Categorias
Notícias

Fiscalização e sanções ambientais na Lei Complementar 140/2011

A Lei Complementar nº 140/2011 regulamentou os incisos III, VI e VII do artigo 23 da Constituição da República, nos termos do que determinou o parágrafo único do dispositivo citado, fixando normas para o exercício da competência administrativa em matéria ambiental entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios. Desde a edição da Lei nº 6.938/81, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente, essa modalidade de competência em matéria ambiental sempre envolveu dois aspectos distintos: a fiscalização e o licenciamento ambiental.

Embora houvesse o posicionamento minoritário defendendo que somente o órgão licenciador poderia fiscalizar a atividade por ele licenciada, a maior parte da doutrina e da jurisprudência sempre entendeu que o direito de fiscalização era amplo e irrestrito. Pouco importava o ente federativo que concedeu a licença ambiental, o empreendimento poderia ser fiscalizado pela União, pelo estado ou pelo município, seja de forma simultânea ou não.

O incico VI do parágrafo 1º do artigo 225 da Carta Magna dispõe que para garantir o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado cabia ao Poder Público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”, entre outras medidas a serem adotadas. Com efeito, é consenso que quanto mais a atividade de fiscalização for ativa, mais efetiva será a defesa do meio ambiente.

Não foi por outra razão que o artigo 23 da Lei Fundamental determinou, nos seus incisos III, VI e VII, respectivamente, a competência comum dos entes federativos para “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”, “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” e “preservar as florestas, a fauna e a flora”. A própria Lei 6.938/81, que até a edição da Lei Complementar nº 140/2011 não reconhecia expressamente a competência dos municípios para fazer licenciamento ambiental, sempre reconheceu o papel destes entes federativos na fiscalização em função do que disciplinava o inc. VI do artigo 6º.

Impende dizer que o ato de fiscalizar implica a obrigação de impor sanções administrativas, a exemplo de advertência, apreensão, embargo ou multa, caso alguma infração seja identificada. Afinal de contas, de nada adiantaria possuir poder de polícia para fiscalizar sem a possibilidade de aplicar as penalidades correspondentes.

Já a competência para licenciar na prática sempre foi atribuída a um único ente federativo, a despeito de certas divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Em linhas gerais, a justificativa é que o procedimento é caro, exige alta complexidade técnica e ainda não está sendo disponibilizado a contento pelo Poder Público, tendo em vista o grande número de atividades que deveria ser licenciada e não é por falta de estrutura dos órgãos responsáveis.

Ocorre que essa dúplice competência administrativa também gerou inúmeros conflitos, uma vez que o ente discordava do licenciamento feito pelo outro aplicando embargo e multa em uma atividade que, ao menos na visão do órgão licenciador, atendia a todos os padrões de qualidade legalmente estabelecidos. Por exemplo, o órgão meramente fiscalizador entendia que o órgão licenciador se equivocou ao conceder a licença ambiental para determinada atividade, seja porque ela não deveria ter sido concedida naqueles termos ou porque não poderia ter sido concedida de maneira alguma, o que fazia com que a contenda terminasse no Poder Judiciário – que, por sua vez, prolatava as mais variadas e contraditórias decisões.

Isso era um desrespeito à autonomia do ente federativo licenciador, pois, na prática, o ente meramente fiscalizador tentava determinar como poderia e como não poderia ser feito o licenciamento ambiental, interferência muito comum da União para com os estados e destes para com os municípios. Para acabar com tais embates a Lei Complementar 40/2011 procurou, em um primeiro momento, vincular a atribuição de fiscalizar a competência para fazer licenciamento ambiental.[1]O inciso XIII do artigo 7º da lei citada determina que cabe à União controlar e fiscalizar as atividades cuja atribuição para licenciar seja federal, ao passo que o inciso XIII do artigo 8º dispõe o mesmo em relação aos estados e o inciso XIII do artigo 9º o mesmo em relação aos municípios, de maneira que o poder de polícia para fiscalizar teria sido limitado aos próprios órgãos licenciadores. Nesse sentido, o caput do artigo 17 dispõe que “compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada”, corroborando a ideia de que somente quem é competente para licenciar pode impor sanções administrativas, as quais são decorrentes do ato de fiscalizar.

O problema é que o parágrafo 3º do dispositivo em questão estabelece que “o disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput”, o que, em tese, contrariaria os demais dispositivos mencionados ao abrir margem para que qualquer ente federativo possa fiscalizar e sancionar qualquer atividade. Contudo, cumpre esclarecer que na técnica legislativa a função do parágrafo é complementar o caput de forma aditiva ou restritiva, o que parece ter ocorrido no caso sob análise.

O parágrafo 3º é claro ao estabelecer a competência comum para fiscalização, independentemente da responsabilidade pelo licenciamento, o que contribui mais para a concretização do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado consagrado no caput do artigo 225 e guarda maior consonância com o federalismo cooperativo previsto no artigo 23 da Constituição da República. A dúvida se cingiria à possibilidade ou não de lavratura de auto de infração por parte de órgão não licenciador, já que a redação seria um pouco reticente a esse respeito.

Entretanto, o parágrafo 2º também é claro ao determinar que os entes federativos podem impor sanções administrativas aos empreendimentos não licenciados por ele “Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental”, com a diferença de que tais penalidades possuem um caráter acessório e transitório no que diz respeito à atuação do ente licenciador em função do que determina o parágrafo 2º. Em outras palavras, o auto de infração lavrado valerá apenas até que o órgão responsável pelo licenciamento ambiental tome posição em relação à penalidade aplicada, seja ele mesmo lavrando o seu auto de infração, seja atestando a legalidade da atividade autuada, de maneira que há uma prevalência das sanções aplicadas pelo órgão licenciador, entendimento que o STF apontou na STA nº 286/BA mesmo antes da edição da lei complementar.[2]Se o ente federativo licenciador confirmar a regularidade do empreendimento, o ente meramente fiscalizador não poderá mais adotar qualquer medida administrativa, tendo em vista que nessa esfera prevalece o entendimento do responsável pelo licenciamento ambiental.[3] Caso o órgão fiscalizador mantenha a sua discordância, poderá encaminhar denúncia ao Ministério Público ou levar o caso ele mesmo ao Poder Judiciário, já que a Lei nº 7.347/85 lhe atribuiu legitimidade para tanto.

O ente fiscalizador é obrigado a tomar essas medidas mais drásticas, sob pena de ser considerado conivente com eventual irregularidade ambiental a ser identificada posteriormente, podendo ser enquadrado por improbidade administrativa ou por crime ambiental. O intuito disso é construir uma compreensão que garanta a um só tempo a efetividade da defesa do meio ambiente e a segurança jurídica do setor produtivo, promovendo o desenvolvimento sustentável.

Não é por outra razão que a Procuradoria Geral do Ibama aprovou a Orientação Jurídica Normativa nº 49/2013 (OJN nº 49/2013/PFE/Ibama), determinando a prevalência do entendimento do órgão estadual de meio ambiente, bem como da obrigação do Ibama de notificar o órgão estadual:

Em razão do estabelecimento, pelo legislador, de critério de prevalência, é possível concluir que, em nenhuma hipótese, deve-se admitir a prevalência da opinião técnica do órgão fiscalizador supletivo sobre a do órgão licenciador-fiscalizador primário, seja na situação de lavratura de dois autos de infração pela mesma hipótese de incidência, seja na situação em que o segundo, cientificado pelo primeiro da lavratura do AI, dele discorda e justifica, tecnicamente, posição pela inocorrência da infração. A literalidade da norma, em conjunto com o Princípio da Eficiência na Administração Pública, aplicável ao caso, não admitem entendimento diverso.

Enquanto inexistir qualquer posicionamento formal do órgão licenciador, as sanções impostas pelo órgão meramente fiscalizador poderão continuar em vigor, em função do caráter autoexecutório das medidas tomadas com base no poder de polícia. De qualquer forma, é importante que os órgãos ambientais procurem atuar de maneira harmônica

A segunda opção de autuação do ente não licenciador é a omissão ou falta de estrutura comprovada do ente licenciador, o que ensejaria a atuação supletiva nos termos do inc. II do art. 2º. Nada obstante, vale dizer que essa omissão ou falta de estrutura deve ser comprovada, não podendo ser presumida[4].

