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Grégore Moura: Direito, Estado e religião no Brasil

A pandemia causada pelo novo coronavírus, que assolou nosso planeta, tem gerado ataques à saúde mental das pessoas e dos governantes. Pululam notícias de escândalos envolvendo desvios de recursos públicos, polarização política da doença, a abertura das veias de um federalismo não integrativo e caótico [1] e a tradicional falta de diálogo na resolução dos conflitos que permeia o Brasil há tempos, jogando tudo nas mãos do Poder Judiciário.

Tal fato fica explicitado na notícia dada pela ConJur [2] com o título “Prefeito decreta 21 dias de orações e um de jejum para combater Covid-19″, dizendo que “Na justificativa, Soares diz que Ladário é uma ‘cidade cristã’ e que ‘Deus ouve a oração de um povo quebrantado’. No artigo 1º, o decreto prevê orações diárias nos lares, mas sem aglomeração de pessoas”.

Das duas uma, ou o ilustre prefeito não sabe o que é Estado laico ou não tem conhecimento do que seja o direito fundamental à liberdade de consciência e de crença, previsto no artigo 5º, VI, da Constituição Federal de 1988, assegurando ainda o livre exercício de cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias.

Todavia, o caso é emblemático, e nos traz uma importante reflexão em tempos angustiantes, já que no Brasil a arte e a atividade de dizer o óbvio tem virado exercício corriqueiro.

Parece que estamos regredindo em direitos duramente construídos ao longo de séculos, que vivem ameaçados e permeados pelo extremismo subjacente, muitas vezes camuflado ora pela mistura entre política e religião, ora pela mistura entre Direito, Estado e religião.

A confusão conceitual e metodológica faz o eleitor escolher seus candidatos não pela sua capacidade gerencial ou por seus projetos políticos, mas simplesmente por sua opção religiosa.

Com a devida vênia, por mais religioso que eu seja, o que isso me credencia para ser um bom gestor público?

A resposta é óbvia e cristalina. No dito popular, “não se confunde alhos com bugalhos”.

No Brasil há uma generalizada confusão entre capacidade gerencial, projeto governamental e aptidão para desenvolvimento de políticas públicas com opção religiosa, mas não se percebe que a imposição da minha consciência religiosa por meio do Direito ou do Estado é antidemocrática e inconstitucional.

Apesar de Direito e religião serem instrumentos de controle social, a coercitividade e a generalidade do primeiro o impedem de ser considerado expressão da vontade divina. Ora, a alteridade essencial ao Direito e à sanção jurídica em nada se confunde com a individualidade religiosa e a sanção espiritual, bem como com o seu misticismo calcado na fé.

Direito exige prova, exige respeito ao diferente, exige liberdade de expressão, exige a não imposição de dogmas ou formas de pensar e mais, exige segurança jurídica, que é quebrantada pela imersão da religião no Direito, ainda mais em um país como o Brasil, que está submetido a um Estado democrático de Direito.

Os conceitos de democracia são muitos: ora procedimentais, como defendem Joseph Schumpeter, Scott Mainwaring, Daniel Brinks, Aníbal Pérez Liñan, Dahl; ora substanciais, como defende Dworkin.

Todavia, independentemente do conceito de democracia que se adote, ao trabalhar os desacordos razoáveis como elemento básico em qualquer democracia e a fraternidade conflitual como característica fundamental do nosso sistema constitucional, ainda que de maneira implícita, não restam dúvidas de que qualquer imposição religiosa pelo Estado é flagrantemente antidemocrática.

Não podemos olvidar que o estado moderno só se firmou a partir da secularização. Estado e religião separados. Tanto é que o criador da teoria garantista do Direito, Luigi Ferrajoli, tem no princípio da secularização um dos seus pilares fundamentais.

Nesse diapasão, o Direito e o Estado caminham a serviço da religião não no seu aspecto substancial ou de conteúdo, mas para dentro da adequação, necessidade e proporcionalidade estrito senso garantirem a concretude do já mencionado direito fundamental à liberdade de consciência e de crença.

Ora, o respeito à diversidade religiosa é ínsito a qualquer democracia e o esquecimento de que o Estado brasileiro é laico gera o odioso retorno a períodos sombrios de punições por pensamentos, ideias e criminalização por estilo de vida ou por concepção religiosa.

Fiquemos atentos e repudiemos tais “decretos” e tais “religiosidades político-estatais”, ainda que baseados em “boas intenções”, pois não existem “cidade-cristã” nem religiosidade que deem capacidade política ou gerencial para ser um bom governante.

