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Lauar Leite: Reunião e locomoção não estão sujeitas a lockdown

Emergência de saúde pública internacional. Pandemia. Incubação por até 14 dias. Transmissão comunitária de fácil propagação. Sintomas comuns a outras viroses. Inexistência de vacina ou tratamento específico. Mais de cento e cinquenta mil casos confirmados e dez mil mortes[1]. Curva ascendente em eixo gráfico. Carência quantitativa e qualitativa de leitos hospitalares.

Pela ementa e pelos diários oficiais, a temporada de lockdowns parece estar aberta e, com ela, manifesto alguma surpresa em, a par das publicações aqui mesmo do ConJur[2], estar do lado aparentemente contrarian[3] quando o assunto são as liberdades de reunião e locomoção — ir e vir, deslocamento, circulação — em tempos da pandemia. Sem mistérios: os decretos recém editados por unidades federativas municipais, na medida em que firam esses direitos, são inconstitucionais.

Primeiramente, decretos são atos normativos secundários com finalidades de regulamentação ou execução de atos normativos primários[4]. E o que diz o ato normativo primário de referência[5]? Que, em relação às liberdades de reunião e circulação, as autoridades poderão adotar medidas como isolamento, quarentena e restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, além de locomoção interestadual e intermunicipal, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Embora o rol seja exemplificativo, nem o presidente da República, muito menos governadores ou prefeitos, podem contrariar suas condições de aplicação, quais sejam:

  1. as medidas de quarentena ou isolamento só podem ser determinadas face a pessoas, respectivamente, suspeitas ou comprovadamente contaminadas (art. 2º); e,
  2. por derivação às previsões sobre a locomoção interestadual e intermunicipal, qualquer interferência na liberdade de ir e vir em âmbito intramunicipal (não prevista expressamente pela Lei) também requer recomendação técnica e fundamentada da ANVISA[6].

Em segundo lugar, independentemente de inovação, acaso fosse veiculada proibição de circulação pela referida Lei, ainda haveria inconstitucionalidade. Claro que o parlamento tem competência para refinar direitos fundamentais – limitando alcance e conteúdo em benefício de titulares de outros fundamentais, inclusive[7] –, mas esse não é um poder ilimitado. Pouco importa a nobreza do objetivo, há restrição na restrição, sendo inadmissível romper-se o conteúdo (núcleo) essencial de um direito[8], mormente quando em direção à sua aniquilação.

Ilustro. Todos podem conduzir carros, respeitadas as condições aperfeiçoadas no processo legislativo —v.g., não se pode trafegar embriagado, inabilitado ou na contramão. Mesmo assim, dados do Ministério da Saúde apontam que mais de trinta mil pessoas morrem anualmente por acidentes de trânsito. É incalculável quanto sofrimento poderia ser evitado se a lei impedisse a fabricação, a comercialização e o uso de veículos terrestres no Brasil. Sem carros, ônibus e caminhões, as pessoas circulariam de outras maneiras — mais caras/baratas, rápidas/lentas, eficientes/ineficientes.

De certo, mesmo se modelos estatísticos indicarem que, entre um e outro réveillon, dezenas de milhares de vítimas padecerão em acidentes de trânsito, impedir a locomoção por veículos terrestres seria inaceitável. Mais do que o reconhecimento e o respeito a direitos fundamentais alheios — no caso, a vida — limitações sobre outros destes — aqui, a liberdade — também precisam ir ao encontro das justas exigências do bem-estar coletivo[9], como aquelas ligadas a valores como autonomia, independência, conforto, celeridade e outros interesses ligados à qualidade de vida[10] de uma sociedade.

A relação entre essa restrição hipotética e a levada a efeito por vários decretos de lockdown é evidente. Por vários deles, de maneira até mais gravosa, há a obrigação de permanência em casa para todas as pessoas, independentemente de suspeita ou contaminação, sendo o trânsito autorizado em poucas situações[11]. Por decreto — insisto —, cidades puseram seus munícipes em uma prisão domiciliar sui generis, chegando ao cúmulo de proibir e sancionar o contato entre familiares[12]. A essa altura, não é mais novidade a aplicação de multas e a detenção de pessoas que circulam em áreas de passeio público[13]. Sob nossos narizes, a liberdade tornou-se a exceção.