Indicações bibliográficas sobre o tema:

BEZERRA, Luiz Gustavo Escorcio; GOMES, Gedham Medeiros. Lei Complementar n. 140/2011 e fiscalização ambiental: o delineamento do sancionador primário. Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 4, 2017.

BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento ambiental. 5. ed. Fórum: 2020.

Nascimento, Sílvia Helena Nogueira Competência para o licenciamento ambiental na Lei Complementar n. 140/2011. São Paulo: Atlas, 2015.

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel da. Reflexões sobre a Lei Complementar 140/2011: cooperação dos entes federativos em prol de um ambiente equilibrado. Federalismo cooperativo ambiental no Brasil: breves notas sobre a Lei Complementar 140/2011. RIDB, Lisboa, ano 5, n. 3, 2019.

TEIZEN, Thaís. Atividade fiscalizatória ambiental na vigência da Lei Complementar n. 140/2011. Dissertação de mestrado em Direitos Difusos e Coletivos, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.

THOMÉ, Romeu. Comentários sobre a nova lei de competências em matéria ambiental (LC 140, de 08.12.2011). Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 66, 2012.

TRENNEPOHL, Curt; TRENNEPOHL, Terence; TRENNEPOHL, Natascha. Infrações ambientais: comentários ao Decreto 6.514/2008. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

 é advogado, professor da UFPB e da UFPE e doutor em Direito da Cidade pela UERJ. Autor de “Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos” (7. ed. Fórum, 2019).

Categorias
Notícias

Covid-19, mudança do clima e perda da biodiversidade

A Covid-19, sem dúvida alguma, é a maior chaga humanitária que o mundo já experimentou desde a Segunda Grande Guerra Mundial e será responsável pela maior crise econômica desde a Grande Depressão. A perspectiva de retração da economia mundial é de 3% até o final de julho, e ainda pode agravar-se. Assim não fosse, a pandemia, segundo Lawrence Summers, juntamente com os ataques terroristas ao World Trade Center (11 de setembro de 2001) e a Crise de 2008, faz parte dos três maiores choques globais do Século 21, sendo de longe o mais significativo.[1] As práticas utilitárias, o rentismo e os investimentos das nações na indústria dos combustíveis fósseis, armamentista, de produção de bens supérfluos e não essenciais acabou alocando trilionários recursos financeiros que seriam necessários para pesquisas aptas ao descobrimento de vacinas contra os vírus do estilo corona e, especialmente, para a fabricação de um antirretroviral de amplo espectro para o tratamento de pandemias como a atual.

Falta nos governos das nações e nos grandes grupos econômicos uma noção de solidariedade, de pertencimento e de uma cultura que pregue a resiliência para a vida neste novo normal. Aliás, não raras vezes, também falta prudência, serenidade e a necessária sensatez. Qualidades essas essenciais para o homem político idealizado por Aristóteles e imprescindíveis para o estadista pós-moderno inserido em uma sociedade de risco.

Relevante é o pensamento de cunho altruísta e generoso, capaz de responder aos desastres e as catástrofes humanitárias com base em constatações científicas, valendo-se de avanços tecnológicos. Este pensamento, justamente, guardado o distanciamento temporal, foi a base do Plano Marshall para reconstruir as nações e as economias arruinadas após a Segunda Guerra Mundial. A própria Organização das Nações Unidas foi criada neste cenário de reconstrução, pois é das crises que podem surgir os grandes avanços e as mudanças necessárias para a evolução da humanidade.

As externalidades negativas da pandemia, decorrente de uma zoonose[2], não são apenas econômicas, é bom que se grife, mas humanas, sociais, ambientais e políticas. Profundas são as chagas já deixadas pelo vírus que instalou-se na espécie humana via spillover.[3]

A ausência de observância dos princípios da precaução e da prevenção no plano internacional é a causa da dimensão alcançada pela Covid-19 globalmente.[4] Nações que adotaram medidas precautórias e preventivas estão sofrendo menos do que aquelas que realizaram um balanceamento entre o humano e o econômico e optaram pelo segundo, em uma visão de curto prazo. Caíram na armadilha do risco que abocanha e devora, sem nenhuma dificuldade, os pensamentos utilitários e imediatistas. Vieses, com efeito, são armadilhas perigosas nas decisões dos incautos nas políticas públicas. E o açodamento, não raras vezes, pode ser fatal e gerador do caos sem precedentes e de consequências imprevisíveis.[5]

A resposta contra a pandemia deve ser imediata, com uma perspectiva intergeracional, com o perdão da redundância, de longo prazo.[6] No momento, cabe aos governos informar à população sobre os riscos de contágio e da doença em si e buscar o achatamento das curvas de contaminação e das mortes priorizando a vida humana de acordo com as orientações da Organização Mundial de Saúde e com as disposições do Regulamento Sanitário Internacional (RSI).[7]

Não se pode perder de vista que existem outras duas questões que precisarão ser enfrentadas com seriedade, por precaução e prevenção: o aquecimento global e a perda da biodiversidade. Quase um milhão de espécies da fauna e da flora podem ser extintas nos próximos anos[8] e a mudança climática vai aumentar a intensidade e a frequência de eventos extremos como secas, enchentes, ciclones, furacões, precipitações e o aumento dos oceanos com devastadoras consequências sociais, ambientais e econômicas.[9] Uma visão obscurantista, pré-medieval e de negação da ciência não é a solução, aliás, esta linha de pensamento, destituído do necessário equilíbrio, nos colocou nesta situação periclitante e de ampliação dos mega riscos.

A Organização Meteorológica Mundial divulgou recentemente dados preocupantes, mostrando que as temperaturas já aumentaram 1,1 graus centígrados acima dos níveis pré-industriais (1750).[10] Vivemos em um novo antropoceno, cujas consequências para a espécie humana são imprevisíveis. A Terra não necessita dos seres humanos, mas os seres humanos necessitam do meio ambiente, dos ecossistemas e dos serviços ambientais.[11] É intuitivo, chegando as raias da obviedade, que o desequilíbrio climático e ambiental pode levar a maior incidência e intensidade desta e de novas pandemias.

Abordar a mudança climática, a perda da biodiversidade e a Covid-19 simultaneamente e em escala suficiente requer uma resposta de governança efetiva na tutela da vida humana e não humana e dos correspondentes meios de subsistência. Nesta crise, salta aos olhos a real oportunidade para a construção de economias e de sociedades mais sustentáveis, menos egocêntricas, e mais inclusivas.

Aliás, a Agência Internacional de Energia Renovável divulgou dados que mostram que a transformação dos sistemas de energia poluente para limpa poderia impulsionar o PIB global para US$ 98 trilhões até 2050, gerando um aumento de 2,4% no mesmo se comparado aos padrões atuais de desenvolvimento carbonizado. Aumentar os investimentos em energia renovável, por si só, adicionaria 42 milhões de empregos em todo o mundo, e geraria uma economia em saúde oito vezes maior do que o custo do investimento e, assim, por certo, futuras crises seriam evitadas.[12]

Neste sentido, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, propôs, recentemente, seis ações positivas, em termos climáticos, para os governos considerarem em projetos de reconstrução das economias e da organização social após o fim desta primeira onda de pandemia da Covid-19:

Primeiro: como gastamos trilhões para nos recuperar do Covid-19, precisamos criar novos empregos e negócios por meio de uma transição limpa e verde. Os investimentos devem acelerar a descarbonização em todos os aspectos de nossa economia.

Segundo: onde o dinheiro dos contribuintes resgata empresas, ele deve criar empregos verdes, de crescimento sustentável e inclusivo. Não deve ser usado para salvar indústrias poluentes e de uso intensivo de carbono, sabidamente ultrapassadas.

Terceiro: o poder de fogo fiscal deve mudar as economias de cinza para verde, tornando as sociedades e as pessoas mais resilientes por meio de uma transição justa para todos e que não deixe ninguém para trás.

Quarto: os fundos públicos devem investir no futuro, fluindo para setores e projetos sustentáveis que ajudam o meio ambiente e o clima. Os subsídios aos combustíveis fósseis devem terminar e os poluidores devem pagar por sua poluição.

