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Guerra política desvenda primazia do patrimonialismo na pandemia

A falência da política como via de diálogo plural se revela na realidade brasileira, a partir do uso recorrente da analogia com a guerra em relação, sobretudo, à federação[1] e à separação de poderes[2].

A escalada recente da narrativa belicosa evidencia a fragilidade dos canais democráticos de pactuação, mesmo diante de um cenário dramático de aceleração de mortes e contaminações causadas pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19).

Não bastasse a pandemia, temos de sobreviver ao risco de uma guerra política que promove diuturna e paulatinamente a erosão do nosso pacto constitucional civilizatório e da qualidade da nossa democracia. Aliás, a própria comparação com o cenário da guerra no enfrentamento da pandemia parece estimular a pretensão de concentração de poder decisório, como bem alertado por João Paulo Charleaux[3]:

o discurso de guerra vem sendo usado por governantes em várias partes do mundo, seja para criar coesão dos cidadãos diante das privações, seja para justificar a aprovação de medidas que ampliam o poder do Executivo em situações de crise, como é o caso da pandemia em curso.

Em tempos de paz, cumprimos o ordenamento vigente e resguardamos que as tensões políticas sejam resolvidas pelos canais democráticos, sem aviltar qualquer dos pilares da Constituição de 1988. Em tempos de guerra semântica, contudo, a narrativa do inimigo a ser extirpado se instala temerariamente contra o sistema de freios e contrapesos, bem como contra os que, na federação, ousam divergir da solução imposta unilateralmente pelo ente central.

Estamos há quase três meses, no Brasil, paralisados pela disputa sobre a amplitude do isolamento social (horizontal ou vertical) que os diferentes níveis de governo indicam como medida de prevenção e controle das contaminações da Covid-19, sobretudo por causa dos impactos econômicos das medidas de contenção sanitária.

O isolamento horizontal é recomendado pela Organização Mundial de Saúde e tem sido adotado pela maioria[4] dos governadores e prefeitos, o que pressupõe paralisação das atividades econômicas que não sejam formalmente reconhecidas como essenciais.

Por outro lado, o governo federal defende o distanciamento apenas dos cidadãos supostamente identificados como grupos de risco (também chamado isolamento vertical), para fins de manutenção plena da atividade produtiva. Para lastrear tal proposta, tem sido enfaticamente defendida, em larga escala, a prescrição experimental de medicamentos (off label), cuja evidência científica não está comprovada.

A aparente dicotomia entre economia e saúde foi alçada à condição de contencioso federativo e deu causa a uma severa instabilidade gerencial no Ministério da Saúde, com a troca de dois titulares da pasta em menos de 30 dias.

Quando consultado[5] sobre a segunda mudança no Ministério da Saúde em menos de um mês, Michael Ryan, diretor-executivo do Programa de Emergências em Saúde da Organização Mundial de Saúde, deu-nos um duro alerta:

“Vimos um aumento no número de casos no Brasil e no restante da América do Sul e Central. Independente do sistema de saúde, é preciso haver coerência e coesão em todo o governo em relação à sociedade. As comunidades precisam ouvir mensagens coerentes de todas as autoridades”

Faltam-nos coerência e coesão em múltiplas frentes de atuação, exatamente porque somos lançados a uma aparente guerra de uns contra os outros. Mas a quem aproveita, em pleno ano eleitoral, negar cumprimento ao planejamento técnico-científico e esvaziar o controle de inúmeros balcões opacos de negócios e conflitos de interesses que a crise encerra?

Em meio ao caos político-administrativo, compras emergenciais vultuosas são feitas com fornecedores sem expertise nos respectivos objetos contratuais () e revisões/reajustes e benefícios salariais são concedidos aos servidores públicos, sem qualquer lastro no art. 17 da LRF (). Paradoxalmente, enquanto são concedidos auxílios-saúde a agentes públicos, a execução orçamentária do Ministério da Saúde segue profundamente lenta e insuficiente (como José Roberto Afonso e eu escrevemos aqui)

Enquanto milhares se mortes se avolumam, foi editada a Medida Provisória 966, no dia 14 de maio de 2020, em rota de fuga às hipóteses de responsabilização cabíveis, sobretudo com a inconstitucional redução de escopo dos §§ 4º e 6º do art. 37 da CF.

