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Ressarcimento ao erário contra leniente em ação de improbidade

O texto desta semana foi inspirado em notícias dando conta de decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que considerou oponível à pessoa jurídica de direito público lesada acordo de leniência celebrado por ente privado com o Ministério Público Federal e com a Controladoria-Geral da União, obstando o prosseguimento de ação de improbidade que teria o escopo de perseguir reparação adicional ao erário. Antecipamos de pronto nossa concordância com o julgado, aprofundando a seguir as razões para tanto.

É bastante comum que as pessoas jurídicas vitimadas em improbidade — quando não sejam elas próprias as autoras da ação — integrem o processo lançando mão do artigo 17, § 3º, da Lei n. 8.429/1992. Nada de extraordinário aí. O que é capaz de problematizar a questão, isto sim, é a hipótese em que, no curso do feito, a pessoa jurídica ré celebra acordo de leniência, conduzindo o Ministério Público a, mediante homologação judicial, requerer a extinção do feito com relação ao particular ou, quando menos, a convolação da pretensão sancionatória em meramente declaratória.

Eis que surge, então, a questão que move este escrito: seria possível à pessoa jurídica lesada opor-se à homologação e/ou à extinção ou convolação do pedido invocando seu direito à reparação do dano — seja porque esse não fora endereçado pelo acordo, seja porque o fora, a seu juízo, insuficientemente?

É de se questionar, já à partida, se haveria interesse processual/recursal da pessoa lesada para tanto. É que, não tendo integrado o ajuste, a vítima a ele não se vincula, remanescendo a possibilidade de adesão ou de celebração de ajuste apartado; demais disso, sabido que o artigo 17, § 3º, da Lei n. 12.843/2013, põe a salvo do acordo de leniência o ressarcimento integral. Analogicamente, convém relembrar, no ponto, entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que afastou a possibilidade de terceiros impugnarem acordos de colaboração de que não fizeram parte:

O acordo de colaboração, como negócio jurídico personalíssimo, não vincula o delatado e não atinge diretamente sua esfera jurídica: res inter alios acta. (…)

Assim, a homologação do acordo de colaboração, por si só, não produz nenhum efeito na esfera jurídica do delatado, uma vez que não é o acordo propriamente dito que poderá atingi-la, mas sim as imputações constantes dos depoimentos do colaborador ou as medidas restritivas de direitos fundamentais que vierem a ser adotadas com base nesses depoimentos e nas provas por ele indicadas ou apresentadas – o que, aliás, poderia ocorrer antes, ou mesmo independentemente, de um acordo de colaboração.

(…) 1. O acordo de colaboração premiada, negócio jurídico personalíssimo celebrado entre o Ministério Público e o réu colaborador, gera direitos e obrigações apenas para as partes, em nada interferindo na esfera jurídica de terceiros, ainda que referidos no relato da colaboração.

A par de tudo isso, e justamente por força da premissa de que o ressarcimento ao erário admitiria persecução por ente não abarcado pelo acordo, seria possível indagar, então, se o exercício da pretensão não teria lugar no bojo do processo já instaurado e em curso. Para responder a essa questão, invocamos julgado emblemático da Primeira Seção do STJ, que, sob o rito dos repetitivos, (REsp n. 1.163.643, DJ de 1.163.643), afetado sob o rito dos repetitivos e de cujo voto condutor se extrai o seguinte:

Realmente, não se pode confundir a ação de improbidade administrativa com a simples ação de ressarcimento de danos ao erário. A primeira, disciplinada no artigo 17 da Lei 8.429/92, tem seu assento no art. 37, § 4º da Constituição, sendo manifesto seu caráter repressivo, já que se destina, precipuamente, a aplicar sanções de natureza pessoal, semelhantes às penais, aos responsáveis por atos de improbidade administrativa, conforme prevê o art. 12 da referida Lei.

Já a ação em que se busca a anulação de atos danosos ao erário, com pedido de reparação, que pode ser promovida pelo Ministério Público com base no art. 129, III da Constituição, tem por objeto apenas sanções civis comuns, desconstitutivas e reparatórias.