Quinto: O sistema financeiro global, quando molda políticas de infraestrutura, deve levar em consideração os riscos e as oportunidades relacionados ao clima. Os investidores não podem continuar ignorando o preço que nosso planeta paga por um crescimento insustentável.

Sexto: Para resolver ambas as emergências, precisamos trabalhar juntos como uma comunidade internacional. Como o coronavírus, os gases de efeito estufa não respeitam limites. O isolamento é uma armadilha. Nenhum país pode ter sucesso sozinho.[13]

Absolutamente lúcida e correta a colocação de Guterres, uma luz, ante os obscurantismos alimentados por fake news e contaminados por debates polarizados, com argumentos pré-secularizados, isolacionistas[14], que servem apenas para aumentar a desagregação no tecido social da humanidade e vulnerabilizar o princípio da fraternidade.[15]

O Estado Socioambiental de Direito, por fim, no âmbito das suas três funções (executiva, administrativa e judicial), deve, observados os princípios da precaução e da prevenção, priorizar à vida ao lucro; a visão de longo prazo ao imediatismo; o público ao privado; o comunitário ao utilitário: e, a generosidade à avareza. A experiência do combate à pandemia da Covid-19 deve fornecer, de modo integrado e integrador, com erros e acertos, as lições necessárias para o enfrentamento das crises do aquecimento global e da perda da biodiversidade em que estamos igualmente imersos e que irão, sem sombra de dúvida, caminhar para um agudo agravamento se nada for feito nos próximos anos.

A guinada da economia calcada nos combustíveis fósseis para a economia verde, movida pelas energias renováveis, precisa ocorrer imediatamente, observados os compromissos assumidos pelos signatários do Acordo de Paris e, igualmente, os 17 objetivos e as 179 metas da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. O engajamento das nações, da sociedade, das empresas e dos indivíduos é fundamental para a concretização de um mundo descarbonizado e rico (no aspecto da qualidade de vida e da felicidade) nestes tempos incertos de mudança do clima, de perda da biodiversidade e de pandemia.

[1] SUMMERS, Lawrence. Covid-19 looks like a hinge in history. In: Financial Times. Disponível em: https://www.ft.com/content/de643ae8-9527-11ea-899a-f62a20d54625. Acesso em: 15.05.2020.

[2] WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO recommendations to reduce risk of transmission of emerging pathogens from animals to humans in live animal markets or animal product markets. Disponível em: https://www.who.int/health-topics/coronavirus/who-recommendations-to-reduce-risk-of-transmission-of-emerging-pathogens-from-animals-to-humans-in-live-animal-markets. Acesso em: 15.05.2020.

[3] Sobre o fenômeno do spillover, ver o clássico: QUAMMEN, David. Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic. New York :W.W. Norton & Company, 2012.

[4] Para uma visão mais aprofundada do princípio da precaução na era das mudanças climáticas e do aumento das catástrofes, ver: WEDY, Gabriel. O princípio constitucional da precaução: como instrumento de tutela do meio ambiente e da saúde pública (de acordo com o direito das mudanças climáticas e o direito dos desastres).3a. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020.

[5] Sobre os vieses comportamentais, ver: KAHNEMAN, Daniel. Thinking, Fast and Slow. New York: Farrar, Strasuss e Giroux, 2011.

[6] KRUGMANN, Paul. The Covid-19 Slump Has Arrived. In: The New York Times. https://www.nytimes.com/2020/04/02/opinion/coronavirus-economy stimulus.html?searchResultPosition=5. Acesso em: 10.04.2020.

[7] Desde o início da pandemia do novo coronavírus, os países têm tomado várias iniciativas para conter o avanço da doença. A maioria delas são baseadas no diploma mais importante no âmbito do direito internacional no combate as pandemias, o Regulamento Sanitário Internacional (RSI). Esse documento indica em quais situações se deve tomar medidas como a restrição nas fronteiras ou a quarentena, por exemplo.O RSI é um instrumento jurídico internacional vinculativo para 196 países, que inclui todos os Estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) — entre os quais, o Brasil. O documento estabelece conceitos e ferramentas a serem usados pela comunidade internacional para detectar precocemente e responder aos graves riscos à saúde pública que têm o potencial de atravessar fronteiras e ameaçar os seres humanos em todo o mundo.

[8] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Onu mostra que 1 milhão de espécies de animais e plantas enfrentam riscos de extinção. Disponível em: https://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-mostra-que-1-milhao-de-especies-de-animais-e-plantas-enfrentam-risco-de-extincao/. Acesso em:23.07.2019.

[9] UNITED NATIONS ENVIRONMENTAL PROGRAMME – (UNEP). Intergovernmental Panel on Climate Change. Global Warming of 1,5C. Disponível em: http://www.ipcc.ch/report/sr15/. Acesso em: 22.04.2020.

[10] WORLD METEOROLOGICAL ORGANIZATION. Earth Day highlights Climate Action. Disponível em: https://public.wmo.int/en/media/press-release/earth-day-highlights-climate-action. Acesso em: 14.05.2020.

[11] Ver: LOVELOCK, James. A Rough Ride to the Future. London: Penguin Group, 2014. p. 169.

[12] INTERNATIONAL RENEWABLE ENERGY AGENCY.
Renewable Energy Can Support Resilient and Equitable Recovery. Disponível em: https://www.irena.org/newsroom/pressreleases/2020/Apr/Renewable-energy-can-support-resilient-and-equitable-recovery. Acesso em: 14.05.2020.

[13] GUTERRES, António. A Time to Save the Sick and Rescue the Planet. In: The New York Times. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/04/28/opinion/coronavirus-climate-antonio-guterres.html?smid=fb-share&fbclid=IwAR0TBid8sUXgpBuc_zWkC_W-HDGajG-Da0DT6uJTuIvbXzJzGwl5L9OSUoM. Acesso em: 14.05.2020.

[14] Joseph Stiglitz defende uma ação conjunta e coordenada das nações para o combate à pandemia. WORLD ECONOMIC FORUM. World Leaders Must Unite in Tackling COVID-19, says Joseph Stiglitz. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2020/04/internationalizing-coronavirus-covid19-globalization-leadership. Acesso em: 10.04.2020.

[15] Sobre o princípio da fraternidade e sua relevância, consultar a recente e paradigmática obra do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca (STJ): FONSECA, Reynaldo Soares da. O princípio constitucional da fraternidade: seu resgate no sistema de justiça. Belo Horizonte: D’Plácido, 2019.

 é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, “Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças
Climáticas: um direito fundamental”.

Categorias
Notícias

Opinião: O 13º salário e a Medida Provisória nº 936

A profusão de medidas legislativas decorrentes da pandemia da Covid-19 tem trazido aos profissionais do Direito do Trabalho e de recursos humanos uma série de dúvidas quanto aos efeitos práticos das medidas instituídas pelo governo nos contratos de trabalho, especialmente em razão das regras criadas pelas Medidas Provisórias nº 927 e nº 936.

Recentemente, fomos questionados por empregadores quanto à contagem do período de suspensão do contrato para efeitos de pagamento do 13º salário. De início, poderia se supor que o período de suspensão do contrato de trabalho com base na MP nº 936 simplesmente não seria contado para pagamento do 13º salário.

Como se trata de suspensão contratual, com a sustação recíproca das obrigações contratuais entre empregado e empregador, a suposição acima é apenas parcialmente verdadeira, pois o cálculo do 13º tem um critério que, na prática, precisa ser observado caso a caso.

A Lei 4.090, de 13 de julho 1962, estabelece em seu artigo 1º, § 1º, que a gratificação de Natal corresponde a 1/12 da remuneração devida em dezembro, por mês de serviço, no ano correspondente. Esclarece ainda, no § 2º do mesmo artigo, que a fração igual ou superior a 15 dias de trabalho será havida como mês integral para os efeitos da regra de cálculo estabelecida no § 1º.

Portanto, não é possível afirmar como regra geral que o período de suspensão simplesmente não será contado para o cálculo do 13º, pois isso dependerá da quantidade de dias que o trabalhador laborou no mês. Se o contrato, por exemplo, foi suspenso por 30 dias no período de 16 de março de 2020 a 14 de abril de 2020, o trabalhador laborou os 15 dias exigidos pela lei em março e abril e, portanto, esses meses serão contados normalmente para o cálculo da gratificação, correspondendo a 2/12. Logo, nesse exemplo a suspensão não teve qualquer efeito jurídico no cálculo do 13º.

