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Oliva e Brenes: Sobre a exploração sexual infantil

A Lei nº 9.970, de 17 de maio de 2000, instituiu 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Referida lei foi editada em razão do assassinato da menina Araceli [1], em 18 de maio de 1973, à época com apenas oito anos de idade, que, antes de ser morta, foi drogada e estuprada por adolescentes de classe média alta da cidade de Vitória, crime que até hoje permanece impune.

A data foi estabelecida com o escopo de mobilizar e conscientizar a sociedade sobre o estigma, as marcas indeléveis que o abuso e a exploração sexual deixam nas crianças e nos adolescentes [2]. Isso porque o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro ao dispor que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direito e não podem ser objetos de negligência, exploração, violência, crueldade e opressão.

O abuso sexual caracteriza-se por um ato ou jogo sexual entre um ou mais adultos com uma criança ou adolescente, a fim de estimulá-los sexualmente ou utilizá-los para obter estimulação sexual para si, o que, normalmente, acontece no seio familiar por pessoas com laços parentais (pais, tios, avós, entre outros), ou seja, por pessoas que, a princípio, estariam acima de qualquer suspeita.

Já a exploração sexual ocorre com a intenção de obter vantagem financeira, quando a criança e/ou adolescente são usados como instrumentos de obtenção de lucro por quem os oferece e, também, para satisfação da lascívia de quem paga.

Infelizmente, em grande parte das vezes, esse tipo de crime consuma-se com a conivência e até mesmo colaboração dos pais.

Conforme bem analisado em valiosa cartilha do Ministério Público Federal Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul (MPF, 20- -), o abuso e a exploração sexual deixam marcas para a vida toda. As vítimas de violência sexual infantil sofrem danos físicos, podem contrair doenças venéreas e até engravidar. Além desses malefícios, os maiores danos decorrentes da violência sexual afetam a alma das crianças e adolescentes, que não conseguem se relacionar com outras pessoas, tonando-se retraídas, agressivas, sem autoestima, com tendências à depressão e ao suicídio.

Esses males impõem-nos o dever de ficarmos atentos aos primeiros sinais de que a criança e/ou adolescente sofreram violência sexual.

Entre os sinais é possível destacar: criança alegre e afetuosa que se torna retraída, triste, chorosa, irritada, agressiva, passa a ter pesadelos e sono agitado, começa a falar palavrões e a realizar gestos obscenos, demonstra demasiado interesse pelos órgãos genitais, apresenta baixo rendimento escolar, começa a ter medo de ir a lugares dos quais gostava e costumava frequentar, apresenta vermelhidão ou lesões nos órgãos genitais e sujeira incomum nas roupas íntimas, entre outras características (MPF, 20- -).

A ação ou a omissão de submeter crianças e adolescentes à exploração sexual configura crime com pena de reclusão de quatro a dez anos e multa, além de perda de bens e valores utilizados na prática criminosa em favor do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente da unidade da federação em que o crime se verificou. Incorrem nas mesmas penas o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão da criança ou adolescente à exploração sexual, consoante prevê o artigo 244-A e § 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Relevante dizer também que a Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho e o Decreto nº 6.481/2008 estabelecem que a utilização, a demanda e a oferta de criança para fins de exploração sexual, produção de pornografia ou atuações pornográficas estão entre as piores formas de trabalho infantil Lista TIP.

Outrossim, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Consolidação das Leis do Trabalho proíbem o trabalho de adolescentes em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social (ECA, artigo 63, III; CLT, artigos 403, parágrafo único, e 405, II).

Portanto, para evitar os traumas e a fissura que os atos de violência sexual provocam na alma das crianças e dos adolescentes, é preciso que atuemos de forma preventiva, adotando providências como orientar as crianças no sentido de que ninguém deve tocar suas partes íntimas (aquelas que, na menina, são cobertas pelo biquíni e, no menino, pela sunga); a não ficar sozinhas na companhia de estranhos; a gritar por socorro quando alguém tentar tocar suas partes íntimas; a não ficar sozinhas em banheiros públicos e com pessoas alcoolizadas, enfim, a proteger-se (MPF, 20- -). Necessário, também, que pais e responsáveis ou, quando estes também de alguma forma forem coniventes, cúmplices, quaisquer outros, familiares ou não, velem para que tais exposições não ocorram e supervisionem, ainda, acessos à internet e às redes sociais.

