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Oliveira e Cavalcanti: A crise da Covid-19 e a garantia sobre recebíveis

Em operações de empréstimo, é comum que as empresas ofereçam, como garantia de pagamento do crédito, os valores que têm a receber em decorrência do exercício de sua atividade.

Trata-se de cessão fiduciária de recebíveis [1], modalidade em que a tomadora transfere a propriedade resolúvel [2] sobre os recebíveis ao banco credor, que também passa a ser o possuidor direto de tais direitos ou títulos de crédito. A empresa, assim, não acessa esses recursos até a efetiva quitação da operação financeira. Adimplida sua obrigação, voltará a ser a plena proprietária dos recursos. Por outro lado, em caso de default, o banco poderá utilizá-los para fins de satisfação do seu crédito, observados os procedimentos legais.

Em razão da sua usual eficácia [3] e liquidez, tal garantia mitiga os riscos inerentes às atividades de financiamento e facilita a concessão de crédito pelas instituições financeiras.

Ocorre que, no atual cenário de crise econômico-financeira provocada pela pandemia da Covid-19, não tem sido rara a provocação, inclusive judicial, de empresas tomadoras de crédito para liberação dos recebíveis viabilizando-se o acesso a tais recursos. De outro lado, tem-se o credor, que, sobremaneira em um cenário como o presente, resiste em renunciar a qualquer garantia contratualmente estabelecida. Analisa, ao invés, a necessidade de reforço, nos termos contratuais, diante de eventual redução significativa do montante de recebíveis.

Cediço que nosso Direito Contratual tem por princípios básicos a força obrigatória dos contratos e a intervenção mínima. Igualmente verdadeiro, todavia, é que também são previstos remédios que autorizam, em cenários excepcionais, o afastamento da vontade originária das partes, sempre de forma a garantir o equilíbrio contratual, a exemplo da teoria da imprevisão (artigo 317 do CC) e da onerosidade excessiva (artigo 478 do CC).

Assim, se em regra permanecem válidas as garantias originalmente contratadas entre as partes, bem como as previsões de complemento para manutenção do valor garantido, sob pena inclusive de vencimento antecipado do contrato, em algumas hipóteses excepcionais o pleito de liberação dos recebíveis pode ser legítimo: quando demonstrado o significativo impacto da pandemia na atividade do tomador e a real necessidade de tais recursos para sua continuidade. Para tanto, ressalte-se, em regra deverá ser concedida uma nova garantia ao credor bastante e suficiente para o risco da operação.

Explica-se. Parece-nos um pleito, em tese [4], legítimo o formulado por empresas fortemente afetadas pela Covid-19, como, por exemplo, tende a acontecer com aquelas do setor de turismo e entretenimento, para substituir a cessão de recebíveis por garantia sobre determinado imóvel de valor suficiente. Trata-se, inclusive, de nítida operação ganha-ganha, pois, ao tempo em que a empresa terá acesso a recursos preciosos para atravessar momento tão delicado, a instituição financeira receberia uma garantia que, embora de menor liquidez, é mais sólida, afastando o risco de eventual esvaziamento decorrente da redução das vendas.

Tal operação pode, inclusive, ser transitória, voltando-se ao status inicial quando configurados determinados eventos acordados pelas partes, como o restabelecimento do volume de vendas ou da margem EBITDA em patamares anteriores à pandemia, por exemplo.

Por fim, deve-se alertar que o exposto acima não pode ser caminho para reequilibrar o que não foi desequilibrado. Muitas empresas não foram fortemente impactadas negativamente pela pandemia e outras tantas inclusive cresceram em sua decorrência. São possíveis exemplos empresas de tecnologia da informação, e-commerce, farmácias, varejo de alimentos, entre outros. Para essas, a pandemia não exsurge como justificativa para pleito de modificação da garantia originalmente contratada.

Das partes, sempre serão exigidos a boa-fé objetiva e o dever de colaboração. Em momentos como este, é necessário um grande esforço de empatia e compreensão, construindo-se, à luz do originalmente contratado, alternativas sustentáveis para os contratantes. O momento pede menos litígio e distanciamento processual e mais compreensão e aproximação. É apenas com absoluta transparência e muito diálogo que se chegará às melhores soluções.

 


[1] Lei 10.931/04. Artigo 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos. (Incluído pela Lei 10.931, de 2004) […] § 3º. É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada (Incluído pela Lei 10.931, de 2004).