Por outro lado, se em razão da suspensão do contrato o trabalhador não laborou num determinado mês pelo menos os 15 dias exigidos pela norma, aí sim este mês não será contado para o cálculo do 13º.

No caso apenas da redução da jornada, logicamente o trabalhador continuará desempenhando suas funções, ainda que em jornada inferior à usual, e, portanto, o período será contado para o cálculo da gratificação de Natal.

Por fim, uma vez que o valor do salário do empregado será reduzido ou não será pago nos meses em que houve redução de jornada ou suspensão do contrato, poderia surgir a seguinte dúvida: quais serão os efeitos no valor do 13º?

Ao contrário das férias, a variação do valor do salário durante o período de aquisição do direito não tem relevância para o cálculo da parcela. Assim, essa questão é respondida pelo artigo 1º, § 1º, e artigo 3º da Lei 4.090/62, que estabelecem que o valor do 13º é calculado com base na remuneração devida em dezembro ou, no caso de rescisão do contrato, no valor da remuneração do respectivo mês.

Portanto, a eventual redução do salário em razão das medidas previstas na MP nº 936 não importará em redução da base de cálculo do 13º.

 é auditor-fiscal do Trabalho e coordenador do Projeto de Análise e Encerramento de Processos de Multas e Recursos da Superintendência Regional do Trabalho em Goiás.

Categorias
Notícias

Direitos fundamentais: para que servem as leis gerais da internet?

I. Na última quinta-feira (07.05.2020), o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Referendo na Medida Cautelar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 6.389, 6.390, 6.393, 6.388 e 6.387, suspendendo a aplicação da Medida Provisória nº 954/2020. O ato normativo obrigava as prestadoras de serviços de telecomunicações (STFC e SMP) a compartilharem dados dos usuários de seus usuários com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus.

Para além dos resultados práticos do julgamento, o caso assume uma relevância única para a teoria dos Direitos Fundamentais: foi a primeira vez em que o STF reconheceu explicitamente a autonomia do Direito Fundamental à Proteção de Dados, enquanto projeção da proteção constitucional à personalidade (art. 5º, inciso X, da CF/88).

Não são propriamente estranhas à tradição da jurisdição constitucional decisões de Cortes Constitucionais que consagram novos direitos fundamentais em razão de mudanças tecnológicas. No Direito Alemão, por exemplo, além da célebre decisão da Lei do Censo de 1983, que afirmou o direito à autodeterminação informacional (Informationelle Selbstbestimmung), o Bundesverfassungsgericht em 2008 reconheceu a existência de um direito constitucional à confidencialidade e integridade dos sistemas informáticos (Grundrecht auf Gewährleistung der Vertraulichkeit und Integrität informationstechnischer Systeme). Já na experiencia norte-americana, debates semelhantes se desenvolveram historicamente em torno da aplicabilidade da Quarta Emenda Constitucional para as hipóteses de interceptação de comunicação por meios telemáticos.

II. É inegável que as relações sociais desencadeadas no ciberespaço ampliam profundamente o papel criativo dos Tribunais Constitucionais diante dos riscos de comprometimento de garantias constitucionais básicas.

A própria dimensão objetiva de direitos fundamentais, como os de liberdade de expressão, de participação política, e mesmo de direitos de segunda geração relacionados ao trabalho, cultura e saúde passa a ser permeada por considerações técnicas dos meios de comunicação digital. A internet pode tanto alterar o contexto factual de uma dada tecnologia, levantando questões sobre como a Constituição a ela se aplica, quanto pode gerar novas oportunidades de realização das liberdades não comparáveis àquelas que recebem proteção constitucional explícita.

Quando confrontadas com essas situações, dois caminhos se abrem às Cortes Constitucionais. Em geral, elas podem (i) optar por uma abordagem de deferência à cultura jurídica consolidada, evitando que o controle de constitucionalidade resulte em soluções interpretativas inteiramente novas ou (ii) entender que a natureza única da internet demandaria respostas judiciais efetivas que façam frente à racionalização privada das relações sociais e à intervenção governamental na internet.

Os dois caminhos obviamente tencionam o debate sobre legitimidade democrática da jurisdição constitucional. De um lado, a atualização da proteção constitucional – inclusive com a enunciação de novos direitos fundamentais – é essencial para a preservar a força normativa do texto constitucional. De outro, o avanço do Tribunal na aplicação do texto constitucional em realidades não imaginadas pelo constituinte suscita inevitavelmente as acusações de ativismo. Como afirmam com clareza Alessandro Morelli e Oreste Pollicino: “é necessário compreender se a abordagem mais apropriada nestes casos é a da deferência judicial ou do activismo judicial, considerando também a questão da importância não negligenciável da relação entre a política e os tribunais no contexto do direito digital” (tradução livre).

O presente artigo, na linha de diversos outros sobre o tema, sustenta que existe uma solução intermediária para esse dilema. A proposta aqui apresentada deriva da aplicação do marco teórico do Constitucionalismo Digital à jurisdição constitucional e consiste em colher das cláusulas gerais das leis de proteção aos direitos dos usuários da internet novas possibilidades de interpretação de normas constitucionais envolvidas no exercício de direitos fundamentais no ciberespaço. Explica-se.

III. Na última década, diversos juristas vinculados ao movimento teórico do Constitucionalismo Digital (Digital Consticionalism) passaram a discutir o impacto que declarações de direitos, posicionamentos de organizações internacionais e propostas legislativas exercem sobre a proteção de direitos fundamentais no ciberespaço. Nos estudos iniciais sobre o tema, o foco das investigações se voltava à identificação de normais gerais de articulação de direitos, regras de governança e limitações dos poderes públicos e privados na internet.

Trabalhos como os de Lex Gill et. al., por exemplo, mapearam diversas reações normativas de afirmação desses direitos na forma de leis em sentido formal, declarações oficiais de organizações intergovernamentais, termos e regulamentos de uso de plataformas digitais, entre outros. Essas reações normativas são difusas e não se limitam ao âmbito dos atos normativos formais.

Nos últimos anos, porém, o Constitucionalismo Digital evoluiu de uma mera corrente aglutinadora de experiências políticas e passou a compor verdadeiras prescrições normativas para a proteção de garantias individuais no ciberespaço. Estudos como os de Eduardo Celeste, Claudia Padovani e Mauro Santaniello e Meryem Marzouki atribuíram ao Constitucionalismo Digital a marca de uma verdadeira “ideologia constitucional”, a qual se estrutura em um quadro normativo de proteção dos direitos fundamentais e de reequilíbrio de poderes na governança da internet.

A principal implicação dessa transformação é que o Constitucionalismo Digital passou a contribuir para identificação e construção de princípios constitucionais que podem ser empregados como parâmetro de controle de constitucionalidade de normas que eventualmente colidam com direitos fundamentais associados à experiencia social no mundo digital. Alguns exemplos desses princípios podem estar associados à afirmação de um direito de acesso à internet, ao direito ao esquecimento, ao direito à neutralidade da rede e, é claro, ao próprio direito à proteção de dados.

Uma tese nuclear desse movimento teórico consiste na compreensão de que as cartas jurídicas de enunciação direitos dos usuários da internet muitas vezes contêm escolhas de matriz constitucional quanto ao tratamento jurídico a ser conferido às relações sociais on-line. Como bem destacado por Mauro Santaniello et. al., em países como Brasil, Filipinas, Itália, Nova Zelândia e Nigéria, que adotaram essas legislações formais, não há como negar que os Parlamentos têm buscado “desempenhar as funções fundamentais do constitucionalismo clássico no sub-sistema da Internet, produzindo atos dirigidos ao estabelecimento e à proteção dos direitos digitais, à limitação do exercício do poder em e através das obras da rede digital e à formalização dos princípios de governança”. Além de estabelecerem princípios materiais claros, essas leis em geral são construídas a partir de um amplo processo participativo, o que reforça a legitimidade democrática do seu uso.

