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O papel do Direito econômico diante da crise da Covid-19

Na presente crise da pandemia da Covid-19, o papel de organização do processo econômico do direito econômico se torna evidentemente fundamental. Essa importância não se deve a uma situação que muitos equiparam, equivocadamente, à chamada “economia de guerra”. Afinal, a “economia de guerra” exige a mobilização total dos fatores de produção para o esforço de derrotar o inimigo.

No entanto, paradoxalmente, como já perceberam alguns autores, como James Meadway e Adam Tooze, a atual crise sanitária exige justamente a desmobilização de vários setores da economia, como vários segmentos da prestação de serviços, enquanto outros, como o setor industrial, por exemplo, devem ser não só mobilizados, como até ampliados. Tornou-se imprescindível ter que garantir a renda das pessoas, independentemente de estarem empregadas ou não, o abastecimento de produtos básicos e o funcionamento contínuo dos serviços essenciais exigindo a suspensão da lógica mercantil que vem dominando as relações econômicas e sociais nas últimas décadas. Como muito bem afirma Victor Marques, a mobilização dos poderes públicos trata, na atual conjuntura, “da necessidade de uma desmobilização massiva, racional e planejada”. O planejamento e a estruturação do processo econômico exigem, no entanto, uma atuação mais presente e intensa do Estado por meio do direito econômico.

Nos Estados Unidos, o Presidente Donald Trump, após proclamar Emergência Nacional em virtude da pandemia da Covid-19, baixou a Ordem Executiva 13.909 em 18 de março de 2020, atribuindo os poderes inscritos no Título I do Defense Production Act de 1950 ao Secretário de Saúde (Secretary of Health and Human Services) para que possa priorizar e alocar todos os recursos médicos e sanitários necessários para combater a pandemia nos Estados Unidos. Foram baixadas, ainda, a Ordem Executiva nº 13910, em 23 de março de 2020, atribuindo ao Secretário de Saúde autoridade para impedir a acumulação excessiva de produtos médico-hospitalares ou a sua aquisição visando a revenda acima dos preços de mercado, e a Ordem Executiva 13.911, de 27 de março de 2020, delegando a mesma autoridade e poderes também ao Secretário de Segurança Interna (Secretary of Homeland Security). O Defense Production Act de 1950 confere ao Presidente (ou às autoridades a quem ele delegar expressamente) uma série de poderes e competências para reestruturar e mobilizar a economia, dirigir e incentivar as indústrias norte-americanas no interesse da defesa nacional.

No Brasil, havia a previsão expressa na nossa legislação de inúmeros instrumentos, similares às medidas presentes no Defense Production Act de 1950, que possibilitariam ao Governo ser capaz de lidar com as situações de crise, como a da atual pandemia da Covid-19. Neste sentido, destaca-se a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, elaborada no período parlamentarista do Governo João Goulart, que tinha por objeto regular como o Governo poderia atuar para assegurar a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo. Tratava de medidas excepcionais para o caso de crises de abastecimento.

O Poder Público Federal tinha o poder de comprar, armazenar, distribuir e vender, entre outros produtos, medicamentos, artigos sanitários e artefatos industrializados de uso doméstico e produtos e materiais indispensáveis à produção daqueles bens (artigo 2º, I, ‘e’, ‘i’ e ‘k’ da Lei Delegada nº 4). Ficava o Poder Executivo autorizado a fixar preços e controlar o abastecimento, incluindo produção, transporte, armazenamento e produção, desapropriar ou requisitar bens e serviços necessários, sempre mediante indenização, e promover estímulos à produção (artigo 2º, II, III e IV da Lei Delegada 4), podendo, inclusive, adquirir bens e serviços no estrangeiro, caso necessário (artigo 2º, §1º da Lei Delegada 4). A Lei Delegada 4/1962 ainda autorizava aos órgãos responsáveis pelo controle do abastecimento a regulação e disciplina da produção, distribuição e consumo de matérias-primas (artigo 6º, II), a regulação e disciplina da circulação e distribuição dos bens, podendo proibir a circulação ou estabelecer prioridades para o transporte e armazenamento (artigo 6º, I), instituir o tabelamento de preços máximos (artigo 6º, III e IV), manter estoque de mercadorias (artigo 6º, VII), entre outras medidas a serem empregadas em caso de necessidade ou em atendimento ao interesse público.