É preciso, por fim, que para vivificar o princípio da proteção integral e absolutamente prioritária que deve ser devotada a crianças e adolescentes (artigo 227 da CRFB e ECA), o Estado e a sociedade (também a comunidade, com ideia de maior proximidade), bem como a família, organizem-se para evitar que crianças e adolescentes sejam vítimas de atos (comissivos ou omissivos) de violência sexual, a fim de assegurar-lhes o desenvolvimento físico, moral, psíquico e social para que desenvolvam todas as suas capacidades e habilidades na mais absoluta plenitude, tão necessárias para o exercício de uma vida adulta saudável e realizada.

Não fique em silêncio. Denuncie. Disque 100.

“Pecar pelo silêncio, quando se deveria protestar, transforma homens em covardes”. (Abraham Lincoln)

 

Referências bibliográficas:

BRASIL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 267/1999. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD23MAR1999.pdf#page=10>. Acesso em: 16/5/2020.

BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes: Marcas para a vida toda. Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul, [20- -], [S.l.: s.n.].

 é juiz do Trabalho substituto do TRT da 15ª Região e coordenador do Juizado Especial da Infância e Adolescência (JEIA) de Presidente Prudente (SP).

 é juiz do Trabalho aposentado do TRT da 15ª Região e ex-coordenador do Juizado Especial da Infância e Adolescência (JEIA) de Presidente Prudente (SP).

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Taís Vaz: O sistema constitucional de crises e a Covid-19

O mundo atravessa uma época sombria, de rotina e ações inéditas. O indivíduo se força a ficar em casa, pela sua própria sobrevivência, com a interrupção de sua rotina habitual. D’outro lado, o Estado busca meios de passar pelo momento de crise sanitária e econômica, de nebuloso horizonte.

Fato é que, inegavelmente, nós nos encontramos em um momento de crise. E, para contextos como o atual, a Constituição Federal de 1988 traz o que a doutrina denomina de sistema constitucional das crises, composto pelas também apelidadas Válvulas de Panela de Pressão.

Esse sistema foi construído com o intuito de retomar a estabilidade em casos de tumulto institucional. São medidas excepcionais modeladas para situações de crise, como meios de resposta a determinadas anormalidades, restritas a certos locais e períodos. Por isso, regem-se pelos princípios da necessidade e da temporariedade.

A doutrina enumera como hipóteses: a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio. A primeira afasta a autonomia de determinado ente federativo, por meio da intervenção da União, nas hipóteses taxativamente previstas no artigo 34 da Constituição, com o fim de cessar conduta do ente atingido que comprometa a estabilidade institucional. As outras duas se prestam ao restabelecimento da ordem pública e paz social, às quais se restringe a presente análise.

A decretação dos estados de defesa e de sítio são de competência privativa do presidente da República, após oitiva dos Conselhos da República e da Defesa Nacional órgãos de consulta do presidente, cujo pareceres não têm caráter vinculativo. Ocorre que, diferentemente do estado de defesa, o estado de sítio pressupõe prévia aprovação do Congresso Nacional acerca da decretação por parte do presidente. Nesse caso, não havendo a aprovação, o presidente está impedido de decretá-lo.

O estado de defesa, assim como o estado de sítio, repercute em uma situação de legalidade extraordinária. Ou seja, a Administração Pública, dentro desse contexto, está autorizada a atuar em certas situações, independentemente da existência de lei, em lógica contrária à regra geral da observância do princípio da legalidade, segundo o qual toda a atuação da Administração Pública deve obediência ao previsto na lei.

Outra distinção reside no seu tempo de duração. Enquanto o estado de defesa pode ser decretado por período de até 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, uma única vez, o estado de sítio pode ser, inicialmente, decretado por 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, quantas vezes for necessário.