IV. Esses diagnósticos se amoldam com precisão ao caso brasileiro. Entre nós, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) conferiu centralidade a cláusulas gerais de dimensão evidentemente constitucional, como a proteção da liberdade de expressão (art. 3º, inciso I), da privacidade (art. 3º, inciso II) e da preservação da natureza participativa da rede (art. 3º, inciso VII). Por esse motivo, é possível afirmar que o MCI incorpora diversos elementos da crescente literatura sobre constitucionalismo digital aqui discutida.

O mesmo pode ser dito em relação à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). Verifica-se no seu texto a consagração de fundamentos como a autodeterminação informativa (art. 2º, inciso II), que define a dimensão subjetiva do direito à privacidade, e ainda princípios como os da proibição (equivalente ao princípio da necessidade, art. 6º, III), da vinculação à finalidade (art. 6º, I), e da transparência (art, 6º, VI). A rigor, esses princípios conformam a própria atuação do legislador ordinário. Mesmo que eles não estejam expressamente previstos no texto constitucional, eles são projeções da tutela constitucional à privacidade (art. 5º, inciso X, da CF/88).

É claro que a posição aqui defendida não equivale a dizer que leis como o MCI ou a LGPD poderiam ser utilizadas, de forma direta, enquanto parâmetros de controle de constitucionalidade de leis ordinárias. Contudo, em casos em que a discussão posta se relaciona essencialmente com a adaptabilidade da fruição de direitos fundamentais pelo uso da internet, essas legislações podem servir como verdadeiros “ganchos” interpretativos para que se extraia do texto constitucional possibilidades interpretativas mais adequadas aos conflitos de direitos na esfera digital. É nessa linha que autores como Lex Gill et. al. defendem que algumas legislações formais sobre a internet, se apresentam como “blocos de construção intelectual para a interpretação das constituições formais na esfera digital” .

Construções hermenêuticas desse gênero podem ser bastante úteis para a jurisdição constitucional brasileira. Foi o que parece ter ocorrido justamente no julgamento recente da MP nº 954/2020 nesta semana. O texto da norma impugnada nas ADIs referenciadas previa, de maneira bastante genérica, que as empresas de telecomunicação prestadoras do STFC e do SMP deveriam disponibilizar à Fundação IBGE, em meio eletrônico, a relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas e que os dados seriam utilizados “para a produção estatística oficial, com o objetivo de realizar entrevistas em caráter não presencial no âmbito de pesquisas domiciliares” (art. 2º, § 1º, da MP 954/2020).

Nesse ponto, poder-se-ia entender que a MP violaria o chamado princípio da vinculação a finalidade (art. 6º, inciso I, da LGPD), que exige que tratamento dos dados só pode ocorrer nos estritos limites da finalidade legitimamente atribuída pelo interesse público pela norma. Nesse sentido, ainda em sua decisão monocrática que deferiu a cautelar, a relatora Min. Rosa Weber pontuou que a norma impugnada não delimitava com precisão “o objeto da estatística a ser produzida, nem a finalidade específica, tampouco a amplitude” e que a MP “igualmente não esclarece a necessidade de disponibilização dos dados nem como serão efetivamente utilizados”.

Outra deficiência da norma bastante debatida pelos membros da Corte no referendo da Cautelar se refere à falta de cuidados do legislador para criação de medidas efetivas que garantissem possibilidades de fiscalização, pelos titulares, das fases de tratamento levadas a cabo pelo controlador. Essa questão foi diretamente abordada no voto do Min. Gilmar Mendes ao afirmar que “a incidência do princípio da transparência impõe que a norma garanta ao titular dos dados um nível de controle suficiente para a verificação prospectiva da licitude do tratamento de dados”. Ainda nas palavras do Ministro, isso se desdobraria em um dever não cumprido pelo legislador da MP (reconhecimento da dimensão objetiva) de “de dar ao titular condições de proceder a um controle próprio da forma como o Estado lida com os dados”.

Essa integração entre a Constituição e as cláusulas previstas nas leis gerais de direitos dos usuários na internet também pode vir a ser explorada pelo Tribunal em casos ainda pendentes de julgamento, como na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 403, de relatoria do Ministro Edson Fachin, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5527, de relatoria da Ministra Rosa Weber, em que se discute a constitucionalidade do histórico de decisões judiciais que bloqueavam o funcionamento do serviço WhatsApp em todo país em razão do descumprimento de ordens de juízes criminais de interceptação de comunicações.

Ao lado das alegações de que tais decisões judiciais feririam o princípio da proporcionalidade, há um importante debate nesse caso sobre se como o uso da criptografia ponta-a-ponta nos sistemas de comunicação instantânea se relaciona com a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento (art. 3º, inciso I, do MCI) e ainda com a ideia de liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet (art. 3º, inciso VII, do MCI).

V. Em todos esses exemplos, verifica-se que as possibilidades de diálogo entre o Constitucionalismo Digital e a jurisdição constitucional apresentam-se como decorrências das próprias transformações que marcam a Teoria Constitucional contemporânea. A consagração do constitucionalismo enquanto modelo universal de organização e legitimação do poder político ocorreu no século passado graças a um conjunto de pré-condições da relação entre Estado e Sociedade que hoje se encontram em mutação frente aos avanços tecnológicos. Na tentativa de se manter vivas essas pré-condições, os valores normativos do Constitucionalismo Digital podem se mostrar verdadeiras válvulas de reintegração dos direitos fundamentais na internet.


FETZER, Thomas; YOO, Christopher S. New technologies and constitutional law. Faculty Scholarship at Penn Law, n. 13, p. 23, 2012, p. 1 e LESSIG, Lawrence. Reading The Constitution in Cyberspace. Emory Law Review, v. 45, p. 869–910, 1996, p. 41.

Essa posição é defendida em: SUNSTEIN, Cass R. Constitutional Caution The Law of Cyberspace. University of Chicago Legal Forum, 1996, p. 374 (defendendo que quando questões difíceis de valor e de facto relacionadas à internet são deslocadas por referência a categorias constitucionais, algumas delas bastante arcaicas, elas provavelmente não se adequam a uma boa compreensão dos fenômenos subjacentes, de modo que: “in cyberspace, constitutional lawyers should be (at least relatively) cautious”). Em sentido semelhante, cf. KERR, Orin S. The Fourth Amendment and New Technologies: Constitutional Myths and The Case For Caution. Michigan Law Review, v. 102, p. 801–888, 2004.

Para uma abordagem contra a deferência judicial, com foco no direito norte-americano, cf. SOLOVE, Daniel J. Fourth Amendment Codification and Professor Kerr’s Misguided Call for Judicial Deference. Fordham Law Review, v. 74, p. 747–777, 2005.

MORELLI, Alessandro; POLLICINO, Oreste. Metaphors, Judicial Frames and Fundamental Rights in Cyberspace. American Journal of Comparative Law, v. 2, p. 1–26, 2020, p. 9.

Por todos, cf. CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019.

GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Research Publication No. 2015-15 November 9, 2015, v. 7641, 2015, p. 5.

PETTRACHIN, Andrea. Towards a universal declaration on internet rights and freedoms? International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 337–353, 2018. (argumentando que “a discourse on Internet-related human rights is being shaped, autonomous from the broader discourse on Internet governance”) e BASSINI, Marco. Fundamental rights and private enforcement in the digital age. European Law Journal, v. 25, n. 2, p. 182–197, 2019, p. 185. (“Internet activists, members of international fora and supporters of Internet freedom called for the adoption of an Internet Bill of Rights, an international covenant binding on both public and private actors to secure protection of individuals’ liberties and rights”).

CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019, p. 89.

PADOVANI, Claudia; SANTANIELLO, Mauro. Digital constitutionalism: Fundamental rights and power limitation in the Internet eco-system. International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 295–301, 2018. (definido que “digital constitutionalism is an effort to bring political concerns and perspective back into the governance of the Internet, deeply informed by economic and technical rationalities”).

MARZOUKI, Meryem. A Decade of CoE Digital Constitutionalism Efforts: Human Rights and Principles Facing Privatized Regulation and Multistakeholder Governance. International Assotiation for Media and communication Research Conference (IAMCR), v. July, n. 1, 2019.

SANTANIELLO, Mauro et al. The language of digital constitutionalism and the role of national parliaments. International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 320–336, 2018, p. 2.