Percebe-se, assim, que a Lei Delegada 4/1962 dotava o governo de instrumentos fundamentais, muitos deles inspirados na legislação norte-americana, para poder agir em caso de graves crises, como a pandemia atual. No entanto, por motivos puramente ideológicos, o Brasil ficou sem a possibilidade de empregar as medidas previstas pela Lei Delegada 4/1962, tendo em vista a sua revogação expressa pelo artigo 19, I da Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, a chamada “Lei da Liberdade Econômica”.

Com a revogação da Lei Delegada 4/1962, perderam-se os parâmetros legais para a atuação do Estado em momentos de graves crises econômicas e sociais. As medidas previstas na Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que estabelece as medidas a serem tomadas no enfrentamento da emergência sanitária causada pela pandemia da Covid-19 não têm a mesma abrangência e não conferem a mesma possibilidade de atuação para o Estado, particularmente no que diz respeito à requisição de bens e serviços (artigo 3º, VII).

Como é fácil perceber, o papel do Estado e do direito econômico são essenciais para o combate à pandemia e aos efeitos negativos das crises econômica e sanitária. Mas o direito econômico, em um Estado capaz de planejar e reestruturar os fatores de produção, é ainda mais importante para a reorganização do processo produtivo brasileiro no período pós-crise. E isto é ainda mais fundamental se levarmos em consideração a afirmação do historiador alemão Reinhart Koselleck, de que uma das principais características do Estado moderno em seu processo de formação foi a de se arrogar o monopólio da dominação do futuro. Um Estado, como o atual Estado brasileiro, que abre mão de planejar o futuro, desta forma, abre mão de uma das características fundamentais da sua própria estatalidade.


James MEADWAY, “The Anti-Wartime Economy”, Tribune, 19 de março de 2020, <https://tribunemag.co.uk/2020/03/the-anti-wartime-economy> e Ezra KLEIN, “What Both the Left and the Right Get Wrong about the Coronavirus Economic Crisis: Financial Historian Adam Tooze on the Lessons Policymakers Need to Learn, and Fast”, Vox, 28 de março de 2020, <https://www.vox.com/2020/3/28/21195207/coronavirus-covid-19-financial-crisis-economy-depression-recession>.

Victor MARQUES, “Do Keynesianismo de Coronavírus à Antiguerra Permanente”, Autonomia Literária, 4 de abril de 2020, <https://autonomialiteraria.com.br/do-keynesianismo-de-coronavirus-a-antiguerra-permanente>.

Para uma análise do Defense Production Act de 1950, vide Gilberto BERCOVICI, “COVID-19, o Direito Econômico e o Complexo Industrial da Saúde” in Walfrido WARDE & Rafael VALIM (coords.), As Consequências da COVID-19 no Direito Brasileiro, São Paulo, Contracorrente, 2020, pp. 253-257.

Vide o percurso histórico em Alberto VENÂNCIO Filho, A Intervenção do Estado no Domínio Econômico: O Direito Público Econômico no Brasil, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1968, pp. 117-119, 225-239 e 364-365 e Maria Yedda Leite LINHARES & Francisco Carlos Teixeira da SILVA, História Política do Abastecimento (1918-1974), Brasília, Binagri Edições, 1979, pp. 89-117 e 156-173.

As competências normativas da Lei Delegada nº 4/1962 eram atribuídas exclusivamente à União, cabendo aos Estados, quando fosse o caso, a sua execução, conforme determinava expressamente seu artigo 10: “Compete à União dispor normativamente, sôbre as condições e oportunidade de uso dos podêres conferidos nesta lei, cabendo aos Estados a execução das normas baixadas e a fiscalização do seu cumprimento, sem prejuízo de idênticas atribuições fiscalizadoras reconhecidas à União.

§1º – A União exercerá suas atribuições através de ato do Poder Executivo ou por intermédio dos órgãos federais a que atribuir tais podêres.