Aliás, é oportuno lembrar que o conceito do que seja “erro grosseiro” tem sido testado na realidade brasileira, haja vista o acúmulo de afrontas às recomendações da Organização Mundial de Saúde e do Ministério da Saúde, bem como o desapreço às evidências científicas internacionais. Nesse sentido, a entrevista concedida à Folha de S.Paulo, pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alerta para a falta de lastro técnico-sanitário na pretensão de o Executivo federal retomar a atividade econômica, com o relaxamento do isolamento social e o uso da cloroquina:

O sr. foi demitido no meio da pandemia. Seu sucessor não durou um mês no cargo. Qual deve ser o impacto da queda de mais um ministro? Este último mês foi perdido, sem nenhuma ação positiva por parte do ministério. […] o que assistimos foi a demissão de todo o segundo e o terceiro escalão do ministério, sem colocar ninguém no lugar. Isso é o pior dos mundos. O Ministério da Saúde está hoje uma nau sem rumo. Foram 30 dias de um ministério ausente.

[…]

Divergências com o presidente levaram à sua saída. O que mais o incomodou? […] Uma discussão feita no sistema de saúde havia quase 60 dias. Quando começam essas medidas [de isolamento social horizontal] e o presidente começa a fazer uma leitura diametralmente contrária ao discutido no SUS, ficou difícil.

É difícil coordenar um sistema como ministro se o presidente dá outra mensagem.

[…]

O que leva à campanha pela cloroquina?  A ideia de dar a cloroquina, na cabeça da classe política do mundo, é que, se tiver um remédio, as pessoas voltam ao trabalho. É uma coisa para tranquilizar, para fazer voltar sem tanto peso na consciência. Se tivesse lógica de assistência, isso teria partido das sociedades de especialidades [não do presidente]. Por isso não tem gente séria que defenda um medicamento agora como panaceia.

O Donald Trump defendeu a cloroquina, mas voltou atrás e parou. Nos EUA, isso gera processo contra o Estado. Aqui no Brasil não, se morrer, morreu.

Para mim foi isso que fez com que o Teich falasse: ‘Não vou assinar isso. Vai morrer gente e ficar na minha nota’.”

Para conter o caos político, o STF reafirmou a plena capacidade decisória dos entes subnacionais nos autos da ADI 6.341 e da ADPF 672, de modo a fortalecer, em plena pandemia, a ampla descentralização federativa que é elemento constitutivo do nosso SUS.

A execução da política pública de saúde, no Brasil, não admite centralização unitária de comando, já que sua coordenação nacional tem de ser pactuada mediante diálogo respeitoso no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite, a que se refere o art. 14-A da Lei 8080/1990.

Todavia, entre a teoria e a prática, um longo percurso de novas tensões superpostas se revela como verdadeiro campo de batalhas diárias. Em tese, é vedado à União constranger ou tentar impor aos governadores e aos prefeitos sua agenda unilateral de relaxamento do isolamento horizontal, sob pena de afronta ao art. 23, II e ao art. 30, II da CF/88.

Mas, infelizmente, o governo federal tem — direta ou indiretamente – promovido diversas extorsões fiscais para tentar sequestrar a capacidade de freios e contrapesos que a federação tem exercido na gestão da crise sanitária (como se pode ler aqui )

A Frente Nacional de Prefeitos denunciou essa “distopia federativa”, por meio de Nota Técnica publicada no dia 14 de maio (disponível aqui), da qual extraímos os seguintes excertos:

“Diante da flagrante falta de planejamento [federal] até o momento, os governantes dos entes subnacionais, além de suportarem, isolados, essa dramática situação, têm, ainda, insistido em buscar alternativas junto ao Governo Federal. […] No entanto, o Ministério da Saúde transferiu via Fundo Nacional de Saúde, somente cerca de R$ 7 bilhões em favor de municípios, estados e Distrito Federal. Mas, apenas R$ 2,3 bilhões de recursos são efetivamente novos para o SUS, o restante equivale ao remanejamento de dotações do Ministério da Saúde. Distribuiu somente 537 respiradores para os estados.