Na verdade, o que temos hoje, parafraseando o decreto citado no início deste texto, é “jejum” conceitual e de desrespeito aos direitos fundamentais, que infelizmente dura muito mais que um dia como sugere o prefeito.

Lembremo-nos do alerta de Cazuza em sua canção “O tempo não para”, pois não devemos encher nossas piscinas de ratos, com ideias que não correspondem aos fatos, e repudiemos o futuro que quer repetir o passado, já que o que temos visto é apenas um museu de grandes novidades.

O tempo, assim como a democracia, não para!!

 é procurador federal da AGU, doutor em Direito Constitucional e mestre em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Suspenso decreto que previa oração e jejum para conter epidemia

Dentre as muitas providências que gestores públicos podem adotar para complementar as medidas sanitárias no combate da epidemia do coronavírus, a prefeitura de Ladário, no Mato Grosso do Sul, inovou.

123RFPrefeito conclamou população a fazer oração e jejuar durante 21 dias 

O prefeito Iranil de Lima Soares editou decreto no início deste mês em que conclamou a todos os cristãos fazerem orações diárias por 21 dias e um de jejum “para livramento de todo o mal e pela benção do Senhor Deus sobre a municipalidade e o país”.

Diante da repercussão, no dia 21 de maio, o prefeito alterou o decreto para não restringir apenas a cristãos. Passou então a conclamar toda a população laderense a fazer “orações voluntárias a Deus e/ou a manifestação da fé”. Manteve, porém, as orientações de oração no período de 18 de maio a 7 de junho, bem como uma corrente de oração no dia 7 de junho e jejum.

Coube ao desembargador Luiz Gonzaga Mendes Marques, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, barrar a ideia milagrosa. O magistrado considerou que o decreto municipal contém aparente inconstitucionalidade, além da “ausência de efeito prático, específico e concreto do ato”.

“O fato de estabelecer período certo de duração evidencia um mínimo de efeito cogente à população daquela municipalidade, estabelecendo certas liturgias espirituais (orações, jejum e corrente/cerco de oração), em desrespeito ao pluralismo existente na sociedade local”, entendeu.

A decisão desta terça-feira (26/5) deverá ser referendada no Órgão Especial do Tribunal de Justiça. Os decretos ficam suspensos até julgamento de mérito.

O magistrado atendeu a pedido da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB do Mato Grosso do Sul. O presidente da comissão, Elias Cesar Kesrouani Junior, apontou na inicial que mesmo de forma voluntária a norma ofende o princípio da laicidade do Estado e a liberdade religiosa. 

O advogado afirmou ainda que as regras constitucionais de freios e contrapesos impedem que o Executivo local pratique atos que promovam quaisquer formas de discriminação, devendo ser assegurada a inviolabilidade e liberdade de crença, cultos e liturgias. 

O presidente da OAB de MS Mansour Karmouche afirmou que o decreto era inconstitucional e apontou que, nestes casos, é importante a intervenção da instituição para zelar pelo princípio da laicidade.

Clique aqui para ler a decisão

1405840-98.2020.8.12.0000

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Oliveira e Cavalcanti: A crise da Covid-19 e a garantia sobre recebíveis

Em operações de empréstimo, é comum que as empresas ofereçam, como garantia de pagamento do crédito, os valores que têm a receber em decorrência do exercício de sua atividade.

Trata-se de cessão fiduciária de recebíveis [1], modalidade em que a tomadora transfere a propriedade resolúvel [2] sobre os recebíveis ao banco credor, que também passa a ser o possuidor direto de tais direitos ou títulos de crédito. A empresa, assim, não acessa esses recursos até a efetiva quitação da operação financeira. Adimplida sua obrigação, voltará a ser a plena proprietária dos recursos. Por outro lado, em caso de default, o banco poderá utilizá-los para fins de satisfação do seu crédito, observados os procedimentos legais.

Em razão da sua usual eficácia [3] e liquidez, tal garantia mitiga os riscos inerentes às atividades de financiamento e facilita a concessão de crédito pelas instituições financeiras.

Ocorre que, no atual cenário de crise econômico-financeira provocada pela pandemia da Covid-19, não tem sido rara a provocação, inclusive judicial, de empresas tomadoras de crédito para liberação dos recebíveis viabilizando-se o acesso a tais recursos. De outro lado, tem-se o credor, que, sobremaneira em um cenário como o presente, resiste em renunciar a qualquer garantia contratualmente estabelecida. Analisa, ao invés, a necessidade de reforço, nos termos contratuais, diante de eventual redução significativa do montante de recebíveis.