 §2º – Na falta de instrumentos administrativos adequados, por parte dos Estados, a União encarregar-se-á dessa execução e fiscalização.

 §3º – No Distrito Federal e nos Territórios a União exercerá tôdas as atribuições para a aplicação desta lei”.

  Artigo 2º, I da Lei Delegada nº 4/1962: “A intervenção consistirá: I – na compra, armazenamento, distribuição e venda de: a) gêneros e produtos alimentícios; b) gado vacum, suíno, ovino e caprino, destinado ao abate; c) aves e pescado próprios para alimentação; d) tecidos e calçados de uso popular; e) medicamentos; f) Instrumentos e ferramentas de uso individual; g) máquinas, inclusive caminhões, “jipes”, tratores, conjuntos motomecanizados e peças sobressalentes, destinadas às atividades agropecuárias; h) arames, farpados e lisas, quando destinados a emprêgo nas atividades rurais; i) artigos sanitários e artefatos industrializados, de uso doméstico; j) cimento e laminados de ferro, destinados à construção de casas próprias, de tipo popular, e as benfeitorias rurais; k) produtos e materiais indispensáveis à produção de bens de consumo popular”.

Artigo 7º da Lei Delegada nº 4/1962: “Os preços dos bens desapropriados, quando objeto de tabelamento em vigor, serão pagos previamente em moeda corrente e não poderão ser arbitrados em valor superior ao do respectivo tabelamento.

Parágrafo único. Quando o bem desapropriado não fôr sujeito a prévio tabelamento, os preços serão arbitrados tendo em vista o custo médio nos locais de produção ou de venda” (redação alterada pelo Decreto Lei nº 422, de 20 de janeiro de 1969).

  Artigo 2º, II, III e IV da Lei Delegada nº 4/1962: “A intervenção consistirá: II – na fixação de preços e no contrôle do abastecimento, neste compreendidos a produção, transporte, armazenamento e comercialização; III – na desapropriação de bens, por interêsse social; ou na requisição de serviços, necessários à realização dos objetivos previstos nesta lei; IV – na promoção de estímulos, à produção”.

Artigo 2º, §1º da Lei Delegada nº 4/1962: “§1º – A aquisição far-se-á no País ou no estrangeiro, quando insuficiente produção nacional; a venda, onde verificar a escassez”.

  Artigo 6º da Lei Delegada nº 4/1962: “Para o contrôle do abastecimento de mercadorias ou serviços e fixação de preços, são os órgãos incumbidos da aplicação desta lei, autorizados a: I – regular e disciplinar, no território nacional a circulação e distribuição dos bens sujeitos ao regime desta lei, podendo, inclusive, proibir a sua movimentação, e ainda estabelecer prioridades para o transporte e armazenamento, sempre que o interêsse público o exigir; II – regular e disciplinar a produção, distribuição e consumo das matérias-primas, podendo requisitar meios de transporte e armazenamento; III – tabelar os preços máximos de mercadorias e serviços essenciais em relação aos revendedores; IV – tabelar os preços máximos e estabelecer condições de venda de mercadorias ou serviços, a fim de impedir lucros excessivos, inclusive diversões públicas populares; V – estabelecer o racionamento dos serviços essenciais e dos bens mencionados no art. 2º, inciso I, desta lei, em casos de guerra, calamidade ou necessidade pública; VI – assistir as cooperativas, ligadas à produção ou distribuição de gêneros alimentícios, na obtenção preferencial das mercadorias de que necessitem; VII – manter estoque de mercadorias; VIII – superintender e fiscalizar através de agentes federais, em todo o País, a execução das medidas adotadas e os serviços que estabelecer”.

Para uma análise das inúmeras inconstitucionalidades e decisões equivocadas da “Lei da Liberdade Econômica” vide Gilberto BERCOVICI, “Parecer sobre a Inconstitucionalidade da Medida Provisória da Liberdade Econômica (Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019)”, Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico nº 15, março/agosto de 2019, pp. 173-202 e Gilberto BERCOVICI, “As Inconstitucionalidades da ‘Lei da Liberdade Econômica’ (Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019)” in Luís Felipe SALOMÃO; Ricardo Villas Bôas CUEVA & Ana FRAZÃO (coords.), Lei da Liberdade Econômica e seus Impactos no Direito Brasileiro, São Paulo, RT, 2020, pp. 123-152.