[…] À União caberia o planejamento para o enfrentamento da doença, o fornecimento dos insumos necessários aos Estados e Municípios para o cuidado da população, especialmente na hipótese de necessidade de importação de insumos. No entanto, a pandemia no Brasil, diferentemente de outros países, enfrenta crises políticas sucessivas e sinalizações contraditórias do governo nacional, ora apontando para o necessário isolamento social, ora incentivando a população a desrespeitar as medidas sanitárias adotadas pelos entes subnacionais. Tais atitudes têm contribuído para uma verdadeira distopia federativa. Prefeitas e prefeitos ressentem ainda de um documento norteador para a tomada de decisões com a pactuação federativa por uma estratégia de gestão de riscos, que leve em consideração a experiência de países que já passaram pelo pico da pandemia.” (grifos nossos)

Em igual medida, os Secretários de Fazenda publicaram carta no dia 15 em busca da imediata sanção do Projeto de Lei Complementar 39/2020, que trata do “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19)”) e, por conseguinte, dispõe sobre repasse de recursos federais para sustentação fiscal dos serviços públicos essenciais prestados pelos municípios e estados.

O § 7º do art. 5º do PLP 39/2020 — que condiciona os repasses à inexistência ou à renúncia de demandas judiciais contra a União intentadas após 20 de março deste ano () — afronta o art. 5º, XXXV e o art. 160 da CF.

O governo federal também tem ameaçado os entes subnacionais com o veto à sua própria Medida Provisória nº 938/2020 porque, supostamente, os recursos prometidos no PLP 39/2020 seriam suficientes (?) para o enfrentamento nacional da pandemia. Ora, ainda que sejam somados os valores de ambas as proposições legislativas, as transferências federais aos estados, ao DF e aos municípios estão muito aquém do necessário para assegurar a continuidade dos serviços essenciais.

Por sinal, um consistente risco de descontinuidade pode ser antevisto na falta de renovação do Fundeb até os presentes dias, o que coloca em xeque as atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino, sobretudo em face da derrocada dramática da arrecadação dos impostos dos entes subnacionais que compõem as vinculações do setor (como bem alertado aqui).

Nosso rol de exemplos da extorsão fiscal feita pelo Governo Federal, mediante o sequestro da federação, não poderia chegar ao fim na coluna de hoje, sem mencionarmos a abusiva proposta de acordo de quitação, formulada pela AGU, com deságio de até 40% da dívida que a União tem com alguns Estados no âmbito do extinto Fundef.

Tal acordo de quitação cinicamente “antecipada” (de um debate que se arrasta há décadas no judiciário) pressupõe o indecoroso e inconstitucional desvio de 90% dos recursos vinculados à educação, conforme se depreende da tabela abaixo publicada pelo jornal Valor Econômico aqui.

Tudo o que expusemos acima atesta o quanto a realidade supera quaisquer figuras de linguagem, inclusive a do “orçamento de guerra”[6] que deu causa à edição da Emenda 106/2020. A precária pactuação federativa e a tensionada relação entre os poderes deste 2020 são evidências de uma guerra política real que coloca o patrimonialismo de curto prazo eleitoral à frente das medidas sanitárias, sociais e econômicas de gestão da pandemia.

Paradoxalmente no momento em que mais precisamos de coordenação de esforços nacionalmente, respostas fragmentadas e descontinuidades administrativas se acumulam, atrasando respostas urgentes e abrindo espaço para toda sorte de capturas.

Denunciarmos essa guerra política é uma primeira forma de a enfrentarmos e, paulatinamente, tentarmos vencê-la. Conter esse patrimonialismo é essencial para que possamos nos dedicar ao que, de fato, importa: preservar vidas com dignidade!

 é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Como aplicar Teoria dos Precedentes a um momento sem precedentes?