A decretação do estado de defesa deve estar fundada em uma das duas hipóteses do artigo 136 da Constituição: grave e iminente instabilidade institucional que ameace a ordem pública ou a paz social; ou manifestação de calamidade de grandes proporções na natureza que atinja a ordem pública ou a paz social.

Depois de ouvidos os órgãos de consulta supramencionados, o presidente da República instaura o estado de defesa por meio de decreto, que especifica as áreas abrangidas e as medidas a serem adotadas.

O decreto presidencial, então, deve ser submetido à apreciação do Congresso Nacional em até 24 horas, acompanhado da sua respectiva justificação. Em dez dias, o Congresso deve apreciá-lo e deliberar sobre a questão por maioria absoluta. Entendendo pelo seu descabimento, a medida deve ser cessada.

Durante o estado de defesa, algumas medidas anormais podem ser adotadas, conforme previsão do artigo 136, §1º, inciso I, da Carta Magna. São elas: restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondências e comunicações, bem como ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos por parte da União, nos casos de calamidade pública.

O decreto do estado de sítio, por sua vez, possui como pressupostos: comoção grave de repercussão nacional, ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia das medidas tomadas em prévio estado de defesa ou declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Durante a sua vigência, podem ser adotadas medidas ainda mais restritivas, como obrigação de permanência em determinadas localidades, restrições à prestação de informações e liberdade de imprensa, suspensão da liberdade de reunião, busca e apreensão em domicilio, intervenção nas empresas de serviços públicos e requisição de bens.

Ante todo o aqui exposto, indaga-se: diante de um sistema constitucional de crises, não seria proveitoso a sua utilização no momento atual de Covid-19? De fato, estamos em um contexto de calamidade pública expressa, com necessidades eminentes de isolamento e resguarde, que se mostram necessários para a superação desta crise do modo menos lesivo possível.

Todavia, diante de um governo de perfil eminentemente populista, de extrema preocupação com a economia e resistência expressa acerca do isolamento social, evidente que não seria de grande valia a decretação de um estado de defesa ou de sítio.

De outro lado, à parte de qualquer ideologia ou plano de ação, a adoção desse sistema constitucional de crise implica na incidência de efetivos controles políticos e judiciais, concomitantes e posteriores. Exemplos disso são os artigos 140 e 141 da Constituição.

Esses dispositivos preveem a designação de comissão especial de congressistas para fiscalizar a execução das medidas adotadas, bem como a obrigação de o presidente da República, ao final desses estados excepcionais, remeter ao Congresso mensagem com a especificação e justificação das providências adotadas.

Nem poderia ser diferente. A excepcionalidade de tais estados advém da possibilidade de adoção de condutas estatais restritivas de direitos individuais. E, diante da relevância de tais direitos, mormente em uma sociedade fundada na dignidade da pessoa humana, é muito tênue a linha divisora do necessário à superação de um estado de crise e da efetiva violação de direitos fundamentais. Este último cenário poderia, por si só, configurar crime responsabilidade do presidente da República e causar seu impeachment.

Por isso, a decretação desses estados de excepcionalidade, naturalmente, carregam consigo um temor natural de responsabilização por parte do presidente da República, que pode, tentando acertar, cair em erro e cavar sua própria cova. Isso se torna ainda mais fácil quando diante de uma realidade atípica, que demanda ineditismo e celeridade nas condutas estatais e, portanto, mais suscetíveis a erros.

Ante o exposto, paira o questionamento sobre a conveniência de uma decretação de estado de defesa ou de sítio no contexto atual, bem como se tais mecanismos se mostram convidativos ao governo atual ou mesmo a qualquer outro, diante do seu elevado grau de risco de responsabilização.

 é advogada autônoma em Salvador e pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão.

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Renzzo Ronchi: A judicialização da saúde durante a pandemia

No sistema jurídico brasileiro sempre houve uma flagrante falta de uniformidade nas da Justiça e uma dificuldade de se identificar com clareza qual é o entendimento de um tribunal sobre um tema específico, frente à ampla gama de decisões em diferentes sentidos tratando sobre a mesma matéria.