(…) não se pode considerar como típica ação de improbidade a aqui em exame, que não contém pedido algum de aplicação ao infrator de sanções político-civis, de caráter punitivo, mas apenas pedido de anulação de atos danosos ao erário e de ressarcimento de danos. Pretensões dessa espécie são dedutíveis em juízo por ação popular, por ação civil pública regida pela Lei 7.347/85, ou mesmo pelo procedimento comum ordinário, como ocorreu no caso concreto. Ressarcir danos, convém asseverar, não constitui propriamente uma punição ao infrator, mas, sim, uma medida de satisfação ao lesado, e a ação de improbidade destina-se prioritariamente a aplicar penalidades e não a recompor patrimônios. Assim, o pedido de ressarcimento de danos, na ação de improbidade típica, não passa de um pedido acessório, necessariamente cumulado com pedido de aplicação de pelo menos uma das sanções punitivas cominadas ao ilícito. O reconhecimento da obrigação de ressarcir danos, sob esse aspecto, é espécie de efeito secundário necessário da punição pelo ato de improbidade, a exemplo do que ocorre na sentença condenatória penal (CP, art. 91, II). O mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, relativamente a pretensões de natureza desconstitutiva, de nulidade ou anulabilidade, que sequer constam entre as cominações do art. 37, § 4º da CF ou no art. 12 da Lei 8.429/92.

No referido julgado, o STJ afastou qualquer nulidade em razão do fato de ação deduzida unicamente com pretensão de reparação ao erário, ainda que originado de ato ímprobo, não ter observado o rito da Lei n. 8.429/1992. O fundamento, como se extrai do excerto acima, foi o de que aquele procedimento especial somente coaduna ações de improbidade típicas, o que não é caso da pretensão reparatória deduzida isoladamente.

Daí que, celebrado acordo de leniência, ainda que pondo a salvo a reparação ao erário, não há mais justificativa ou campo para que a ação de improbidade prossiga como tal, exatamente nos termos em que, contrario sensu, decidiu o STJ.

O correto, pois, a nosso ver, em havendo discordância por parte da pessoa jurídica lesada quanto aos termos de ressarcimento — ou quanto à ausência de previsão a respeito dele —, seria buscar acordo em separado com o particular ou deduzir, autonomamente, após levantamento de subsídios mínimos para cálculo do prejuízo alegado, pretensão ressarcitória, dedicando-se o feito, a bem do contraditório e da ampla defesa, apenas e tão somente àquela discussão.

Insistimos: não é raro que o acordo de leniência seja celebrado já em momento avançado de ação de improbidade que, ao longo de sua tramitação, congregou discussões distintas do puro e simples ressarcimento. Homologado ajuste, e prejudicada a pretensão puramente punitiva, a convolação do feito em persecução reparatória tem o condão de prejudicar o contraditório e a ampla defesa do particular, que até ali frequentara discussão sob outra perspectiva e que agora se veria obrigado a recalibrar toda a sua argumentação à vista de novos moldes persecutórios, notadamente quando a insurgência da vítima se voltasse contra os próprios termos do acordo.

Ainda em favor de nossa posição, não se ignore que a pretensão e reparação ao erário em razão de ato de improbidade praticado com dolo é imprescritível, de sorte que nenhum prejuízo haveria para o poder público. Por tudo isso é que, reafirmamos, reputamos correta a decisão emanada do TRF-4, em prestígio da segurança jurídica e da proteção da confiança.


https://www.migalhas.com.br/quentes/327339/trf-4-acordo-de-leniencia-extingue-acao-por-ato-de-improbidade-administrativa; https://www.conjur.com.br/2020-mai-26/tojal-goncalves-acordo-leniencia-seguranca-juridica

Não ignoramos que a chamada Lei Anticrime e discussões no âmbito da 2ª Turma do STF têm inspirado uma revisita ao tema; sem prejuízo, e nos atendo ao momento atual, fato é que há julgados no sentido que aqui narramos.

STF, HC 127483 / PR, DJ de 27.8.2015.

RHC: 68542/SP Relator Ministra Maria Thereza De Assis Moura, 6ª Turma, 19/04/2016, Data da Publicação/Fonte DJe 03/05/2016.

 é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

 é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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Nomura: Sanções pecuniárias tributárias no pós-pandemia

Reconhecida a ocorrência de estado de calamidade pública pelos governos federal, estaduais e municipais, por conta da pandemia da Covid-19, caminhamos, agora, para a possível retomada da economia com a abertura gradual de alguns estabelecimentos comerciais e de serviços.

Entretanto, dando um pequeno passo atrás, sabe-se que, embora a interrupção total ou parcial de certas atividades comerciais tenha constituído, de um lado, medida necessária para evitar maior alastramento do novo vírus, de outro, acarretou sensível redução de receitas, afetando, pois, o fluxo de caixa das empresas, obstando, assim, o cumprimento de diversas obrigações.

É certo que o governo federal anunciou medidas para amenizar os impactos econômicos decorrentes da pandemia. Mas é sabido que tais medidas, de certo modo, foram tímidas e que, de fato, não forneceram uma base de apoio que conferisse um mínimo de expectativa de manutenção, ou, até mesmo, de recuperação da saúde financeira das empresas pós-pandemia.

Em vista disso, teses objetivando a suspensão temporária dos prazos de recolhimento de tributos federais, estaduais e municipais e de parcelas de programas de parcelamento começaram a ser levadas à apreciação do Judiciário, tendo-se notícia, até então, de diversas decisões liminares acolhendo, em princípio, o pleito dos contribuintes, e outras, não.

Dignas de aplausos são as decisões judiciais proferidas que, compreendendo o momento excepcional em que vive o Brasil e o mundo, reconheceram a necessidade da adoção de medidas urgentes e efetivas em prol da manutenção da empresa e dos empregos.

Por outro lado, a par de alguns juízos terem se posicionado pela inviabilidade da prorrogação do prazo de pagamento dos tributos, duas decisões merecem aqui destaque: as pronunciadas pelas  presidências do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Pedido de Suspensão de Liminares nº 2066138-17.2020.8.26.0000) e do Supremo Tribunal Federal (Suspensão de Segurança nº 5.363/SP), as quais determinaram a suspensão dos efeitos de diversas liminares que autorizaram a postergação do prazo de recolhimento de tributos estaduais.

Os entendimentos ali adotados, com o devido respeito, são equívocos, pois, antes do alegado risco de lesão à ordem pública, as liminares proferidas pelas instâncias ordinárias, tal como exposto acima, além de primarem pela preservação da empresa e dos empregos, com inegável caráter social, atuaram diante da inquestionável omissão dos Poderes Executivo e Legislativo quanto à adoção de medidas tributárias efetivas para mitigação dos impactos negativos decorrentes da pandemia e da quarentena decretada pelos Estados.

De fato, seria improvável e como, de fato, foi que os contribuintes, preocupados não só com a situação atual, mas, principalmente, com o porvir da crise provocada pela pandemia, permanecessem estáticos aguardando uma posição concreta do poder público acerca de ações efetivas na área tributária.

Assim, ausente uma postura mais concreta dos Poderes Executivo e Legislativo em prol da preservação dos valores fundamentais da ordem econômica (artigo 170, CF/88), expondo ao risco a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1°, incisos III e IV, CF/88), perfeitamente necessária seria a intervenção do Poder Judiciário como ator legitimado constitucionalmente para o saneamento de tal omissão, cumprindo a nobre função de pacificar conflitos, mas antes de tudo, sua missão precípua de garantir os direitos fundamentais, pela observância dos magnos princípios explícitos e implícitos previstos em nossa Constituição. 

A despeito da discussão se a prorrogação da data de vencimento de tributos se trata de moratória ou não, fato é que a suspensão das liminares, determinada pelas referidas decisões proferidas pelas presidências daquelas cortes, por certo, agrava a situação e o desespero dos contribuintes, já que não se vislumbra, concretamente, a alegada organização harmônica e coerente do Poder Executivo, na adoção de medidas fiscais necessárias para o enfrentamento da atual crise.

Ademais, ainda que as decisões liminares que deferiram a prorrogação das datas de recolhimento de tributos possam, realmente, interferir na redução da receita derivada do Estado, também é verdadeiro que este mesmo Estado, ao contrário dos contribuintes, detém maiores condições para financiar a máquina administrativa por outros meios.

Por tudo que se apresenta, o cenário que se avizinha, não só no Brasil, mas no mundo, aparenta ser devastador.

A par de alguns noticiários terem enfatizado os efeitos econômicos imediatos da pandemia sobre as médias e pequenas empresas, é certo que as grandes companhias também estão sofrendo forte impacto, especialmente aquelas detentoras de menor liquidez por conta do acesso mais restrito de crédito no mercado.