A Teoria dos Precedentes foi paulatinamente incorporada ao Direito brasileiro na última década. Primeiro, por parte da doutrina, que buscava uma solução para a falta de isonomia nas decisões. Mais tarde, a figura dos precedentes foi adotada pelo legislador, fazendo expressa menção ao instituto no Código de Processo Civil de 2015. Respeitadas as diferenças teóricas sobre o tema, os precedentes têm como função principal a implementação da ideia do stare decisis, ou seja, o respeito ao que já se decidiu e a preservação dos entendimentos previamente firmados. A teoria dos precedentes, portanto, exige o desenvolvimento de fundamentação que considere as decisões proferidas em casos anteriores para a tomada de decisão do caso atual.

Por outro lado, o período da pandemia oriunda da Covid-19 tem sido considerado um momento sem precedentes – no mais amplo sentido da expressão. Essa observação vale, também, para a falta de precedentes judiciais para a tomada de decisões relativas ao momento atual e, nessa medida, os questionamentos aqui formulados se revestem de importância e de atualidade.

Logo que foram tomadas as primeiras medidas sobre a prevenção à pandemia, surgiram também medidas judiciais diretamente ligadas aos fatos. Os pedidos, para forçar o isolamento ou para afrouxá-lo, para fechar as portas de estabelecimentos comerciais, ou mantê-los abertos, para delimitar o quadro de serviços públicos essenciais, rapidamente bateram às portas do Judiciário. Pouco tempo depois, como decorrência imediata da crise econômica que acompanhou a disseminação do vírus, surgiu outra gama de casos, com alegações de impossibilidade de cumprimento de obrigações de todas as ordens.

Se todos esses casos estão sendo levados ao Judiciário, é certo que precisam de uma decisão. Para a tomada dessa decisão, o magistrado deverá apresentar fundamentação adequada, nos termos do art. 489, § 1º, do Código de Processo Civil. Dentre os requisitos desse artigo, os incisos V e VI exigem que o juiz indique os precedentes que se aplicam ao caso a ser decidido ou que justifique porque deixou de segui-los. Evidentemente, sob a ótica dos advogados, esta mesma regra está ligada ao modo como se utilizam os precedentes para justificar os pedidos formulados. Trata-se, portanto, de questão que afeta toda a comunidade jurídica.

É neste ponto que surge o problema que o presente artigo pretende enfrentar: como identificar os precedentes que podem ser aplicados para os casos em que a quarentena decorrente da Covid-19 desempenha um papel central? Uma vez identificados, qual o grau de vinculação desses precedentes com os casos que surgiram no período da pandemia? E, por fim, as decisões que foram e que serão proferidas por conta da pandemia terão o potencial para se tornarem precedentes? São essas as questões que o presente artigo pretende examinar.

Para respondê-las, é importante compreender a causa do problema. A pandemia rompe com algumas das premissas mais básicas do ser humano: a estabilidade e a segurança. Descobriu-se que ficar em casa pode gerar desconforto, angústia e incertezas. Para os que ainda podem desempenhar uma atividade profissional, o local de trabalho mudou, as ferramentas de trabalho mudaram, os desafios são outros e a rotina é muito mais intensa. Para outros, que não têm condições de desempenhar suas atividades, resta apenas aguardar em tensão ou procurar outros empreendimentos. Evidentemente, essa mudança gera alterações fáticas no desenvolvimento das relações jurídicas.

Assim, um contrato de aluguel, cuja disciplina já está mais do que consolidada em nosso ordenamento, torna-se objeto de intensas discussões jurídicas. Por conta da crise econômica, é possível postergar o pagamento? É possível suspender o despejo? Essas questões se tornam ainda mais complexas na medida em que as circunstâncias fáticas são complementadas: se a atividade do locador é, por exemplo, a de um salão de beleza, que forçosamente está fechado em algumas cidades, essa pessoa jurídica tem fundamento para pedir uma alteração do valor do aluguel? E, se por outro lado, a locatária é uma idosa que depende do valor mensal para custear seus medicamentos? Como decidir este caso, e quais precedentes adotar?