GILL, Lex; REDEKER, Dennis; GASSER, Urs. Towards Digital Constitutionalism? Mapping Attempts to Craft an Internet Bill of Rights. Research Publication No. 2015-15 November 9, 2015, v. 7641, 2015, p. 6.

Victor Oliveira Fernandes é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal. Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito Econômico nos cursos de Graduação e Pós-graduação lato sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Categorias
Notícias

A pandemia, os humanos e a natureza

“O mundo parou. Os humanos estão recolhidos e amedrontados. A economia preocupa e há quem diga que o day after será mais difícil que o dia de hoje. Digladiam-se, ao invés de convergir, os que defendem a proteção da vida (isolamento social, redução de atividades) e os que defendem a proteção da economia (continuidade das atividades econômicas, proteção do emprego e da renda, proteção do trabalhador informal). Os cientistas buscam a origem da epidemia, vacinas que evitem e remédios que curem a doença: uma febre, mal-estar, tosse seca que pode evoluir para uma séria pneumonia, bloqueio dos pulmões e morte por insuficiência respiratória. A doença é transmitida por contato pessoal, de pessoa a pessoa; e a rapidez com que se espalhou pelo planeta, país a país, e com que contaminou em poucos dias boa parte da população surpreende.

Assim começava o meu último artigo, em 28 de março [1], quando a realidade ainda não se havia mostrado por inteiro. Passados 30 dias do artigo, 90 dias desde a chegada do coronavírus ao Brasil, 135 mil infectados e dez mil mortes aqui, vemos que algo diferente está acontecendo. Os bilhões de dólares gastos anualmente em armas e equipamentos de destruição são incapazes de destruir esse pequeno, vulnerável vírus que, se não contido por vacinas ou medicamentos, ou se não criarmos anticorpos, se transformará em uma das maiores ameaças aos humanos desde a nossa criação.

Em 1972, assisti por acaso no Cine Bijou, um pequeno cinema de arte situado na Praça Roosevelt, em São Paulo, que há muito deixou de existir, a um filme denominado “A Crônica de Hellstrom” [2]; o filme não fez muito sucesso na ocasião e, segundo sei, nunca foi exibido depois, embora tenha me impressionado tanto que dele me lembro após todos esses anos. Seu tema, nada romântico e com cenas impressionantes do mundo natural (a vida depende da morte), cuida da batalha diária pela sobrevivência e conclui que das milhões de espécies que popularam a Terra apenas duas sobreviveram e aumentaram a própria população após as diversas hecatombes de nossa história geológica: os insetos (e aqui incluo, para o efeito deste artigo, os vírus, as bactérias e quetais) e os humanos. O filme anota que a sobrevivência dos dois decorre de uma especial adaptação às mudanças que ocorreram na planeta, e que sobreviverá quem melhor se adaptar às mudanças ainda por vir. Não conto o final da batalha para não estragar o interesse de quem se animar a ver o filme.

Desmond Morris em “O Macaco Nu” (nós), escrito por um biólogo, zoólogo e etólogo, escreveu: “Sou zoólogo e o macaco pelado é um animal. É, portanto, caça ao alcance de minha pena e recuso-me evitá-lo mais tempo, só porque algumas de suas normas de comportamento são bastante complexas e impressionantes. A minha justificativa é que, apesar de ter se tornado tão erudito, o homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado e, embora tenha adquirido motivações muito requintadas, não perdeu nenhuma das mais primitivas e comezinhas. Isso causa-lhe muitas vezes certo embaraço, mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais recentes não têm mais de alguns milhares de anos e não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução” [3].

Os humanos nasceram e evoluíram na natureza. Mas o que é “a natureza” de que tratamos? Como se vê em uma busca rápida na internet, “Latim, naturacomp. pelo tema natus, p.pass. de nascere = nascer e urus = sufixo do particípio futuro de oritur = surgir, gerar, a força que gera. Aquilo que surge, que se dá por nascimento. Aquilo que é e faz por nascimento segundo leis universais aplicadas a um preciso contexto. Ordem ou sistema de leis que precedem a existência das coisas e a sucessão dos seres. O conjunto de todos os seres que compõem o universo” [4]. A natureza é a força que gera a ordem ou sistema de leis que precedem a existência das coisas e a sucessão dos seres; a natureza não “nasce”, mas é nela, segundo suas regras, que coisas e seres nascem, vivem e morrem.

A natureza contém as regras que regulam a formação das galáxias, estrelas, planetas e tudo que é contido no Universo; mas é a natureza na Terra que nos preocupa. Não adentro a discussão da presença de Deus na criação da natureza, própria a outro momento e local; basta-nos aqui anotar a existência de regras que precedem a existência das coisas que existem, inclusive a vida, lembrando a sedutora Hipótese ou Teoria Gaia de James Lovelock, segundo a qual a Terra é um organismo vivo com suas regras, nas quais nos movimentamos [5]. Uma dessas regras é o equilíbrio, que sempre retorna após rompido, ainda que em uma relação diferente da anterior.

Assim são as coisas inanimadas, que após o terremoto voltam a imobilizar-se em outra posição. Assim são as coisas vivas, que dependem da conversão de energia e não podem consumir mais do que a energia disponível: as plantas convertem em energia o sol, o carbono do ar, os nutrientes do solo; são a fonte de energia de animais, insetos, micróbios que delas vivem, que são a fonte de energia de outros seres que deles se alimentam, até o topo final da cadeia alimentar. O desequilíbrio implica na adequação de toda a cadeia alimentar, com a extinção de alguns, a alteração de outros, a chegada de seres novos, até que se estabeleça um novo equilíbrio em um movimento lento, próprio à evolução e aos processos naturais.

O equilíbrio foi rompido pelos humanos ao desenvolver uma forma de vida fora desse tempo e dessas regras, como anota Jared Diamond (em tradução livre): “Na maior parte dos seis milhões de anos da evolução humana, todos os humanos e proto-humanos viveram como um tipo diferenciado de chimpanzés, em uma população de baixa densidade espalhada pela paisagem como famílias ou pequenos bandos. Apenas nos últimos seis mil anos, uma pequena fração da histórias humana, alguns de nossos antepassados se juntaram em cidades. Mas hoje mais da metade da população do mundo vive nesses novos locais, alguns com dezenas de milhões de habitantes” [6].

Esse crescimento da população humana implicou na apropriação de parte cada vez maior do mundo natural através do desenvolvimento de novas formas, ou técnicas, de conversão de energia: a caça e a extinção das espécies desde a pré-história, a agricultura e a pecuária, a conversão de matas para a produção de alimentos, de bens e para a criação de cidades. Esse desequilíbrio terá um fim, pois como visto acima a natureza caminha sempre para o equilíbrio, com uma ordem diferente desta que conhecemos.

Curiosamente, a parte mais antiga da vida no planeta é pouco conhecida por nós e está em nosso entorno, inclusive no ar que respiramos, como anota Nathan Wolfe depois de 15 anos de pesquisa sobre micróbios (em tradução livre): “Como resultado, comecei a pensar no ar como o meio para a próxima pandemia, mais que um modo de sustento da vida. Mas respire sem medo: a maioria dos micróbios no ar nos causa pouco ou nenhum mal, e alguns certamente nos faz bem. A verdade é, nós ainda sabemos muito pouco sobre eles” [7]. Esse pouco conhecimento é manifesto no caso da Covid-19, como informa Nísia Trindade, presidente da Fiocruz: “Nossos estudos já apontam mutações que é uma característica dos vírus. Mas ainda estamos estabelecendo correlações entre essas mutações e o tipo de manifestações clínicas relacionada. Não quero causar pânico, mas esse vírus é um grande desconhecido, um estrangeiro” [8].

Sabemos que as pandemias têm origem na transmissão de vírus por animais e pássaros, as chamadas zoonoses, e que essa transmissão vem ocorrendo com mais facilidade por causa da redução dos habitats, pelo contato de espécies que antes pouco ou não se encontravam e pelo contato dessas espécies com os humanos, como decorre do tráfico de animais, dos mercados de animais vivos, da proximidade dos humanos com a natureza de que se separou; decorrem das intervenções mal pensadas e do simples crescimento exponencial dos humanos, de uma forma de vida perdulária e da perda de respeito pela natureza.