Então, como proteger a vida das pessoas frente a uma propagação viral que tem nelas seu principal vetor? Pela aplicação científica do critério da proporcionalidade. Se várias são as medidas adequadas para a redução da velocidade de contágio, qual delas guarda suficiência e menor impacto sobre outros direitos fundamentais?

As possibilidades são imensas. Campanhas educativas para o distanciamento social, regimes de trabalho remoto, aumento substancial de oferta no transporte público, limitação do número de pessoas em ambientes fechados abertos ao público, ampliação dos horários de atendimento em serviços essenciais, testagem em massa, controle rigoroso no cumprimento de quarentena para os suspeitos e o isolamento de infectados, uso obrigatório de máscaras para a população em geral, etc. No entanto, qual plano de ação está sendo adotado hoje[14]? Que medidas foram efetivamente realizadas, fiscalizadas e mensuradas? Quais modelos de análise subsidiam as restrições aplicadas? Não se sabe.

Enquanto isso, as contenções decretadas parecem justificadas a olhos comuns, mormente quando, de um lado, o presidente da República coleciona crimes de responsabilidade e ignora autoridades sanitárias nacionais e internacionais[15]; de outro, o Ministério da Saúde declara que estamos “navegando às cegas” porque “não se sabe o que fazer”[16]. Por crível desespero de Prefeitos, criminalizar[17] o exercício de direitos fundamentais de locomoção e reunião passou a ser visto como alternativa plausível quando, em um estado de normalidade constitucional[18], não o é.

Independentemente das recomendações sanitárias, a Constituição não é derrogável por nenhum chefe de Poder Executivo. A essa altura, urge que a magistratura aja como sua última guarda defensiva ou, in dubio, pro liberdade, abstendo-se de ativismos despóticos. Parte da dificuldade de preservação de um sistema de liberdade está na exigência de uma constante rejeição de medidas aparentemente importantes para assegurar determinados resultados, mesmo sem que se saiba os custos dessa escolha[19]. O sistema de direitos e garantias fundamentais deve ser respeitado, inclusive — e sobretudo — em momentos de crise.

 


[8] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. v. 4. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 338-340.

 é advogado, professor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) e doutorando em Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade de Coimbra.

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Malta e Scartezini: Poder público e serviços privados

Na atual conjuntura nacional, os tribunais têm sido cada vez mais demandados para solucionar litígios. Consequentemente, o Poder Judiciário tem se fortalecido institucionalmente, dirimindo controvérsias emblemáticas que envolvem temáticas de suma importância. Na prática, verificamos a judicialização da vida em geral, tanto sob a ótica quantitativa quanto qualitativa.

A judicialização decorre da própria evolução da sociedade, que, muitas vezes, acontece mais celeremente do que a edição de novas normas para regular condutas. Nesses casos, as partes acabam por acionar o Poder Judiciário para que esse se posicione sobre a pretensão resistida e solucione o litígio perpetrado no caso concreto, que pode não ter sido contemplado pelos Poderes Executivo e/ou Legislativo.

A judicialização quantitativa é percebida ao analisar o número crescente de ações judiciais em curso. De acordo com o ministro Luís Roberto Barroso [1], esse fato revela diversas circunstâncias favoráveis e desfavoráveis. Entre essas, cita-se a conscientização progressiva da sociedade civil e a confiança que essa deposita nas instituições, como forma de buscar justiça. Por outro lado, a judicialização também pressupõe um conflito, que se traduz, na maioria das vezes, no reiterado inadimplemento dos deveres e obrigações.

Ainda de acordo com o ministro, é possível vislumbrar a judicialização qualitativa por meio da utilização do Poder Judiciário para discutir temas extremamente relevantes, como questões políticas, econômicas, sociais e éticas, de repercussão nacional, que provocam indubitáveis efeitos na vida da sociedade civil.