Desse modo, um dos objetivos do novo Código de Processo Civil (NCPC) foi expressamente estabilizar e uniformizar a jurisprudência, tendo pontuado a comissão de juristas que a segurança jurídica fica comprometida com a “brusca e integral alteração do entendimento dos tribunais sobre questões de direito” [1].

Nessa linha, o artigo 926 do NCPC ficou redigido assim: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

O dispositivo legal prevê, assim, deveres gerais para os tribunais no âmbito do desenvolvimento de um sistema de precedentes, sendo eles: I) o dever de uniformizar sua jurisprudência; II) o dever de manter essa jurisprudência estável; III) o dever de integridade; IV) o dever de coerência e V) o dever de dar publicidade adequada aos seus precedentes [2].

Com efeito, em 23 de maio de 2019 o Supremo Tribunal Federal julgou o ED no RE nº 855.178/SE (com repercussão geral, relator ministro para  acórdão Edson Fachin), ocasião em que reafirmou a tese de que a responsabilidade dos entes estatais é solidária nas demandas prestacionais na área de saúde, competindo à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

A ementa do acórdão foi publicada recentemente, na data de 16 de abril de 2020, contendo o seguinte teor:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PRECEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, relator ministro Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos” (ED no RE nº 855178/SE, relator ministro LUIZ FUX, relator p/ acórdão: ministro Edson Fachin, Pleno, julgado em 23/5/2019, DJe de 15/4/2020). (grifos do autor) 

Embora tenha sido confirmada a solidariedade dos entes federativos pela prestação de saúde, fato é que no plenário do Supremo Tribunal Federal prevaleceu a orientação de que se fez necessário promover desenvolvimento da tese firmada no julgamento do AgR na STA nº 175/CE, relator ministro Gilmar Mendes, no sentido de que as políticas públicas de saúde devem ser prestigiadas e, consequentemente, as regras administrativas de repartição de competências também devem ser objeto de atento exame pelo magistrado.

O desenvolvimento da tese firmada que não se confunde com a figura da superação do precedente (overruling) justificou-se, conforme disse o próprio ministro Edson Fachin em seu voto, pelo fato de que “desde a realização da audiência pública em matéria de saúde e o julgamento da STA 175 passaram-se quase dez anos, em cujo lapso se inseriram diversos fenômenos correlatos à judicialização de prestações sanitárias, incluindo, neste rol, a criação do Fórum Nacional de Saúde no âmbito do CNJ. Além disso, houve: I) aumento da judicialização em matéria da saúde; II) desestruturação do SUS; III) sobreposição ou ausência de cumprimento de decisão judicial”.

Assim, a tese vencedora, que constou no voto do mininstro Edson Fachin, ficou redigida com o seguinte teor:

Partindo do exame das espécies de tutela examinadas na STA 175, é possível estabelecer condicionantes para a admissão das respectivas ações. Quando a pretensão veicular pedido de entrega de medicamento padronizada, a competência estatal é regulada por lei, devendo figurar no polo passivo a pessoa política com competência administrativa para o fornecimento do medicamento, tratamento ou material. Quando o medicamento não for padronizado, a União deve compor o polo passivo da lide. Além disso, a dispensa judicial de medicamentos, materiais, procedimentos e tratamentos pressupõe ausência ou ineficácia da prestação administrativa e a comprovada necessidade, observando, para tanto, os parâmetros definidos no artigo 28 do Decreto Federal nº 7.580/11. Base constitucional: o direito à saúde (artigo 196 e ss. da CRFB); repartição federal de competências (artigo 23, I e II, da CRFB).” (grifos do autor)

Como se percebe, houve uma mudança significativa no tratamento da matéria, pois, embora continue existindo a solidariedade entre os entes estatais para o acionamento do Poder Judiciário o que se fez para garantir a máxima proteção ao paciente enfermo, que pouco conhece do intrincado sistema de saúde , o magistrado, doravante, deve observar as regras de repartição de competências sanitárias ao direcionar o cumprimento da obrigação.