Vide, por todos, Leonardo CORREA, “O Dogmatismo do Livre Mercado, a Pandemia e Direito”, Portal Disparada, 20 de março de 2020, <https://portaldisparada.com.br/direito-e-judiciario/lei-delegada>.

Artigo 3º, VII da Lei nº 13.979/2020: Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

Reinhart KOSELLECK, “Vergangene Zukunft der frühen Neuzeit” in Vergangene Zukunft: Zur Semantik geschichtlicher Zeiten, 4ª ed, Frankfurt-am-Main, Suhrkamp, 2000, pp. 25-26.

 é advogado, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e professor nos programas de pós-graduação em Direito do Mackenzie e da Uninove.

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Dá medo ver quem chama o PGR de “omisso”, escreve Barbosa

(texto reproduzido do site Poder 360)

Edson Barbosa, o autor, é jornalista e publicitário. É consultor em comunicação de interesse público, nos segmentos institucional, corporativo e político. Coordena e desenvolve projetos no Brasil e América Latina.

A diferença entre o medo e a covardia é que o medo é uma sensação inerente ao ser humano, sobretudo o medo do desconhecido; a covardia é um traço abjeto do caráter. Geralmente são covardes os fanfarrões, os omissos, os dolosos que agem em beneficio exclusivo do chefe e mais exclusivamente ainda, de si próprios.


Falo do chefe sistêmico, ao qual serve o covarde, no trabalho, em casa, na igreja, na vida. Falo do chefe autoritário, impositivo, que lhe impõe uma mentira. E diante dele, o covarde se dobra. E redobra. E vai ser covarde na vida.

Conheço Augusto Aras desde a adolescência. Considero-o meu irmão. Lutamos toda a nossa vida, enfrentando covardes de todo tipo, tangidos pela utopia de um mundo novo, onde a todos sejam garantidas as suas necessidades. E a cada um, de acordo com a sua capacidade, desde quando essa capacidade tenha sempre por objetivo, o benefício de todos, sem exclusão.


Enfrentamos os grileiros e jagunços da Bahia sob a liderança de seu pai, deputado federal Roque Aras. Ajudamos a libertar a oposição da Bahia, em plena ditadura militar, das garras de Antônio Carlos Magalhães.

Tomamos o velho MDB de resistência das mãos do adesista Ney Ferreira e o entregamos nas mãos honradas de Romulo Almeida, para que pudéssemos iniciar a construção da democracia na Bahia, a partir de 1978. Waldir, o início; Lídice, Paulo Souto, Wagner e Rui hoje, Neto, Otto, Olívia, quem sabe o futuro, para ficar nos mais relevantes.

Entre os anos de chumbo e a prisão domiciliar em que nos encontramos agora, Roque Aras, pai de Augusto, dedicou-se com todas as forças a construir uma das mais públicas e transparentes histórias de vida, na família, na política e na justiça. Na moral, na ética possível, pois é desconhecida, temerosa, a ética, na convivência humana.

Quando Augusto foi convocado pelo presidente Bolsonaro para ser procurador-geral da República eu disse ao profissional que estava na minha frente: “…É o topo da sua carreira, a responsabilidade maior. Que bom ter aceitado a missão. Por mais que você tenha feito coisas corretas na vida, daqui pra frente você valerá unicamente pelo que vier a fazer: seu silêncio, sua palavra, seu tinteiro, sua caneta. Significo muito pouco, mas estou ao seu lado, seu amigo, seu irmão”.

Me causa medo ver pessoas chamando o procurador-geral da República de omisso, de advogado-geral de Bolsonaro e outras palavras. Lutei com todas as minhas energias pela autonomia e efetividade do Ministério Público, como única força capaz de enfrentar a covardia do poder judiciário como funcionava no Brasil, quase sempre de modo covarde, venal, contra a sociedade. Sou testemunha de promotoras e promotores de justiça como Dr. Rodolfo, promotor honrado do Irará, Carlos Cintra, Itana Viana, Vanderlino, Zunita, Aquiles Siquara.

De procuradores federais como Zé Raimundo Aras (irmão de Roque, tio de Augusto, pai do procurador federal Wladimir Aras). Zé Raimundo foi assassinado em combate por pistoleiros do tráfico. Chamar um promotor de Justiça dessa estirpe de “omisso” e outras palavras pode incorrer em covardia, se ao fim e ao cabo, diante da Constituição Federal, omisso ele não for. Se defensor político de uma parte ele não for. Se vulnerável às ofensas que lhe dirigem, ele não for.

Brindeiro foi engavetador porque assim se provou. Janot e Raquel Dodge foram frágeis e incapazes porque assim se provaram. A Augusto Aras, pelas atitudes que tomou até aqui na PGR, o meu respeito, em nome do meu mestre Ariano Suassuna, “…sou um realista esperançoso”. O realismo e a esperança.

Não o vejo como omisso, mas, antes, como um homem competente, responsável, prudente, ciente de que tem nas mãos uma caneta que não é merchandising de marca, pois tem na tinta o sangue do povo brasileiro. A morte ou a vida.

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Gustavo Ramiro: MP reduz impacto no setor de turismo

A pandemia da Covid-19, reconhecida e deflagrada no Brasil em meados do mês de março, vem causando um grande impacto em praticamente todos os setores produtivos. A economia nacional apresenta cenários desafiadores ante a completa paralisação das atividades em diversos segmentos.

Turismo, lazer e cultura, tradicionalmente, são vetores de grande importância na economia global. Segundo dados do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC — World Travel & Tourism Council), o impacto direto, indireto e induzido de viagens e turismo no ano de 2019 foi responsável pela contribuição de US$ 8,9 trilhões para o PIB mundial, representando 10,3% do PIB global, além de gerar 330 milhões de empregos em todo o mundo.

Já no Brasil, também segundo o WTTC, o setor responde por 7,7% do PIB nacional, além de ocupar 7,9% de todos os postos de trabalho no país, demonstrando a importância do segmento no contexto econômico atual.

Por outro lado, a chegada da crise gerada pela pandemia da Covid-19 trouxe imensos prejuízos às empresas e pessoas que prestam serviços no ramo de turismo, lazer e cultura. A impossibilidade de se utilizar o transporte aéreo, a imposição de isolamento social e o fechamento temporário da grande maioria dos estabelecimentos e equipamentos públicos coletivos são as causas mais evidentes dos pedidos de cancelamento e desistência de reservas já realizadas anteriormente pelo público consumidor. O quadro se alastra com a impossibilidade de se realizar conferências, seminários, congressos, feiras e outras atividades corporativas que também influenciam na atividade.

A preocupação do setor vem sendo exposta de maneira reiterada na mídia e em publicações especializadas. A principal meta em busca da preservação da atividade é de manutenção das viagens e programações já contratadas. Incentiva-se, sobretudo, a remarcação para período posterior à crise. Essa parece a única maneira de evitar um colapso generalizado e a falência das operações ligadas ao turismo, lazer e cultura.

De todo modo, malgrado o correto direcionamento das campanhas publicitárias que destacam esta necessidade, é fato que todos os fornecedores de serviços e produtos ligados à atividade em questão estão a receber um número absurdo de pedidos de cancelamento e desistência. Isso gerou, num primeiro momento, a necessidade de ressarcimento, ainda que proporcional, dos valores recebidos.

Obviamente, o fluxo de caixa da grande maioria das empresas não permite uma descapitalização em massa, com a concomitante restituição de valores pagos pelos consumidores, ainda que se refiram a eventos e atividades futuras.

Diante desse cenário e de um iminente rompimento das condições de manutenção das atividades do setor, foi adotada pelo Governo Federal a Medida Provisória nº 948/2020, que especificamente “dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19)”.