Dito isso, vem à tona uma questão fundamental: pós-pandemia, as empresas terão, de fato, capacidade financeira para honrar seus compromissos, especialmente, os tributários?

Certamente, a opção de muitos empresários (talvez a mais coerente) será colocar o pagamento de tributos no fim da lista das suas obrigações, primando pela quitação da folha de salários, dos pagamentos aos fornecedores e demais custos necessários, viabilizadores do reinício das suas atividades e da retomada da geração de receitas.

No entanto, postergar o cumprimento de obrigações tributárias acarretará, obviamente, ônus aos contribuintes consistentes na exigência de juros e de multa, até porque, tratando-se de obrigação legal, o seu descumprimento implica, via de regra, na imposição de sanção. E, exercendo a autoridade fiscal atividade vinculada e obrigatória, o lançamento da penalidade pecuniária será inevitável.

Ademais, o entendimento firmado pelo STF sobre a possibilidade de os sócios responderem por crime de apropriação indébita tributária constitui também preocupação, não só por possíveis inadimplências ocorridas durante a pandemia, mas mesmo quando, retomadas as atividades comerciais, o empresário, por certo período de tempo e, por necessidade de se reerguer e se manter, optar por cumprir outros compromissos em detrimento dos tributários.

Assim, diante desse cenário e das consequências da pandemia, seria razoável penalizar o contribuinte por imputação de sanções pecuniárias em razão da sua inadimplência, diga-se, ainda que praticada de forma consciente, mas, exclusivamente, pelo propósito de sobreviver e se reerguer, ou seja, de continuar sua atividade depois desta crise que assola o Brasil e o mundo?

Aqui vertemos nossa atenção às multas moratórias (decorrentes do atraso no pagamento do tributo) e às punitivas isoladas (imputadas quando do descumprimento de obrigações acessórias sem repercussão no valor do tributo), via de regra, aplicadas quando injustificada a inadimplência do contribuinte, considerando que, ante as circunstâncias, ambas não deveriam ser exigidas.

Isso porque, sendo fato público e notório (artigo 374, inciso I, do CPC/2015) a determinação de suspensão total ou parcial das atividades empresariais de diversos segmentos, o que, inquestionavelmente, acarretou sensível redução até mesmo, inexistência de faturamento das empresas, vale dizer, tudo por conta do novo coronavírus (constituindo, assim, caso de força maior de que trata o artigo 393 e parágrafo único do Código Civil), não seria — ou não será razoável penalizar os contribuintes com imputação de multas por descumprimento, frise-se, justificado de uma dada obrigação tributária (principal ou acessória).

Ainda que se pense no caráter objetivo da aplicação das sanções pecuniárias, não há como ignorar, por outro lado, o elemento subjetivo da conduta do contribuinte, tal como afirmado pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso nos autos do Agravo de Instrumento nº 727.872/RS, decisão esta que, embora desenvolvida em contexto distinto do atual e a partir de uma situação fática diversa, pode servir de parâmetro inicial para a circunstância de que estamos tratando neste texto.

Ora, se em casos de simples equívocos permite-se a análise do elemento subjetivo da conduta para quantificação da pena pecuniária ali fixada, mais justificável ainda será tal sopesamento quando se estiver diante da necessária preservação da empresa, dos empregos e, via de consequência, da própria dignidade da pessoa humana, pois, conforme leciona Renato Lopes Bechoa tributação, antes de mera técnica, deve ser um ato do Estado que respeite os valores que dão dignidade ao homem.

 Obviamente, não se pretende aqui defender que a inadimplência injustificada, ou seja, ocasionada fora das circunstâncias que vivenciamos hoje, com inegáveis reflexos negativos futuros por conta da Covid-19, seja merecedora de eventual isenção de penalidades.

Quer-se, a bem da verdade, realçar uma realidade posta logo à frente: a necessidade de revisitação de certos conceitos até então lidos e interpretados a partir de circunstâncias totalmente diferentes da que estamos vivenciando hoje.

Assim, a prevalência e, até mesmo, a superação de determinadas visões tradicionais sobre dados princípios, constituem posturas que, inegavelmente, deverão ser exigidas do poder público, especialmente, diante de uma realidade nunca antes vivida na história contemporânea, cujo rastro, aliás, é inevitável.

 é advogado no escritório Nelson Wilians & Advogados Associados, e mestre em Direito Constitucional.