Entre os assuntos que vêm sendo constantemente levados às cortes, temos a judicialização da saúde. Isso porque, com a consolidação do Estado Democrático de Direito, houve a superveniência de um cenário no qual a Constituição Federal é o elemento central, acompanhada da proeminência judicial.

Desse modo, a saúde foi enaltecida como direito fundamental tutelado pela Constituição Federal e inserida na seara dos direitos sociais. Nesse sentido, a Carta Magna reconhece a coletividade como titular do direito à saúde e o Estado como responsável por garanti-lo e efetivá-lo, mediante a implementação de políticas públicas que objetivem promover o acesso universal e igualitário a ações e serviços para reduzir o risco de doença.

Ocorre que, na prática, visualizamos a superlotação da rede pública de saúde, que, por diversas vezes, carece de vagas em suas dependências para atender devidamente à população. Desse modo, o interessado acaba por acionar o Poder Judiciário para dirimir a controvérsia.

Nesse passo, quando a demanda possui os requisitos para o deferimento e, de fato, a rede pública não possui vaga para atender o autor da ação judicial, surge o questionamento: como proceder?

Ora, no caso hipotético explanado, o direito à saúde já foi reconhecido e o Estado não fica desobrigado a efetivá-lo somente por não dispor de vaga para atender à decisão judicial.

Desse modo, o Poder Judiciário pode determinar o atendimento e o tratamento do autor da demanda em hospital particular, sendo que as despesas deverão ser arcadas pelo ente público.

No entanto, surge o questionamento se os valores que o Estado deve pagar a título de serviços médicos que, por ordem judicial, foram prestados pela unidade hospitalar privada devem sofrer a limitação da tabela do SUS. Isso porque a instituição privada não firmou qualquer contrato ou convênio com o ente federativo, o que provoca uma nova judicialização do conflito. Nessa senda, o recurso extraordinário que tramita no Supremo Tribunal Federal, sob repercussão geral, discute a temática registrada sob o n.° 1033.

No caso em comento, o Estado defende que lhe impor o pagamento dos serviços médicos com base no preço arbitrado pelo hospital privado violaria os artigos 5°, caput, 196 e 199, §1°, da CF, visto que a Constituição dispõe que as instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde (SUS) mediante contrato de direito público ou convênio. Ocorre que, nas instituições privadas conveniadas ou contratadas pelo Estado, o reembolso de despesas médicas é efetuado de acordo com a tabela do SUS, e não com base nos valores de mercado.

Desse modo, na ação judicial em comento, o Estado defende que pagar a uma instituição privada que presta serviço ao Estado preço diferente do que geralmente é pago para a mesma atividade viola, frontalmente, o princípio da isonomia. Além disso, aduz que a Lei Maior prevê um regime específico de contratação e remuneração da rede complementar de saúde.

A discussão acerca do pagamento de serviços de saúde prestados por ordem judicial, em razão de anterior frustração de atendimento na rede pública, é de extrema relevância, sobretudo no cenário atual da pandemia provocada pela Covid-19, em que todo o sistema de saúde está sendo acometido por uma sobrecarga extraordinária.

Nesse sentido, ganham ressonância os princípios da ordem econômica, da livre iniciativa e da propriedade privada. É incontroverso que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, como consagrado pela Lei Maior. Desse modo, há entendimento de que vincular o ressarcimento a valores e critérios previamente determinados pelo SUS a uma instituição privada, que foi obrigada a suprir uma falha de atendimento do Poder Público, mitiga a livre iniciativa em violação à garantia da propriedade privada.

Embora ainda não tenha sido apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, o tema é de extrema relevância e a corte reconheceu a evidente repercussão geral da questão constitucional sob os pontos de vista econômico, político, social e jurídico.

 é estagiária no escritório Malta Advogados, bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e membro do grupo de estudos “Constitucionalismo Fraternal”, sob a orientação do ministro Carlos Ayres Britto.

 é sócio-fundador do escritório Malta Advogados, professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília (UnB) e secretário-geral da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB.