Categorias
Notícias

As crises têm duas faces: o sofrimento e o aprendizado

O mundo parou. Os humanos estão recolhidos e amedrontados. A economia preocupa e há quem diga que o ‘day after’ será mais difícil que o dia de hoje. Digladiam-se, ao invés de convergir, os que defendem a proteção da vida (isolamento social, redução de atividades) e os que defendem a proteção da economia (continuidade das atividades econômicas, proteção do emprego e da renda, proteção do trabalhador informal). Os cientistas buscam a origem da epidemia, vacinas que evitem e remédios que curem a doença: uma febre, mal estar, tosse seca que pode evoluir para uma séria pneumonia, bloqueio dos pulmões e morte por insuficiência respiratória. A doença é transmitida por contato pessoal, de pessoa a pessoa; e a rapidez com que se espalhou pelo planeta, país a país, e com que contaminou em poucos dias boa parte da população, surpreende.

Assim começava o meu último artigo em 28-3-2020[1], quando a realidade ainda não se havia mostrado por inteiro. Passados setenta dias do artigo, 120 dias desde a chegada do coronavirus ao Brasil, 615.000 infectados e 34.000 mortes aqui, vemos que algo diferente está acontecendo. Os bilhões de dólares gastos anualmente em armas e equipamentos de destruição são incapazes de destruir esse pequeno, vulnerável vírus que, se não contido por vacinas ou medicamentos, ou se não criarmos anticorpos, se trasformará em uma das maiores ameaças aos humanos desde a nossa criação.

As crises têm duas faces, o sofrimento e o aprendizado; há os que ficam só no sofrimento e carregam essa amargura pelo resto da vida, e há os que aprendem com ele, revendo e mudando para algo melhor. É preciso pensar no futuro, no que teremos amanhã e nos dilemas que vamos enfrentar. O primeiro deles é uma compreensão maior do que seja o desenvolvimento sustentável de que falamos em 13-4-2019[2], um triângulo que se assenta sobre o lado que prevalece a cada momento: o ambiental, ou o social, ou o econômico, conforme a preocupação e a atividade que se pretende realizar; e o dilema consiste na difícil convivência entre os três aspectos, uma vez que a prevalência de um implica, de algum modo, no sacrifício menor ou maior dos outros.

Ultrapassada a pandemia, pois há de passar um dia, corre-se o risco de dar maior atenção aos aspectos social e econômico, degradando e reduzindo mais o planeta já exaurido e o que resta das áreas preservadas[3]; de demonstrar maior precupação com o ‘desenvolvimento’ que com o ‘sustentável’. A preocupação é real, pois a noção de desenvolvimento está ligada a crescimento e progresso, reduzidos por muitos ao aspecto econômico e material, um maior nivel de vida; sendo um ‘crescimento’ e sendo essa a percepção da sociedade, acabamos formando um sistema social e econômico que implica em uma expansão contínua da população e do consumo, em que a redução das desigualdades (redução necessária, diga-se) implica em maior uso dos recursos naturais e no futuro esgotamento do que existe hoje. Não falo do futuro de nós que estamos aqui agora, mas do futuro da humanidade (já pensaram que 15.000 anos se passaram desde o início da agricultura, que molda nossa sociedade, e 6.000 anos desde a construção das primeiras pirâmides?); das futuras gerações e da vida no planeta pelos próximos mil anos, para não dizer mais.

‘Sustentável’ é o que se mantém constante, estável por um longo período; não casa bem com o desenvolvimento, que implica em crescimento e progresso. ‘Sustentável’ implica em equilíbrio, em uma consciência não romântica da realidade, em uma visão do futuro que não temos visto nos dias de hoje; o desenvolvimento será sustentável se, e apenas se, coordenar com sabedoria as suas três vertentes, dando prevalência à proteção do meio ambiente que estava aqui antes de nós e do qual dependemos para continuar a estar aqui no futuro. A pandemia, mais uma zoonose ligada à degradação dos habitats naturais e à interferência humana na vida silvestre, exige a consideração adequada do desenvolvimento que queremos, e por quanto tempo queremos.

Posto isso, podemos tirar algumas lições da pandemia em uma relação singela que não exclui, naturalmente, outras não citadas e outras que surgirão com a evolução dessa crise. Uma, a certeza de que a estreita ligação entre a degradação do meio ambiente e o aparecimento das zoonoses implica em novas pandemias em um futuro próximo. Uma pequena história das pandemias: a peste negra, 50 milhões de mortos, Europa e Ásia, 1333 a 1351, uma bactéria transmitida para o homem pela pulga de ratos; a cólera, centenas de milhares de mortos, 1817 a 1824, transmitida por água e alimentos contaminados; a tuberculose, um bilhão de mortos, 1850 a 1950, transmitida por um bacilo; a varíola, 300 milhões de mortos, 1896 a 1980, transmissão pessoa a pessoa pelas vias respiratórias; a gripe espanhola, 20 milhões de mortos, 1918 a 1919, transmitida por um vírus em gotas de saliva e espirros; o tifo, 3 milhões de mortos, Europa Oriental e Rússia, 1918 a 1922, transmitido por uma bactéria trazida por pulgas e presente em países do terceiro mundo, campos de refugiados, guerras; a febra amarela, 30.000 mortos, Etiópia, 1960 a 1962, presente nas Américas, transmitida por um mosquito; o sarampo, 6 milhões de mortos até 1963, transmitido por um vírus em secreções mucosas como a saliva de indivíduos doentes, dando sinais de retorno no Brasil; a malária, 3 milhões de mortos por ano, desde 1980, transmitida por um protozoário em picadas do mosquito ‘anopheles’, a pior doença tropical e parasitária da atualidade; a AIDS, 22 milhões de mortos desde 1981, transmitido pelo vírus HIV através do sangue, do esperma, da secreção vaginal e do leite materno[4].

Nos últimos trinta anos, para citar as mais relevantes, tivemos a SARS ou Síndrome Aguda Respiratória Grave, identificada em 2003, transmitida pelo vírus SARS-CoV, do origem animal (morcegos), que afetou 26 países com mais de 8.000 infecções; a MERS ou Síndrome Respiratória do Oriente Médio, transmitida pelo vírus MERS-CoV, identificado na Arábia Saudita em 2012 em camelos e dromedários, com surto também nos Emirados Árabes e na Coréia do Sul[5]; e agora a COVID-19, transmitida por um novo tipo de coronavirus, de origem animal (morcegos), de fácil transmissão pessoa a pessoa, já presente em 215 países, com 6.800.000 infectados, 397.000 mortos e 3.310.000 recuperados[6]. O aumento exponencial das pandemias e epidemias e sua ligação com o modo como tratamos o meio ambiente não pode ser ignorado.

A rápida disseminação da doença é diretamente relacionada à movimentação das pessoas e fauna silvestre por países e continentes; decorre do modo de vida que criamos e que, como trouxe essa, disseminará com rapidez a próxima pandemia.

A forma e a rapidez da transmissão trouxeram uma sensação, uma percepção nova e assustadora; o ‘inimigo’ não é mais algo externo, mas a outra pessoa, em especial aquelas próximas de nós. Não sabemos como a sociedade vai lidar com isso e precisaremos encontrar uma forma nova de contato humano.

A noção de que a ciência não pode tudo. Temos desdenhado dos problemas e dos desafios que nós mesmos criamos dizendo que a ciência e a tecnologia encontrarão uma solução; e tem de fato solucionado muitos deles com a evolução da medicina, da produção de alimentos, da produção industrial. Mas ainda não compreendeu o ciclo de vida desse vírus que morre com água e sabão, como ele atua no organismo, qual a melhor forma de combatê-lo; e não nos protege das zoonoses futura, que deixam esse rastro de morte e sofrimento. Não dá para desafiar a natureza indefinidamente, irresponsavelmente como temos feito.

Mais uma, o vírus fez transparecer a desigualdade social, a ausência de saneamento, a precária urbanização, o problema dos aglomerados urbanos; e ligando todos os pontos, da degradação ambiental ao exaurimento do planeta e à desigualdade social, o aumento exponencial, enorme, dos humanos na Terra, uma realidade que a nossa sociedade se recusa a discutir ou enfrentar.

Como mencionei no início deste artigo, as crises produzem sofrimento e aprendizado. O maior aprendizado talvez seja a humildade, ver o planeta de joelhos, parado, frente a esse pequeno e frágil vírus que desdenha e ignora a nossa arrogância, a realidade se impondo aos nossos sonhos, preconceitos, ideologias, expectativas. Há muito que fazer.

Categorias
Notícias

A pandemia, os humanos e a natureza

“O mundo parou. Os humanos estão recolhidos e amedrontados. A economia preocupa e há quem diga que o day after será mais difícil que o dia de hoje. Digladiam-se, ao invés de convergir, os que defendem a proteção da vida (isolamento social, redução de atividades) e os que defendem a proteção da economia (continuidade das atividades econômicas, proteção do emprego e da renda, proteção do trabalhador informal). Os cientistas buscam a origem da epidemia, vacinas que evitem e remédios que curem a doença: uma febre, mal-estar, tosse seca que pode evoluir para uma séria pneumonia, bloqueio dos pulmões e morte por insuficiência respiratória. A doença é transmitida por contato pessoal, de pessoa a pessoa; e a rapidez com que se espalhou pelo planeta, país a país, e com que contaminou em poucos dias boa parte da população surpreende.

Assim começava o meu último artigo, em 28 de março [1], quando a realidade ainda não se havia mostrado por inteiro. Passados 30 dias do artigo, 90 dias desde a chegada do coronavírus ao Brasil, 135 mil infectados e dez mil mortes aqui, vemos que algo diferente está acontecendo. Os bilhões de dólares gastos anualmente em armas e equipamentos de destruição são incapazes de destruir esse pequeno, vulnerável vírus que, se não contido por vacinas ou medicamentos, ou se não criarmos anticorpos, se transformará em uma das maiores ameaças aos humanos desde a nossa criação.

Em 1972, assisti por acaso no Cine Bijou, um pequeno cinema de arte situado na Praça Roosevelt, em São Paulo, que há muito deixou de existir, a um filme denominado “A Crônica de Hellstrom” [2]; o filme não fez muito sucesso na ocasião e, segundo sei, nunca foi exibido depois, embora tenha me impressionado tanto que dele me lembro após todos esses anos. Seu tema, nada romântico e com cenas impressionantes do mundo natural (a vida depende da morte), cuida da batalha diária pela sobrevivência e conclui que das milhões de espécies que popularam a Terra apenas duas sobreviveram e aumentaram a própria população após as diversas hecatombes de nossa história geológica: os insetos (e aqui incluo, para o efeito deste artigo, os vírus, as bactérias e quetais) e os humanos. O filme anota que a sobrevivência dos dois decorre de uma especial adaptação às mudanças que ocorreram na planeta, e que sobreviverá quem melhor se adaptar às mudanças ainda por vir. Não conto o final da batalha para não estragar o interesse de quem se animar a ver o filme.

Desmond Morris em “O Macaco Nu” (nós), escrito por um biólogo, zoólogo e etólogo, escreveu: “Sou zoólogo e o macaco pelado é um animal. É, portanto, caça ao alcance de minha pena e recuso-me evitá-lo mais tempo, só porque algumas de suas normas de comportamento são bastante complexas e impressionantes. A minha justificativa é que, apesar de ter se tornado tão erudito, o homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e comezinhas. Isso causa-lhe muitas vezes certo embaraço, mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais recentes não têm mais de alguns milhares de anos e não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução” [3].

Os humanos nasceram e evoluíram na natureza. Mas o que é “a natureza” de que tratamos? Como se vê em uma busca rápida na internet, “Latim, naturacomp. pelo tema natus, p.pass. de nascere = nascer e urus = sufixo do particípio futuro de oritur = surgir, gerar, a força que gera. Aquilo que surge, que se dá por nascimento. Aquilo que é e faz por nascimento segundo leis universais aplicadas a um preciso contexto. Ordem ou sistema de leis que precedem a existência das coisas e a sucessão dos seres. O conjunto de todos os seres que compõem o universo” [4]. A natureza é a força que gera a ordem ou sistema de leis que precedem a existência das coisas e a sucessão dos seres; a natureza não “nasce”, mas é nela, segundo suas regras, que coisas e seres nascem, vivem e morrem.

A natureza contém as regras que regulam a formação das galáxias, estrelas, planetas e tudo que é contido no Universo; mas é a natureza na Terra que nos preocupa. Não adentro a discussão da presença de Deus na criação da natureza, própria a outro momento e local; basta-nos aqui anotar a existência de regras que precedem a existência das coisas que existem, inclusive a vida, lembrando a sedutora Hipótese ou Teoria Gaia de James Lovelock, segundo a qual a Terra é um organismo vivo com suas regras, nas quais nos movimentamos [5]. Uma dessas regras é o equilíbrio, que sempre retorna após rompido, ainda que em uma relação diferente da anterior.

Assim são as coisas inanimadas, que após o terremoto voltam a imobilizar-se em outra posição. Assim são as coisas vivas, que dependem da conversão de energia e não podem consumir mais do que a energia disponível: as plantas convertem em energia o sol, o carbono do ar, os nutrientes do solo; são a fonte de energia de animais, insetos, micróbios que delas vivem, que são a fonte de energia de outros seres que deles se alimentam, até o topo final da cadeia alimentar. O desequilíbrio implica na adequação de toda a cadeia alimentar, com a extinção de alguns, a alteração de outros, a chegada de seres novos, até que se estabeleça um novo equilíbrio em um movimento lento, próprio à evolução e aos processos naturais.

O equilíbrio foi rompido pelos humanos ao desenvolver uma forma de vida fora desse tempo e dessas regras, como anota Jared Diamond (em tradução livre): “Na maior parte dos seis milhões de anos da evolução humana, todos os humanos e proto-humanos viveram como um tipo diferenciado de chimpanzés, em uma população de baixa densidade espalhada pela paisagem como famílias ou pequenos bandos. Apenas nos últimos seis mil anos, uma pequena fração da histórias humana, alguns de nossos antepassados se juntaram em cidades. Mas hoje mais da metade da população do mundo vive nesses novos locais, alguns com dezenas de milhões de habitantes” [6].

Esse crescimento da população humana implicou na apropriação de parte cada vez maior do mundo natural através do desenvolvimento de novas formas, ou técnicas, de conversão de energia: a caça e a extinção das espécies desde a pré-história, a agricultura e a pecuária, a conversão de matas para a produção de alimentos, de bens e para a criação de cidades. Esse desequilíbrio terá um fim, pois como visto acima a natureza caminha sempre para o equilíbrio, com uma ordem diferente desta que conhecemos.

Curiosamente, a parte mais antiga da vida no planeta é pouco conhecida por nós e está em nosso entorno, inclusive no ar que respiramos, como anota Nathan Wolfe depois de 15 anos de pesquisa sobre micróbios (em tradução livre): “Como resultado, comecei a pensar no ar como o meio para a próxima pandemia, mais que um modo de sustento da vida. Mas respire sem medo: a maioria dos micróbios no ar nos causa pouco ou nenhum mal, e alguns certamente nos faz bem. A verdade é, nós ainda sabemos muito pouco sobre eles” [7]. Esse pouco conhecimento é manifesto no caso da Covid-19, como informa Nísia Trindade, presidente da Fiocruz: “Nossos estudos já apontam mutações que é uma característica dos vírus. Mas ainda estamos estabelecendo correlações entre essas mutações e o tipo de manifestações clínicas relacionada. Não quero causar pânico, mas esse vírus é um grande desconhecido, um estrangeiro” [8].

Sabemos que as pandemias têm origem na transmissão de vírus por animais e pássaros, as chamadas zoonoses, e que essa transmissão vem ocorrendo com mais facilidade por causa da redução dos habitats, pelo contato de espécies que antes pouco ou não se encontravam e pelo contato dessas espécies com os humanos, como decorre do tráfico de animais, dos mercados de animais vivos, da proximidade dos humanos com a natureza de que se separou; decorrem das intervenções mal pensadas e do simples crescimento exponencial dos humanos, de uma forma de vida perdulária e da perda de respeito pela natureza.

Não basta aprender mais sobre os micróbios, pois eles e os insetos continuarão sua rápida mutação e a transmissão de doenças; a simples multiplicação da nossa população, somada às mudanças climáticas, à destruição dos habitats e das espécies, trará novas pandemias e novas crises. A tecnologia e a ciência têm limites e lembro se desenvolvem na natureza, dentro da natureza, cujas regras não prevalecem contra as regras da natureza. É preciso que os humanos vejam o que está à sua volta e repensem a estrutura maior em que estão inseridos, deixem de lado a arrogância do nosso aparente sucesso e lembrem que essa nossa forma de vida não apaga, como disse Desmond Morris, que “o macaco pelado é um animal” que não submete a natureza, mas a ela está submetido.

Retorno à crônica de Hellstrom. A dimensão da pandemia causada por um pequeníssimo vírus nos força a enfrentar perguntas que evitamos no dia a dia e a pensar em nossa espécie e em nosso planeta, decidindo agora o que vai moldar a vida dos humanos que ainda não nasceram. Difícil? Sim, mas necessário, pois a natureza não reclama, ela se vinga.