A norma em questão, sem dúvidas, representa um importante instrumento para o setor de turismo, lazer e cultura ao relativizar a obrigação de restituição imediata de valores por partes dos prestadores de serviço e fornecedores de produtos, desde que atendidas algumas condições.

Detalhemos essas hipóteses.

A regra geral prevista é a da não obrigatoriedade de reembolso dos valores pagos pelo consumidor, desde que fique assegurada: I) a remarcação dos serviços, das reservas ou dos eventos cancelados; II) a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou III) outro acordo a ser formalizado com o consumidor.

São condições para qualquer das hipóteses da regra geral que não haja custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, caso a solicitação seja efetuada no prazo de 90  dias, bem como que o crédito eventualmente disponibilizado seja utilizado pelo consumidor no prazo de até 12 meses, contados da data de encerramento do estado de calamidade pública.

Já a regra excepcional abriga soluções não desejáveis, mas também consideradas válidas e menos prejudiciais do que a imediata restituição de valores. Abre-se, assim, a possibilidade secundária de restituição a prazo do valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente, no período de até 12 meses. Nesse caso, a devolução pode ser realizada de modo parcelado, desde que respeitado o prazo estipulado, ou em uma única parcela dentro desse mesmo lapso.

Estabelecidas essas formas de solução do problema ligado a reservas e eventos, conforme expressamente contemplado pelo artigo 2º da MP nº 948/2020, também ficou previsto que precisa ser considerada a sazonalidade e o valor dos serviços originalmente contratados, respeitando-se, em qualquer caso, o prazo de 12 meses, este sempre contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 06/2020.

Isso quer dizer que não poderá o consumidor, por exemplo, utilizar uma reserva em período futuro de alta estação ou data comemorativa de maior fluxo de pessoas se ela originalmente foi contratada para um período de baixa estação ou época menos concorrida.

Na hipótese de contratos de shows artísticos, firmados antes da vigência da MP nº 948/2020, o regime segue a mesma lógica.

Nesse caso, a regra geral é de que os artistas que tiverem suas apresentações canceladas não estão obrigados a reembolsar imediatamente os valores dos serviços ou cachês. A condição é que o evento seja remarcado e ocorra no mesmo prazo de 12 (doze) meses. Igual previsão é válida para diversos outros diversos tipos de evento, a exemplo de shows, rodeios, espetáculos musicais e de artes cênicas.

Já a regra excepcional é aplicável em caso de não se chegar a nenhuma das soluções que preservem a relação contratual. Prevê-se, assim, que a não prestação do serviço deverá ser secundada da restituição do valor recebido, devidamente atualizado monetariamente, também no prazo de até 12 meses.

Em conclusão, anota-se que a MP nº 948/2020 prestigia a continuidade da relação contratual e a manutenção da avença pactuada, ainda que admita a postergação da respectiva execução. Adota-se, em sequência, uma solução alternativa, admitindo-se o desfazimento do contrato mediante restituição de valores em prazo razoável, tendo-se em conta os prolongados efeitos da crise decorrente da pandemia da Covid-19. Nessa última solução, não há prejuízo aparente imediato ao consumidor, pois apesar de ser ter que aguardar um prazo de 12 meses, exige-se a atualização dos valores devidos pelo IPCA-E.

Por óbvio, ainda que a norma traga soluções preconcebidas, todas as negociações consensuais poderão ser levadas a cabo livremente pelas partes, ainda que suplantando ou relativizando prazos e condições previstas na MP nº 948/2020. Os acordos bilaterais continuam sendo válidos, para qualquer caso, sendo desejável sua homologação judicial para segurança de ambas as partes. A mediação também pode servir de importante instrumento para apaziguar eventuais conflitos.

Por fim, o artigo 5º da MP nº 948/2020 também adota uma regra que, em nossa avaliação, acaba por prevenir conflitos que poderiam ocorrer em busca de indenizações por dano moral, ao reconhecer que as relações de consumo citadas caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior, não ensejando qualquer dano natureza extrapatrimonial.

As regras propostas pela novel legislação, portanto, orientam situações em que o consenso não é alcançado, proporcionando soluções transitórias e equilibradas, na busca da normalização do mercado de turismo, lazer e cultura, não sem exigir de todos os envolvidos algum desprendimento e sentimento de coletividade.

 é advogado e sócio-fundador do escritório Duarte & Ramiro Advogados Associados.

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Conselheira do CNJ alerta para o impacto de fake news na Justiça

A ampla mobilização para combater a circulação de notícias falsas na internet é o caminho para garantir a integridade da sociedade e a credibilidade da instituição jurídica diante de distorções, inclusive, de decisões judiciais e sobre as atividades do Poder Judiciário.

Conselheira Tânia Reckziegel é presidente da Comissão Permanente de Comunicação do Poder Judiciário do CNJ Agência CNJ

Para a presidente da Comissão Permanente de Comunicação do Poder Judiciário do Conselho Nacional de Justiça, conselheira Tânia Reckziegel, a atuação do CNJ por meio do Painel de Checagem de Fake News contribui no sentido da transformação paulatina da consciência social em relação à divulgação de falsas notícias.

“Todos os segmentos, inclusive o dos meios de comunicação, devem criar mecanismos de controle interno que, aliados às normas jurídico-administrativas, sejam mais eficientes no combate a esse mal”, afirmou a conselheira.

O Painel de Checagem foi criado há um ano pelo CNJ com o apoio e parceria de entidades, instituições e veículos de comunicação com atuação em checagem de fake news — a ConJur é um dos veículos que colaboram.

As ações estão voltadas ao esclarecimento sobre publicações suspeitas disseminadas pela internet nas redes sociais. Uma das iniciativas do Painel foi a campanha #FakeNewsNão, que divulgou no último dia 1º de abril chamado Dia da Mentira posts, vídeos, textos e artes no Twitter para esclarecer sobre os danos provocados por informações falsas.

“É necessário, tanto para a população quanto para o magistrado, desenvolver um espírito crítico em relação a toda e qualquer informação ou conteúdo que se receba, analisando o contexto e verificando se o texto apresenta qualidade de redação, quem é o autor, se foi reproduzido na imprensa tradicional”, destacou Tânia em entrevista à Agência CNJ de Notícias.

Leia a entrevista:

Qual a importância do Painel de Checagem de Fake News, que conta com o trabalho e participação de diversas entidades, instituições e veículos de comunicação?

A crescente desinformação e a propagação de falsas notícias em mídias e redes sociais vêm acarretando à sociedade uma alienação preocupante. A evolução da tecnologia e das ferramentas de comunicação conferiu também uma celeridade à disseminação de conteúdo. A conscientização da população e a educação da sociedade acerca dos prejuízos trazidos pela desinformação e propagação de notícias falsas é o escopo maior do Painel Multissetorial. Ele amplia a mobilização para combater as falsas notícias, buscando garantir a integridade da sociedade e a credibilidade da instituição jurídica, a partir do enfrentamento das distorções das decisões judiciais e a duplicação dessas deturpações. Com a iniciativa deste Painel, cria-se uma corrente com diversas entidades que trabalham em conjunto para enfrentar a desinformação e a disseminação de falsos relatos.

Depois de um ano de painel, é possível perceber diferença na quantidade de disparos de notícias mentirosas na Internet ou serviços de telefonia?

As práticas de informação hoje constituem uma atividade cada vez mais organizada, sofisticada, e que vêm contando com mais recursos, tanto financeiros como tecnológicos. O resultado é o aumento do desafio para quem queira combater as fake news, porque não só aumentam em termos de quantidade, mas em novos formatos que são utilizados. É possível perceber uma preocupação na população como um todo relativamente às notícias que se espalham. Nos grupos de aplicativos de comunicação, já se percebe uma maior conscientização em analisar a veracidade de determinado relato para seu compartilhamento. Mas é de conhecimento que esse ato de transformação da consciência social em relação à divulgação de falsas notícias é tarefa paulatina, de modo que essas diferenças também serão percebidas gradativamente.

Muitas vezes, uma das consequências das fake news é transformar uma minoria “falante” em uma suposta maioria. Os representantes do sistema de Justiça, como parte da sociedade, muitas vezes recebem esses conteúdos digitais e até podem vir a ser influenciados por eles. Qual o impacto das notícias falsas no trabalho dos magistrados?