[2] Código Civil. Artigo 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

Lucas Cavalcanti é sócio-gestor e especialista em insolvência do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Camila Oliveira é sócia-titular e especialista em Direito Empresarial do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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Requisitos para o protesto do contrato de locação de imóvel

Na coluna da semana passada, tive a oportunidade de discorrer sobre a viabilidade do protesto do contrato de honorários advocatícios. Dedico a de hoje às exigências para o protesto do contrato de locação de bem imóvel

A despeito de antiga polêmica quanto à protestabilidade extrajudicial do contrato de locação, entendo que, no vigente ordenamento jurídico brasileiro, não subsiste qualquer obstáculo legal que o impeça.

Não se desconhece, por certo, julgado da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n. 17.400-SP, que reconheceu, por mínima maioria de votos, a ausência de liquidez do contrato de locação, fator impeditivo do respectivo protesto.

Examinando-se, contudo, esse superado aresto, percebe-se, de logo, que se trata de precedente marcado pela obsolescência, visto que proferido há quase duas décadas, cujo voto condutor, do relator designado desembargador convocado Adilson Vieira Macabu, asseverou, que, no caso concreto, contra o voto da relatora ministra Laurita Vaz, o instrumento particular de contrato de locação, então levado a protesto, carecia de liquidez, textual:

“Na hipótese dos autos, o contrato de locação de imóvel apresentado evidencia ser título com o atributo da certeza, em decorrência da determinação cogente da norma legal, bem como também demonstra possuir exigibilidade, por presunção de que houve o vencimento da dívida, sem revestir-se, no entanto, do atributo da liquidez, circunstância que inviabiliza o protesto do referido título”.

E, de fato, esse vetusto acórdão tem norteado, mais recentemente, julgados que, sem examinar o contexto em que proferido, negam a possibilidade de protesto do contrato de locação de imóvel. Todavia, análise mais aprofundada da questão evidencia que tal posicionamento lastreia-se em premissa totalmente equivocada.

O contrato de locação escrito, celebrado entre locador e inquilino, não reclama formalidade prescrita em lei, sendo suficiente que contenha a especificação do imóvel objeto do contrato e o valor fixado do aluguel, bem como a responsabilidade pelo pagamento dos encargos correlatos, a que se obriga o locatário pelo uso do bem. Importa observar que também não há exigência da assinatura de testemunhas.

Inadimplida a obrigação assumida pelo inquilino e estando reunidos, no respectivo instrumento escrito, os pressupostos intrínsecos de exequibilidade – vale dizer: liquidez, certeza e exigibilidade -, descortina-se aberta ao locador a via da ação de execução, com fundamento no artigo 784, caput e inciso VIII, do Código de Processo Civil, que têm a seguinte redação: “São títulos executivos extrajudiciais… VIII – o crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel de imóvel, bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas de condomínio”.

Todavia, antes do ajuizamento da ação de execução, atualmente, viabiliza-se o protesto do contrato de locação de bem imóvel.

Trata-se de faculdade colocada à disposição do credor de dívida não quitada, inclusive por meio da administradora do imóvel, desde que autorizada pelo locador, que tem como principais escopos provar a inadimplência do devedor e resguardar o respectivo direito de crédito. Além disso, constitui importante mecanismo de, sem a intervenção do Poder Judiciário, compelir o devedor a cumprir a obrigação que assumiu.

Cumpre lembrar que, a teor do artigo 1º da Lei n. 9.492/97: “Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida”.

O protesto deve ser tirado no local de pagamento expresso no respectivo contrato de locação. Caso estipulado que o aluguel deva ser pago mediante depósito bancário, é então a praça do pagamento que determina a apresentação do contrato no respectivo cartório. O protesto poderá ser tirado, se assim apontar o locador, contra o locatário, fiador ou ambos, desde que estes tenham se obrigado de forma solidária pelo cumprimento da obrigação.

O credor deverá exibir no cartório de protesto, o contrato de locação, acompanhado de uma planilha de cálculo, incluindo, em regra, o valor do aluguel atrasado, multa contratual prevista na avença, encargos vencidos, como condomínio, IPTU, seguro e conta de luz, e eventuais outras despesas de responsabilidade do inquilino, com a devida atualização monetária.

Assim, preenchidos estes pressupostos, o locador poderá então levar a protesto o contrato de locação de imóvel na hipótese de falta de pagamento do aluguel e/ou dos encargos, tendo em vista ser o mesmo considerado como título executivo extrajudicial, como acima frisado.

Recente decisão monocrática do atual presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, proferida no Agravo em Recurso Especial n. 1.605.601-RS, admitiu expressamente o protesto do contrato de locação, in verbis:

“Seguindo essa linha de raciocínio, entendo que deve ser revogada a decisão de fls. 70, já que em cognição exauriente foi evidenciado que a cobrança é legítima e, diante do inadimplemento, o protesto é instrumento conferido ao credor para recebimento de seu crédito (fl. 265)… Compartilho do entendimento perfilhado na origem no sentido de que a parte demandada logrou comprovar, consoante lhe incumbia, ex vi do artigo 373, inciso II, do Código de Processo Civil, que fato extintivo, modificativo ou impeditivo do direito do autor, uma vez que demonstrou que o término da relação contratual entre as partes ocorreu em data diversa da alegada, tendo ficado pendências a serem resolvidas que atrasaram o termo final da avença”.

Saliente-se que, no Estado de São Paulo, havia previsão, no item 14 do artigo 7º da Lei Estadual n. 10.710/2000, que admitia, dentre outros documentos, o protesto do contrato de locação, a qual, todavia, foi posteriormente revogada.

Não obstante, no Tribunal de Justiça de São Paulo tem prevalecido a orientação de que o contrato de locação pode ser levado a protesto, como se extrai de acórdão proferido pela 28ª Câmara de Direito Privado, no julgamento da Apelação n. 1010649-16.2014.8.26.0002, da relatoria do desembargador Cesar Luiz de Almeida, que decidiu:

“… Com efeito, não há que se falar em inexistência de débito locatício, pois o contrato de locação foi apontado a protesto em 10.09.2013 (fls. 18 – R$ 32.047,85) e em 10.10.2013 houve depósito na conta bancária da locadora apenas no valor de R$ 21.875,58 (fls. 27). Ora, é imperioso reconhecer que a dívida não foi solvida e o protesto se deu em razão da inadimplência dos autores, ora apelantes, demonstrando que a requerida agiu no regular exercício de seu direito. Dessa forma, tem-se que houve legítimo protesto de título ante a falta de pagamento e era mesmo de rigor o decreto de improcedência das pretensões declaratória e indenizatória deduzidas pelos autores”.

Em senso análogo, admitindo o protesto contra o fiador do contrato de locação, a 30ª Câmara de Direito Privado, ao ensejo do julgamento do recurso de Apelação n. 0009211-23.2014.8.26.0664, com voto condutor do desembargador Penna Machado, manteve a improcedência de pedido declaratório de nulidade do protesto do contrato de locação, ajuizado pelo devedor solidário, exatamente porque não se vislumbrou qualquer ilegalidade cometida pelo locador.

Mais recentemente, a 35ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça bandeirante, no julgamento da Apelação n. 1041662-91.2018.8.26.0002, relatado pelo desembargador Flávio Abramovici, assentou que:

“O Autor alega, na petição inicial, que o ‘boleto de cobrança’ emitido pelo 2º Cartório de Protesto de Letras e Títulos de São Paulo não indica obrigação certa, líquida e exigível; que não foi informado da existência do suposto débito antes do protesto; e pede a sustação do protesto…

Incontroverso que firmado o contrato de locação para fins não residenciais (fls.47/52), em que o Autor figura como fiador e principal pagador (cláusula 17) e que inadimplidos os aluguéis desde 15 de março de 2018.

Em relação ao valor do débito, o Autor limitou-se a apresentar mera impugnação genérica, que não indica o valor total que entende devido, o que não infirma o valor protestado.

Dessa forma, de rigor o improvimento do recurso…”.

Diante desse panorama, é de concluir-se que o contrato de locação de bem imóvel, revelando liquidez, certeza e exigibilidade, é passível de ser apontado para protesto extrajudicial.

 é sócio do Tucci Advogados Associados; ex-Presidente da AASP; professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP; e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

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Menezes Breyner: Direito Tributário de (em) crise?

Opinião

Com o coronavírus, temos um Direito Tributário de (em) crise?

Por 

A pandemia do coronavírus trouxe impactos de inúmeras ordens, os quais não cabe aqui enumerar ou discutir em sua integralidade, se é que tal tarefa seria viável. Destaque-se, porém, que um dos efeitos geralmente reconhecidos é a queda da atividade econômica de diversos setores, comprometendo inclusive sua liquidez e consequente capacidade de pagar tributos. Pela ótica do poder público, a queda de arrecadação e a necessidade de recursos para sustentar a sobrecarga da rede de proteção social exigida pelos direitos fundamentais aparentam propor uma equação de difícil resolução.

Contudo, questões relativas à compreensão do nosso sistema tributário surgem em um panorama mais geral a partir dessa nova, imprevista e irresistível circunstância.

No primeiro ponto, podemos indagar se o direito tributário positivado está preparado para absorver o impacto da calamidade pública sobre a capacidade de pagamento dos contribuintes. Não resta dúvida que ao Poder Legislativo está aberta a possibilidade de reformatar ao menos algumas obrigações tributárias, respeitando-se a igualdade tributária, de forma a adequar a tributação ao momento de crise pandêmica. O Poder Executivo pode atuar dentro dos limites da lei e nas matérias que não estão sujeitas à reserva legal, a exemplo da alteração do prazo de pagamento de tributos durante o período de crise. No plano federal, essa regra existe (Portaria MF nº 12/2012), mas seu cumprimento sofreu resistência da Administração Pública e motivou o deferimento de liminares para assegurar a prorrogação nela prevista. A propósito desse episódio, faz-se pertinente perquirir os limites da atuação do Poder Judiciário nesse contexto. No caso mencionado, os juízes fizeram valer uma norma já colocada pelo Poder Executivo. Contudo, a questão permanece em aberto na ausência de atuação prévia de Legislativo e Executivo. A resposta provisória a ser testada parece passar pela aplicação judicial da equidade, cujas admissão e limite encontram previsão expressa no artigo 108, IV e §2º do CTN.

No segundo ponto, a questão se coloca no plano da constitucionalidade da criação ou do aumento de tributos para suprir a demanda financeira do combate à crise. Relembre-se, por oportuno, o acolhimento da teoria finalística pelo STF para abordar a classificação e a validade das espécies tributárias (teoria pentapartida), ainda que em casuísmo legitimador de “contribuições sociais” determinadas. Faz-se necessário testar a compreensão finalística das espécies tributárias em momentos de crise, de forma a verificar se seria ela uma classificação universalizável e que alcançaria o efeito de limitar o poder de tributar em qualquer situação de calamidade pública formalmente reconhecida. Mais especificamente o debate passa por analisar se a Constituição esgotou a indicação de quais são os tributos a serem utilizados para atendimento a determinadas finalidades, em especial a finalidade de custear o combate a crises decorrentes de calamidade pública (artigo 148, I) e a sobrecarga do sistema de saúde (artigo 195).

Tais indagações assumem um relevante aspecto geral diante da imprevisibilidade que marca o mundo globalizado e da impossibilidade de antevisão de uma limitação territorial das consequências de eventos ocorridos nos mais diversos locais do globo terrestre, ultrapassando a especificidade da crise pandêmica do coronavírus. O Direito Tributário de crise merece, portanto, uma análise sob o prisma dogmático permanente e com pretensão de universalização, sob pena de ter-se mais um motivo, além das já conhecidas deficiências de nosso sistema (basta ver as discussões sobre as propostas de reforma tributária), para reforçar seu reconhecimento como um Direito Tributário em crise.

 é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. Mestre e doutorando em Direito Tributário (UFMG). Professor da Faculdade de Direito Milton Campos.

Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2020, 11h18

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Nesta crise não se deve aumentar tributo — simples assim

Esta crise econômica é diferente das anteriores que, de forma quase decenal, assolam o mundo. Lembro, por volta de 2000, da crise das empresas “ponto com”, que fez submergir o índice Nasdaq, da Bolsa de Nova York. Lembro também da crise dos créditos “subprime” em 2008, que teve como marco inicial a quebra do banco Lehman Brothers.

A crise atual decorre de uma questão sanitária que atingiu o planeta e fez a economia parar. A rigor, o dinheiro não desapareceu, ele simplesmente empoçou, está parado nos mesmos lugares, como em uma poça d’água, e não circulando como deveria. A isso se chama de armadilha da liquidez.

O ponto central a ser abordado são as mirabolantes soluções tributárias que estão surgindo para enfrentar esta crise econômica, decorrente do coronavírus.

Ouve-se aqui e ali notícias sobre a criação de um empréstimo compulsório (que já foi objeto de análise por Evandro Azevedo), aumento do imposto sobre a renda das grandes empresas e de bancos, extinção da isenção dos dividendos, retorno da CPMF durante a crise e muitas outras hipóteses que visam aumentar a carga tributária. Existe até quem proponha uma tributação “especial” sobre os salários dos servidores públicos, disfarçada de redução de salários — isto em plena crise!

Sabe-se que no Brasil a carga tributária é alta e mal distribuída, concentrada nos mais pobres, fruto da exagerada tributação da sobre o consumo. Ocorre que nem mesmo as duas PECs — Propostas de Emenda Constitucional que tramitam no Congresso para tratar da Reforma Tributária aliviam esse problema — na verdade, o intensificam.

Discordo de quem advoga as teses acima, que poderiam ser adequadas para debate em períodos de normalidade, e não de um Estado de Emergência Financeira. Estamos em período de crise pandêmica, e os remédios tributários não surtirão efeitos positivos, apenas ajudarão a matar o paciente.

O que as pessoas físicas e jurídicas precisam neste momento é de: (1) mais prazo para pagar os tributos; (2) afastamento de multas e juros em razão do atraso que já ocorreu e dos que virão a ocorrer, se o pagamento não for postergado; (3) suspensão do pagamento das parcelas dos parcelamentos em curso, qualquer que seja o nível federativo e o regime adotado para sua concessão; (4) sistema ágil e imediato de compensação de créditos (ICMS dos exportadores, Pis e Cofins calculados sobre o ICMS, contribuição previdenciária sobre parcelas trabalhistas etc.); (5) expressa e imediata possibilidade de troca de garantias processuais, liberando o dinheiro que está judicialmente depositado por fianças bancárias ou seguro garantia (isso vale para as Justiças Estaduais, Federal e do Trabalho); (6) incentivos fiscais para as atividades econômicas diretamente envolvidas no esforço de guerra contra o vírus, tais como a produção de álcool em gel, máscaras hospitalares, ventiladores pulmonares, equipamentos médicos, e todo o arsenal necessário ao combate; (7) forte redução das obrigações acessórias nos três níveis de governo.

As medidas apontadas são meramente exemplificativas, e alcançam várias frentes de ação. José Tostes, Superintendente da Receita Federal, corretamente fez sua parte, alargando o prazo para a entrega da declaração de imposto sobre a renda das pessoas físicas, quando o Congresso pretendia fazer uma Emenda Constitucional para isso. Também o Banco Central agiu bem, ao prorrogar o prazo para entrega da Declaração de Capitais no Exterior. Vários Estados e Municípios também seguiram esta linha. Nesse sentido o Brasil segue a trilha adotada por vários países. O temor é que as vozes pró-tributação como solução para a crise aumentem e prevaleçam.

Observe-se que não se trata de uma reforma tributária. Definitivamente não é esse o escopo. São sugestões de medidas de emergência que devem ser adotadas para dar um fôlego à sociedade acossada por diversos medos, desde o de contrair a doença, até perder o emprego e a renda para se sustentar e à sua família.

O enfrentamento deve ocorrer pelo lado da despesa e não da receita pública. Deve-se aumentar o gasto com saúde pública – pois até os planos de saúde privados excepcionam em suas cláusulas contratuais o custeio de seus segurados em caso de pandemias. Deve-se mesmo aumentar o gasto com as equipes que estão à frente do combate – médicos, enfermeiros etc. Bônus e novas contratações são medidas a serem cogitadas. Porém certos gastos são inadmissíveis, ainda mais em períodos de crise, no que agiu bem o ministro Dias Toffoli ao coibir tal dispêndio estabelecido pelo TJ-CE.

O Brasil vai se endividar, mas isso é para ser combatido em um segundo momento. Talvez nem seja o caso de apenas fazer dívidas, mas também usar parte dos US$ 350 bilhões de reservas que o Brasil acumulou por vários anos e que se encontram depositadas no exterior. Porque não usar parte desse dinheiro, ao invés de emitir títulos públicos, o que aumentaria a dívida? Não se trata da caixa forte do Tio Patinhas, conforme ouvi de uma amiga, mas é um montante considerável para este combate.

Não há dúvida que haverá enorme contração econômica, que deve ser enfrentada posteriormente, com as medidas adequadas e necessárias no futuro, quiçá seja próximo. Agora é hora de salvar vidas, e não de aumentar a carga tributária, que fará com que as empresa percam o pouco fôlego que ainda lhes resta e acabem aumentando o problema, demitindo seus empregados, e não pagando seus fornecedores, o que piorará a crise em curso, como já comentei anteriormente. Os governos precisam agir, e não apenas prometer agir — entre o discurso e o fato existe um enorme abismo.

O enfrentamento desta crise não passa pelo aumento de tributos. Trata-se de um erro de perspectiva que pode ceifar vidas.

 é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.