Não basta aprender mais sobre os micróbios, pois eles e os insetos continuarão sua rápida mutação e a transmissão de doenças; a simples multiplicação da nossa população, somada às mudanças climáticas, à destruição dos habitats e das espécies, trará novas pandemias e novas crises. A tecnologia e a ciência têm limites e lembro se desenvolvem na natureza, dentro da natureza, cujas regras não prevalecem contra as regras da natureza. É preciso que os humanos vejam o que está à sua volta e repensem a estrutura maior em que estão inseridos, deixem de lado a arrogância do nosso aparente sucesso e lembrem que essa nossa forma de vida não apaga, como disse Desmond Morris, que “o macaco pelado é um animal” que não submete a natureza, mas a ela está submetido.

Retorno à crônica de Hellstrom. A dimensão da pandemia causada por um pequeníssimo vírus nos força a enfrentar perguntas que evitamos no dia a dia e a pensar em nossa espécie e em nosso planeta, decidindo agora o que vai moldar a vida dos humanos que ainda não nasceram. Difícil? Sim, mas necessário, pois a natureza não reclama, ela se vinga.

Categorias
Notícias

Robin e De Natal: Lei dá protagonismo ao crédito tributário

A transação é um instituto previsto no Código Tributário Nacional que faculta aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária perpetrarem concessões mútuas, objetivando justamente a extinção de crédito tributário. As condições do instituto devem ser estabelecidas em lei, de forma a preservar o tratamento isonômico dos contribuintes e obstar a desproporcional discricionariedade do poder público.

Ainda em marcha inicial, mas em boa hora, foi promulgada a Lei Federal nº 13.988/2020, fruto da conversão da Medida Provisória nº 899/2019 (MP do Contribuinte Legal), prevendo modalidades de transação tributária em nível federal. Evidentemente, por se tratar de tema recém-legislado, ainda será alvo de críticas, questionamentos e possíveis alterações.

Entre os aprimoramentos trazidos pela lei em relação à Medida Provisória, destaca-se a preocupação com o princípio da transparência, quando em seu § 3º do artigo 1º impõe a necessidade de divulgação em meio eletrônico de todos os termos das transações celebradas, resguardando-se apenas as informações legalmente protegidas.

Outro importante ponto a ser destacado, pois modificado pela nova lei, diz respeito às hipóteses gerais de vedação à transação, entre as quais a limitação da transação apenas às multas de natureza penal e a vedação da adesão de “devedores contumazes”, conforme definição a ser dada pela lei.

Alerta oportuno para os contribuintes é a existência de cláusula geral de não suspensão da exigibilidade dos créditos transacionados. Para superar essa imposição, recomenda-se que o proponente procure convencionar com a autoridade pública o direito à referida suspensão até que o crédito tributário seja satisfeito.

Isso posto, faremos destaques às três modalidades de transação previstas pela lei.

Primeiramente, no que tange aos créditos de natureza tributária ou não, inscritos em Dívida Ativa da União Federal (DAU), a transação respectiva poderá ser proposta, respectivamente, pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e pela Procuradoria Geral Federal, de forma individual ou por adesão, ou por iniciativa do devedor, ou pela Procuradoria Geral da União, em relação aos créditos sob sua responsabilidade.

Nesse caso, os benefícios abrangem a concessão de descontos nas multas, nos juros de mora e nos encargos legais, o oferecimento de prazos e formas de pagamento especiais, incluídos o diferimento e a moratória, bem como o oferecimento, a substituição ou a alienação de garantias e de constrições.

Para as empresas em geral, há a necessidade de o crédito estar inscrito em dívida ativa ou já em fase de execução na PGFN. Nessa hipótese, a redução do valor do crédito transacionado está limitada a 50%, só poderá abranger multas, juros e encargos, pois encontra-se vedada a hipótese de redução do montante principal do crédito.

Já na hipótese de transação que envolva pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte, a redução máxima do valor transacionado está limitada a 70%, sendo o prazo máximo de quitação de até 145 meses.

Poderão ser aceitas quaisquer modalidades de garantia previstas em lei, inclusive garantias reais ou fidejussórias, cessão fiduciária de direitos creditórios, alienação fiduciária de bens móveis, imóveis ou de direitos, bem como créditos líquidos e certos do contribuinte em desfavor da União, reconhecidos em decisão transitada em julgado.

Nessa modalidade, há ainda a possibilidade de transação por adesão, por ato do procurador geral da Fazenda Nacional, que determinará os procedimentos, os critérios para aferição do grau de recuperabilidade das dívidas, entre outros.

Em relação à segunda modalidade, referente aos créditos tributários e aduaneiros em contencioso judicial ou administrativo, envolvendo disseminada e relevante controvérsia jurídica, a transação poderá ser proposta pelo ministro do Estado da Economia e será divulgada na imprensa oficial e nos sítios dos respectivos órgãos na internet, mediante edital que definirá, entre outros, as exigências a serem cumpridas, as reduções ou concessões oferecidas, os prazos e as formas de pagamento admitidas.

Nessa modalidade, o desconto está limitado a 50% do crédito, com prazo máximo de 84 meses para pagamento e somente será celebrada: I) se abranger todos os litígios relacionais à teses; e II) se constatada a existência, na data de publicação do edital, de inscrição em dívida ativa, de ação judicial, de embargos à execução fiscal ou de reclamação ou recurso administrativo pendente de julgamento definitivo, relativamente à tese objeto da transação.

O sujeito passivo que aderir à transação deverá requerer a homologação judicial do acordo, bem como sujeitar-se, em relação aos fatos geradores futuros ou não consumados, ao entendimento dado pela administração tributária à questão em litígio.

Por fim, a lei ainda prevê hipótese de transação para os créditos tributários em contencioso administrativo de baixo valor, que é definido como aquele até 60 salários mínimos e que tenha como sujeito passivo pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte. Essa transação passará a ser vigente a partir de 120 dias da data de publicação da Lei nº 13.966/2020, vale dizer, a partir de 12 de agosto de 2020.

Essa modalidade de transação poderá contemplar, cumulativamente ou não, os seguinte benefícios: I) concessão de descontos, observado o limite máximo de 50% do valor total do crédito; II) oferecimento de prazos e formas de pagamento especiais, incluídos o diferimento e a moratória, obedecido o prazo máximo de quitação de 60 meses; e III) oferecimento, substituição ou alienação de garantias e de constrições.

Como se denota, a transação do crédito tributário passa a ter protagonismo no cenário legislativo brasileiro com a edição da Lei do Contribuinte Legal.

Mas, por tratar de temática vasta e que comporta complexidades, eis que sua aplicabilidade depende do atendimento a diversos valores sistêmicos (v.g. princípios constitucionais e gerais de Direito), às normas de estrutura (v.g. que disciplinam os limites para o exercício da competência) e às normas de conduta (v.g. harmonização com outras hipóteses dispostas no CTN e na legislação ordinária), devendo ainda ser objeto de muito debate e aprimoramentos.

No aspecto pragmático, com a edição das Portarias da PGFN nºs 9.924 e 9.917, as modalidades ali tratadas deverão ser “testadas”, e as respostas acerca da aceitação social desse instituto logo chegarão. Bem por isso, reiteramos a pretensão de apenas contribuir para o debate em busca do aprimoramento da transação em matéria tributária em meio ao cenário extremamente litigioso no qual Fisco e contribuintes se encontram.

Cíntia Regina de Sanchez e Robin é graduada em Direito pela PUC-SP e LL.M em International Taxation na Maastricht University (Holanda).

Categorias
Notícias

Rio e Duque de Caxias devem aumentar leitos para infectados

Colaboração na crise

Rio e Duque de Caxias devem aumentar leitos para infectados por Covid-19

Por 

Devido ao desrespeito de grande parte da população ao isolamento social, à elevada subnotificação dos casos de coronavírus e à insuficiência da rede hospitalar para lidar com a epidemia, a 7ª Vara Cível de Duque de Caxias determinou, nesta segunda-feira (4/5), que o estado do Rio de Janeiro e o município da Baixada Fluminense coloquem em funcionamento 73 leitos até o dia 30 de maio e mais 91 até 15 de junho para atendimento dos infectados com a Covid-19.