Como já ressaltou o ministro Aloysio Corrêa da Veiga (ex-conselheiro do CNJ), pela incorporação e repercussão na sociedade, as redes sociais começam a ser classificadas como um novo poder. As falsas notícias têm grande poder de serem espalhadas rapidamente e em grande massa, acarretando uma penetração do material inverídico na sociedade. E esse poder viral dos falsos relatos pode vir a influenciar na tomada de decisões. Com efeito, essa consciência coletiva que se pretende alcançar acerca da busca pela informação e veracidade deve, sobretudo, abarcar os magistrados. Cabe ao juiz, portanto, como autoridade representativa da Justiça, buscar o aclaramento de questões distorcidas, fortalecendo a credibilidade da instituição judiciária.

Como os juízes, desembargadores, conseguem se blindar dessa pressão? E, se não conseguem, qual o efeito negativo disso na sociedade?

Algo que deve ser sempre lembrado é que não existe neutralidade na população, na qual se inserem juízes e desembargadores. Ser neutro é ser indiferente e isso não se confunde, em um campo hermenêutico, com imparcialidade. Aquele que convive em sociedade não está atingido pela neutralidade, pois está inserido em um sistema cultural próprio, com ideologias inerentes ao convívio social. Assim, como dito anteriormente, as falsas notícias têm grande poder de penetração na sociedade, pelo modo e celeridade com que são disseminadas, de modo que os magistrados também são suscetíveis de sofrer com os efeitos da propagação dos falsos relatos. Cumpre aos juízes e desembargadores filtrarem as informações que lhes chegam, buscando a fonte da informação, debatendo com assessorias de comunicação social, procedendo, enfim, à checagem da notícia.

É necessário, tanto para a população quanto para o magistrado, desenvolver um espírito crítico em relação a toda e qualquer informação ou conteúdo que se receba, analisando o contexto e verificando se o texto apresenta qualidade de redação, quem é o autor, se foi reproduzido na imprensa tradicional, enfim, o que chamei de checagem.

Na sua opinião, a Justiça fica vulnerável com essa disseminação de mensagens falsas por internet, aplicativos e telefonia celular? 

Acredito que sim. É fato que a disseminação de falsas notícias pode atingir de algum modo os pilares da democracia, trazendo riscos e insegurança para o cidadão, acarretando na sociedade uma descrença do sistema.

É possível para a Justiça minimizar ou reduzir o envio de informação inverídica?

O Poder Judiciário tem enfrentado a disseminação de fake news em todos os seus aspectos, para que o cidadão comum possa distinguir quais meios de comunicação merecem maior credibilidade, assim como para impedir ou minimizar, tanto quanto for possível, as consequências nefastas das notícias falsas. Daí a importância dos mecanismos e grupos de checagem. O Direito se amolda à proporção em que mudam os fatos sociais e, no caso da disseminação de falsas notícias, não é diferente.

O CNJ, assim como outros órgãos da Justiça, pode fazer ainda mais para combater a disseminação de mensagens falsas?

Os avanços tecnológicos se dão numa velocidade absurdamente maior do que a capacidade de adequação do Poder Judiciário em coibir os abusos. Como a desinformação é multissetorial, transversal e afeta todos os setores da sociedade, enfrentá-la é responsabilidade de todos. Assumir essa responsabilidade, como fez o CNJ e outros tribunais vêm fazendo, é o primeiro passo. Todos os segmentos, inclusive o dos meios de comunicação, devem criar mecanismos de controle interno que, aliados às normas jurídico-administrativas, sejam mais eficientes no combate a esse mal.

O CNJ e o STF, principalmente, têm se debruçado incessantemente sobre esse problema por meio da campanha #FakeNewsNão e do Painel de Checagem de Fake News, principais medidas hoje disponíveis a quem se propõe a enfrentar a desinformação, qual seja, a educação midiática da população, para que ela se conscientize sobre a existência do problema e conheça maneiras de não se tornar meio de sua propagação e de não ser prejudicada por ela. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.