo de uma desapropriação.

“Os governos estaduais e municipais que determinaram paralisação de atividade diante do risco de contaminação não agiram de forma discricionária com base em critérios de conveniência ou oportunidade para benefício do interesse pública. Fizeram isso por motivos de saúde pública com base em uma ocorrência da natureza que é o vírus. Isso descaracteriza o uso do argumento do Fato do Príncipe. A meu ver o artigo 486 na CLT é absolutamente inaplicável em relação ao contexto da Covid-19”, explica.

O recente movimento de reabertura econômica — apesar dos números altos de contágio e mortes relacionadas à Covid-19 no país —  reascendeu a discussão em torno da decisão do Supremo Tribunal Federal decidir, por maioria, suspender dois artigos da Medida Provisória 927, que disciplinam as relações trabalhistas durante o período da pandemia.

O artigo 29 estabelece que o coronavírus não é doença ocupacional, exceto mediante comprovação do nexo causal. Já o artigo 31 suspendeu a atuação dos auditores fiscais do trabalho por 180 dias. Foram sete votos para declarar que as normas são inconstitucionais. A interpretação de que a Covid-19 pode ser caracterizada como doença laboral tem gerado uma enorme preocupação nas empresas e deve gerar ainda mais processos.

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Discussão sobre artigo pode dar sobrevida ao voto de qualidade do Carf

Discussão sobre artigo 19-E pode dar sobrevida ao voto de qualidade
Reprodução

A aprovação da Lei 13.988/2020, que acabou com o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, ainda gera controvérsia. A manifestação de desempate a favor do Fisco era feita pelo presidente da turma julgadora.

Dois casos recentes explicitam essa tendência. O primeiro é sobre uma decisão da 2ª Turma Extraordinária da 1ª Seção de Julgamento, que, utilizando o mecanismo de desempate pró-fisco, negou pedido de adesão ao Simples Nacional da empresa Jaboti Indústria e Comércio de Bonés Ltda.

Um conselheiro do Carf explicou à ConJur que o debate gira em torno do alcance do artigo 19-E da Lei 10.522/2002 — dispositivo alterado pela Lei 13.988. Diz ele:

Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte. (Incluído pela Lei nº 13.988, de 2020)

Como exclusão do Simples não se trata expressamente de determinação ou exigência de crédito tributário, o novo regramento pôde não ser aplicado ao caso concreto. Assim, o impasse apresentado pelo caso pode, a depender da interpretação, dar sobrevida ao voto de qualidade pró-fisco.

Para Mattheus Montenegro, sócio do escritório Bichara Advogados, “a interpretação do artigo 19-E não deve ser restritiva, até porque não há lógica, no contencioso administrativo tributário, para deixar de aplicar o voto de qualidade nos processos de exigência de tributo, mas, por outro lado, manter sua aplicação a processos em que não exige tributo de forma direta, como, por exemplo, na exclusão do Simples”, explica.

Montenegro também cita o julgamento da ADI 5.731, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB para declarar a inconstitucionalidade do voto de qualidade. “O ministro Gilmar Mendes entendeu pela perda superveniente de objeto da ação a partir da nova lei, julgando-a extinta, em razão do ‘exaurimento da eficácia das normas impugnadas’, levando à conclusão de que o voto de qualidade foi extinto integralmente, eis que, caso contrário, a ação deveria prosseguir ao menos em parte”, argumenta.

Em dois artigos publicados na ConJur, os advogados Carlos Augusto Daniel Neto e Diego Diniz Ribeiro tratam do alcance do artigo 19-E e apresentam argumentos para interpretações distintas do dispositivo. 

Outro caso

No segundo caso, uma empresa do Rio de Janeiro buscou na Justiça Federal o direito a um novo julgamento no Carf. O recurso questiona derrota da companhia em disputa com a Receita Federal com base no voto de qualidade. O julgamento administrativo ocorreu anteriormente à aprovação do novo regramento sobre o voto de qualidade.

A sentença que determinou o novo julgamento foi proferida pela juíza Geraldine Vital, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro. A magistrada determinou que a disputa perdida pela empresa fosse tema de novo julgamento, mas com a normativa vigente.

A empresa em questão foi autuada por ter sido beneficiária, entre 2004 e 2007, do ato concessório de drawback suspensão — que desonera impostos na importação mediante a garantia de exportação posterior. No caso, a Receita alegou que a empresa não preencheu os requisitos necessários para gozar do benefício.

A companhia foi autuada inicialmente em R$ 25 milhões, mas conseguiu revogar a condenação na 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf. Na Câmara Superior, entretanto, a empresa perdeu a disputa com base em voto de qualidade favorável ao Fisco. Por isso, a empresa buscou na Justiça Federal o direito de ter um novo julgamento no Carf.

Ao analisar a matéria, a magistrada entendeu que as normas que previam o voto de qualidade na época do julgamento não podem se sobrepor ao artigo 112 do Código Tributário Nacional, segundo o qual “a lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado”. 

“A sentença é um ótimo precedente, pois reconhece a abusividade do voto de qualidade do Carf em afronta ao art. 112 do CTN mesmo antes da Lei 13.988. A expectativa é que a tese ganhe força com a publicação dessa Lei e seja pacificada pelo Judiciário com efeitos retroativos”, explica Bruno Aguiar, sócio do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.

Aguiar afirma que no escritório em que atua já existe uma força tarefa mapeando todos os processos julgados por voto de qualidade nos últimos anos e que podem ser levadas ao Judiciário.

Clique aqui para ler o acórdão do Carf (caso de drawback)

10074.001789/2010-96
Clique aqui para ler o acórdão do Carf (caso de exclusão do Simples) 

13906.000078/2007-57