Entes federativos devem colaborar para enfrentar coronavírus
Kateryna Kon

Além disso, o estado e o município deverão suprir eventual demanda de leitos hospitalares necessários durante a epidemia, mesmo depois da implantação do hospital de campanha na cidade pelo estado do Rio.

A ação foi movida pelo Ministério Público diante do agravamento da contaminação da população de Duque de Caxias pelo coronavírus. O MP apontou que, em 26 de abril, o município tinha entre 2.780 e 3.336 infectados. Com esse quadro e a perspectiva de crescimento dos casos da Covid-19, o MP alegou que a estrutura hospitalar municipal será insuficiente. Dessa maneira, sustentou, é essencial proteger o sistema público de saúde contra o colapso e fazer com que ele esteja pronto para absorver o aumento de demanda.

Em sua decisão, a juíza Amália Regina Pinto destacou que entes federativos devem colaborar para garantir o direito à saúde da população. “Embora se reconheça a dificuldade que todos os governos vêm passando para o enfrentamento dessa pandemia, há que se exigir dos gestores públicos ações de planejamento, execução e transparência, em relação às medidas necessárias para reduzirem o alto índice de óbitos decorrente da Covid-19 que vem acontecendo no município de Duque de Caxias e a incapacidade dos gestores no provimento de medidas eficazes e transparentes para a resposta à situação emergencial.”

A juíza também deu prazo de cinco dias para que o estado do Rio apresente um relatório das medidas já executadas e um cronograma final para inauguração dos novos leitos, conforme foi previsto no Plano estadual de Resposta de Emergência ao Coronavírus no Estado do Rio.

Clique aqui para ler a decisão

0016635-90.2020.19.8.0021

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 4 de maio de 2020, 20h03

Categorias
Notícias

Rafael Maciel: Os perigos da ditadura pelos dados

Aspirantes a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança guerras, insurreições armadas ou ataques terroristas para justificar medidas antidemocráticas”. Nessa passagem do livro Como as Democracias morrem, Steve Levitsky e Daniel Ziblatt [1] poderiam ter incluído a pandemia como outro “inimigo comum” a justificar atos autoritários.

Provavelmente não imaginariam um vírus com impactos sanitários e econômicos como os provocados pela Covid-19. Relevantes a ponto de provocarem uma grande mudança de hábitos, tanto pela gravidade que a doença tem apresentado, com índices crescentes de fatalidades e contaminação, como pela bancarrota generalizada e aumento do desemprego. Diante de tantos danos, não se tem dúvida de que a atual pandemia se tornou o mal a ser combatido, capaz de justificar, aos olhos menos atentos, toda e qualquer invenção legislativa, sobretudo as arbitrárias as quais, em situação comum, poucos ousariam representar.

É o que temos visto no Brasil. O cotidiano jurídico tem sido inundado por Medidas Provisórias e propostas legislativas visando a modificações ou inovações diversas. Não se tem dúvidas de que boa parte são válidas e necessárias ao combate dos males da pandemia, seja em seus aspectos econômicos ou sanitários; outras, todavia, repousam sobre o falso argumento da urgência pandêmica para terem tramitação ligeira ou oportunista e escondem violações a direitos fundamentais, primeiro front prejudicado nesses levantes populistas.

É o que se dá com a Medida Provisória nº 954, de 17 de abril, pela qual o presidente Jair Bolsonaro, fundando-se no estado de calamidade pública, determina a todas empresas de telecomunicação que disponibilizem a “relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas” à Fundação IBGE para fins de produção estatística oficial. Logo de partida constata-se um excesso de dados pessoais a serem disponibilizados. Ora, para que fornecer endereço se essa dita necessidade é para pesquisa remota por conta do isolamento? Para piorar, não há sequer menção a qual tipo de estatística que deverá ser realizada e se ela é fundamental para combate à pandemia, primeiro pressuposto para avaliar o cabimento do compartilhamento de dados pessoais. Tem que haver finalidade específica e para essa, somente podem ser fornecidos dados necessários e adequados para atingi-la.

Os despropósitos não param por aí. Não há na MP qualquer controle previsto para esse tratamento que poderá, inclusive, estar sujeito ao vigilantismo ou uso indevido para envio de mensagens fake com viés eleitoral. Se serão sigilosos, como se dará o controle? Quais medidas foram implementadas para registrar os acessos? A única previsão de proteção prevista na MP é de um enviesado Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais.

A utilização dessa avaliação de impacto deve ser feita anteriormente a qualquer pretensão de tratar os dados, a fim de analisar todos os riscos envolvidos e, inclusive, os impactos aos titulares, sobretudo às suas liberdades individuais. O relatório de impacto não pode servir para o fim pretendido no §2º do artigo 3º da MP: “Divulgar as situações em que os dados foram utilizados”. Depois que são utilizados, pouco ou de nada importará saber das suas violações, sem falar que será difícil confiar nesse relatório feito casuisticamente. Até as situações divulgadas por alguns estados para o compartilhamento de dados dito anonimizados o que a rigor não se sujeitariam a tais limitações para fins de constatar aglomerações devem ser precedidas de uma análise prévia a fim de se constatar a impossibilidade de (des)anonimização mediante “esforço razoável”.

É claro que para combater a pandemia, por ser questão de saúde pública, o Estado pode utilizar alguns dados pessoais, porém essa permissão não é uma carta em branco para que faça da forma como queira, sem qualquer controle. Os dados de saúde são um bom exemplo: podem ser compartilhados para saber quantos estão contaminados, porém sempre respeitando os indivíduos, sem divulgação desautorizada de seus nomes e limitando o tratamento àqueles dados estritamente necessários.

Agências de proteção de dados pessoais ao redor do mundo têm se manifestado com diretrizes para tais compartilhamentos, pautando pela finalidade e implementação de medidas técnicas e organizacionais de proteção, prestigiando a anonimização. Por aqui, a regra, ao que parece, tem sido o compartilhamento irrestrito, como se aproveitassem da vacatio legis da LGPD ou da própria inércia de não instituir a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Se são ou não medidas com viés antidemocrático, propositais, ingenuidade ou equívoco jurídico o tempo dirá. Enquanto isso, que nossos radares permaneçam atentos, assim como vigilantes nossas instituições.

 é advogado e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados Pessoais.

Categorias
Notícias

Ação trabalhista é extinta porque empresa já combate coronavírus

O juiz Erno Blume, da 4ª Vara do Trabalho de Criciúma (SC), julgou improcedente ação contra a JBS, que, segundo a inicial, supostamente não estava adotando medidas para evitar o contágio dos funcionários ao coronavírus. A ação civil pública foi movida pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação de Criciúma (SC). 

Segundo decisão, empresa já adotou as medidas de prevenção à Covid-19
Reprodução

Na decisão, do dia 30 de abril, o juiz decretou a extinção do processo, sem resolução do mérito, e condenou o sindicato a pagar honorários sucumbenciais no percentual de 5% sobre o valor dado à causa, que é R$ 50 mil.

O juiz fundamentou seu entendimento valendo-se de decisão do TRT-12, que cassou uma liminar concedida pelo primeiro grau. Essa liminar se deu nos autos de outra ação (processo 0000157-46.2020.5.12.0055), que resultou na propositura de um mandado de segurança, pela empresa. 

Ao apreciar esse MS, a desembargadora Maria de Lourdes Leiria entendeu que a empresa já estava tomando as providências necessárias. Por exemplo, oferecendo ao funcionários presenciais álcool em gel e máscaras descartáveis.

A empresa também adotou “higienização reforçada e contínua em todas as áreas de circulação e descanso; (…) contratação de ônibus adicionais para que seja mantida distância segura entre os colaboradores, e, ainda, exigência de trânsito com as janelas abertas, mesmo com o sistema de ventilação ligado”. Ainda, contratou mais três técnicas de enfermagem, “para atuar exclusivamente na triagem para verificação de possíveis sintomas logo na entrada do ambulatório”.

Além disso, os empregados cujas funções o permitem foram colocados em regime de trabalho remoto e os colaboradores do “grupo de risco” foram liberados.

Assim, em virtude de o pleito já ter sido formulado em demanda anterior, o juiz extinguiu o processo, sem resolução de mérito.

Clique aqui para ler a sentença

0000239-83.2020.5.12.0053