Cediço que nosso Direito Contratual tem por princípios básicos a força obrigatória dos contratos e a intervenção mínima. Igualmente verdadeiro, todavia, é que também são previstos remédios que autorizam, em cenários excepcionais, o afastamento da vontade originária das partes, sempre de forma a garantir o equilíbrio contratual, a exemplo da teoria da imprevisão (artigo 317 do CC) e da onerosidade excessiva (artigo 478 do CC).

Assim, se em regra permanecem válidas as garantias originalmente contratadas entre as partes, bem como as previsões de complemento para manutenção do valor garantido, sob pena inclusive de vencimento antecipado do contrato, em algumas hipóteses excepcionais o pleito de liberação dos recebíveis pode ser legítimo: quando demonstrado o significativo impacto da pandemia na atividade do tomador e a real necessidade de tais recursos para sua continuidade. Para tanto, ressalte-se, em regra deverá ser concedida uma nova garantia ao credor bastante e suficiente para o risco da operação.

Explica-se. Parece-nos um pleito, em tese [4], legítimo o formulado por empresas fortemente afetadas pela Covid-19, como, por exemplo, tende a acontecer com aquelas do setor de turismo e entretenimento, para substituir a cessão de recebíveis por garantia sobre determinado imóvel de valor suficiente. Trata-se, inclusive, de nítida operação ganha-ganha, pois, ao tempo em que a empresa terá acesso a recursos preciosos para atravessar momento tão delicado, a instituição financeira receberia uma garantia que, embora de menor liquidez, é mais sólida, afastando o risco de eventual esvaziamento decorrente da redução das vendas.

Tal operação pode, inclusive, ser transitória, voltando-se ao status inicial quando configurados determinados eventos acordados pelas partes, como o restabelecimento do volume de vendas ou da margem EBITDA em patamares anteriores à pandemia, por exemplo.

Por fim, deve-se alertar que o exposto acima não pode ser caminho para reequilibrar o que não foi desequilibrado. Muitas empresas não foram fortemente impactadas negativamente pela pandemia e outras tantas inclusive cresceram em sua decorrência. São possíveis exemplos empresas de tecnologia da informação, e-commerce, farmácias, varejo de alimentos, entre outros. Para essas, a pandemia não exsurge como justificativa para pleito de modificação da garantia originalmente contratada.

Das partes, sempre serão exigidos a boa-fé objetiva e o dever de colaboração. Em momentos como este, é necessário um grande esforço de empatia e compreensão, construindo-se, à luz do originalmente contratado, alternativas sustentáveis para os contratantes. O momento pede menos litígio e distanciamento processual e mais compreensão e aproximação. É apenas com absoluta transparência e muito diálogo que se chegará às melhores soluções.

 


[1] Lei 10.931/04. Artigo 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos. (Incluído pela Lei 10.931, de 2004) […] § 3º. É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada (Incluído pela Lei 10.931, de 2004).

[2] Código Civil. Artigo 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

Lucas Cavalcanti é sócio-gestor e especialista em insolvência do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

Camila Oliveira é sócia-titular e especialista em Direito Empresarial do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia.

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Contra Covid-19, prefeito decreta 21 dias de orações e 1 de jejum

Aleluia, irmãos

Prefeito decreta 21 dias de orações e um de jejum para combater Covid-19

A Prefeitura de Ladário, no Mato Grosso do Sul, editou um decreto que prevê 21 dias de oração, um de jejum e até um cerco espiritual como medidas de combate ao coronavírus. O decreto foi assinado pelo prefeito Iranil de Lima Soares.

123RFPrefeito decreta 21 dias de orações e um de jejum para combater Covid-19

Na justificativa, Soares diz que Ladário é uma “cidade cristã” e que “Deus ouve a oração de um povo quebrantado”. No artigo 1º, o decreto prevê orações diárias nos lares, mas sem aglomeração de pessoas. 

Já o artigo 2º orienta voluntários a orar por 21 dias e fazer jejum por um dia, “invocando o nome do Senhor para que juntos na fé possamos vencer a pandemia”. Segundo dados do governo do estado, Ladário tem cinco casos confirmados de Covid-19.

No dia 7 de junho, está previsto um cerco espiritual na cidade, onde cada cidadão deve rezar em sua casa, “com o escopo de pedir ajuda a Deus, tanto pelas pessoas que já estão doentes, quanto por aqueles que estão tomando medidas para não contrair a Covid-19, bem como para afastar este mal que assola nossa nação”, conforme o artigo 3º do decreto.

Revista Consultor Jurídico, 17 de maio de 2020, 10h02