Se há algo que a Covid-19 produziu, no Direito brasileiro, é a transformação de inúmeros casos “fáceis” em hard cases. Ou seja, casos até então simples de serem julgados se tornaram complexos e desafiadores para a jurisprudência. Visto de outra forma, não se tem mais regra clara nem para julgar o que, até o início do ano, era assunto pacífico nos tribunais.

Respondendo, assim, ao primeiro questionamento (como identificar os precedentes aplicáveis aos casos contemporâneos), a verdade é que não há precedentes para este momento. A afirmação pode chocar, pois afasta a certeza e a segurança que o Direito pretende garantir. Diga-se mais: se houver algum precedente em potencial, trata-se de decisão recente, de março ou abril de 2020, mas que ainda precisa ser difundido e aplicado pelos demais juízos e, também, dependerão de apreciação dos tribunais superiores.

Ocorre, porém, que a falta de precedentes não significa que o Direito não regula as matérias que têm sido levadas às cortes. Há, de um lado, o direito positivo. E, de outro, o Poder Judiciário, que dispõe de todas as ferramentas necessárias para trabalhar com essas questões.

Em primeiro lugar, cabe considerar que os precedentes valem para, e na medida em que, os casos são ou não semelhantes. Deste modo, os precedentes já existentes sobre um tema podem ser relevantes para a tomada de decisão para os casos surgidos na pandemia. No entanto, esses precedentes podem não ser suficientes para a complexidade das causas atuais. Por exemplo, os precedentes sobre direito bancário são relevantes para as causas que surgiram no período da quarentena. No entanto, pode ser que a noção de “risco” ou de “equilíbrio” contratual tenham sido tão tensionadas que a conclusão do julgador seja, justamente, por uma solução “excepcional” para aquele caso. Nesta medida, não se pode presumir que o magistrado desconhece os precedentes sobre o tema, mas que as circunstâncias fáticas apontam para uma solução diversa.

Há diversos exemplos, recentemente noticiados, que permitem a constatação do ora afirmado. Nesta linha, apenas no Estado do Paraná, há notícias de casos que alteraram a solução tradicional de casos para oferecer uma saída diante da pandemia. Destacam-se, de modo ilustrativo, as seguintes decisões: i) determinação de alteração de datas de voo; ii) substituição provisória para idoso cumprir pena em prisão domiciliar; iii) concessão de tutela de urgência para que não ocorra a suspensão de fornecimento de luz elétrica a uma empresa que fabrica e comercializa alimentos; iv) determinação de isolamento social de sete pessoas de uma família.

Estes exemplos permitem uma conclusão parcial: os magistrados que proferiram as decisões citadas não tomaram tais decisões por meio de uma negação do Direito positivo nem negaram os precedentes sobre os temas, mas também não se pode afirmar que as providências tomadas são incoerentes. O que ocorre é que, diante dos hard cases levados à apreciação, observou-se que o bem jurídico a ser tutelado depende de uma interpretação mais complexa e ampla do ordenamento. A maioria dos casos, hoje, exige que o magistrado considere a repercussão da decisão sobre a saúde das partes e da população e que aprecie, também, as dificuldades inerentes ao período experienciado.

Portanto, se a “premissa fática” sofreu alterações pela quarentena, a “premissa normativa” também pode ter sido alterada. Ou seja, no período da Covid-19, a relação das normas com os casos não é a mesma do que era antes da quarentena se iniciar.

Assim, se os elementos fáticos do caso são bem apresentados e restar demonstrado que a situação merece tratamento diferenciado, poderá o magistrado realizar o chamado distinguishing, ou distinção, previsto no inc. VI, do art. 489. Isto permite que a decisão se distancie do precedente já firmado e que um resultado diferente seja conferido ao caso atual. Com isso, a fundamentação da decisão permanece hígida e não haverá falta de integridade no ordenamento. Em outras palavras, se houver uma razão concreta para o tratamento diferenciado, não se está a falar em injustiças ou em falta de isonomia. Ao contrário, o que se tem é uma tutela específica para um caso específico.

Agora, em que medida essas decisões passarão a integrar o conjunto de precedentes no Brasil? Ou melhor, qual é a possibilidade de um precedente formado no período da quarentena seja empregado para casos no futuro?

Aqui, a preocupação deve ser com alguns institutos. Em primeiro lugar, há de se compreender o espaço dos chamados fatos materiais, na nomenclatura de Arthur Goodhart, ou dos “fundamentos fáticos determinantes”, no que seria uma definição mais próxima do que é empregado pelo CPC. Fatos materiais são os fatos considerados juridicamente relevantes para a tomada de uma decisão e que, por isso, devem ser destacados no relatório e na fundamentação.

Tome-se por exemplo um importador de produtos chineses que não conseguiu pagar tributos. No caso desse importador, a quarentena brasileira, por si só, pode não ser o ponto mais relevante para a tomada de uma decisão. Mas, a falta de remessa dos produtos ou o bloqueio de produtos chineses nos portos deverá ser destacado pela decisão, caso efetivamente se conceda à parte um prazo maior para o pagamento da dívida. É fundamental que o conjunto de fatos seja bem delimitado pela decisão.

O que não pode ocorrer é a tomada de decisões com fundamentação escassa. No futuro, poderão se voltar contra os próprios tribunais ao serem invocadas para resolução de casos em condições normais. Ao formar precedentes neste momento, deve-se tomar cuidado para que as decisões pensadas para a pandemia não se tornem a posição pacífica dos tribunais a respeito de um determinado tema, como se a jurisprudência anterior estivesse superada.

Nesta linha, considerando um método bastante relevante de indexação e busca de decisões, é imprescindível que as decisões relacionadas à Covid-19 tenham a pandemia e seus efeitos indicados já na ementa, para evitar futura confusão entre precedentes pandêmicos e os firmados em condições normais.

Portanto, nas decisões, o cuidado que os magistrados poderão tomar para diferenciar o entendimento do período da pandemia e o período regular é destacar como fato material, ou como fundamento fático relevante, as imposições da quarentena. Por isso, repita-se, o ponto central é evitar decisões que não identifiquem, cuidadosamente, as circunstâncias fáticas que contribuíram para a decisão.

Ao que tudo indica, o Brasil passará a ter um conjunto de precedentes para o período de calamidade. Espera-se que, superada a Covid-19, esses precedentes não sejam utilizados nunca mais e que o futuro reserve circunstâncias fáticas mais favoráveis a todos. No entanto, se surgir uma nova situação de calamidade, o conjunto de precedentes firmados servirá para o próximo período. Por este motivo, com ou sem pandemia, é imprescindível que as decisões proferidas pelo Poder Judiciário sejam adequadamente fundamentadas.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFBA, UFC e UFMT).


AMAPAR. Covid-19: Juíza de Curitiba atende pedido para que companhia aérea altere datas de voo. Curitiba: Amapar, 2020. Disponível em: https://bit.ly/2UVcX1C Acesso em 23 de abril de 2020.

AMAPAR. Covid-19: Juiz de Bocaiúva do Sul determina substituição provisória para idoso cumprir pena em prisão domiciliar. Curitiba: Amapar, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3aV2lFN Acesso em 23 de abril de 2020.

AMAPAR. Covid-19: Juiz de Altônia defere tutela de urgência para que não ocorra a suspensão do fornecimento de luz elétrica a uma empresa que fabrica e comercializa alimentos. Curitiba; Amapar, 2020. Disponível em: https://bit.ly/2URDDR8 Acesso em 23 de abril de 2020.

AMAPAR. Covid-19: Juiz de Marechal Cândido Rondon determina isolamento de sete pessoas de uma família. Curitiba: Amapar, 2020. Disponível em: https://bit.ly/2RpDked Acesso em 23 de abril de 2020.

GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. Yale Law Journal, Yale, p.161-183, dez. 1930.

 é advogado; pós-doutorando pela UFRGS; doutor e mestre pela UFPR; professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Unibrasil; gastforscher no Max-Planck-Institut für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht; coordenador da Especialização de Direito Processual Civil da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst); e membro da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná (OAB/PR).