Em outros termos, isso significa que todos os entes da federação podem integrar o polo passivo do processo, mas o direcionamento da obrigação, que é feito pelo juiz, deve atentar-se para as regras de repartição de competências sanitárias.

De fato, a ementa desse acórdão não espelhou, com fidelidade, as questões que foram decididas pelo Supremo Tribunal Federal, mas isso não quer dizer que as teses, em si, não devam ser observadas, até porque a ementa é apenas uma síntese do julgamento.

Aliás, a ementa contém até mesmo um pequeno equívoco ao mencionar no final que a relatoria do julgamento no RE nº 657.718/MG ficou a cargo do ministro Alexandre de Moraes quando, em verdade, a redação do acórdão ficou sob a responsabilidade do ministro Roberto Barroso, que teve a tese vencedora. Tratando-se de um erro material, pode ser corrigido até mesmo de ofício.

Apenas a título de ilustração, em 2010, quando foi publicado o acórdão do julgamento realizado no AgR na STA nº 175/CE, relator ministro Gilmar Mendes, a ementa também não espelhava, com toda sua profundidade, as questões que foram examinadas pelo plenário da Suprema Corte, sendo necessária a leitura do voto proferido pelo relator para a perfeita compreensão da matéria.

Nesse ponto, realizado o julgamento do ED no RE nº 855.178/SE, que define ser do magistrado a responsabilidade pelo direcionamento da obrigação, cumpre enfatizar, nesse sentido, que a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), em seus artigos 16, 17 e 18, regulamenta a responsabilidade comum e define atribuições entre a direção nacional, a direção estadual e a municipal da saúde.

Por sua vez, o artigo 19-U da lei orgânica da saúde reforça a distribuição de competências, estabelecendo que a responsabilidade financeira pelo fornecimento de medicamentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite”.

O artigo 10 da Resolução nº 1/2012 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) reforça a repartição de competência prevista na Lei Orgânica da Saúde. Por outro lado, a Portaria nº 1.555/2013 regulamenta a competência dos municípios para o componente básico de assistência farmacêutica, enquanto a Portaria nº 1.554/2013 define a competência dos Estados e da União para o componente especializado de atenção farmacêutica.

O Decreto nº 7.508/2011, como norma reguladora da Lei nº 8.080/1990, é o diploma legal responsável pelo direcionamento das ações e serviços de saúde, disciplinando a responsabilidade de cada ente político (União, estados, Distrito Federal e municípios).

Municípios são responsáveis pela atenção básica e pelo fornecimento dos medicamentos do componente básico de atenção farmacêutica, ao passo que estados e União são os responsáveis pela média e alta complexidades e pelo componente especializado e estratégico de atenção farmacêutica.

A Rename (relação nacional dos medicamentos essenciais), aprovada pela Resolução CIT nº 1/2012, atualizada periodicamente a cada dois anos, conforme Portaria nº 3.047/2008, é considerada o principal instrumento que fixa regras de repartição de competência e distribuição de atribuições.

Dessa forma, em se tratando de cumprimento de política pública, o magistrado poderá se nortear segundo esses diplomas normativos que integram o complexo sistema jurídico sanitário.

Situação diferente, no entanto, ocorrerá quando a demanda judicial pleitear tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas.

Para essas hipóteses, o ministro Edson Fachin, em seu voto, foi enfático ao pontuar que “a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (artigo 19-Q, Lei 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação”.

De fato, a presença da União no polo passivo poderá esclarecer, entre outras questões: a) se o medicamento, tratamento ou produto tem ou não uso autorizado pela Anvisa; b) se está ou não registrado naquela agência; c) se é ou não padronizado para alguma moléstia e os motivos para isso; e d) se há alternativa terapêutica constante nas políticas públicas, etc.

Com efeito, tal posicionamento privilegia o Enunciado n° 78 do Comitê Executivo do Fórum de Saúde do Conselho Nacional de Justiça, o qual dispõe que “compete à Justiça Federal julgar as demandas em que são postuladas novas tecnologias ainda não incorporadas ao Sistema Único de Saúde SUS”.

Perceba-se que a tese firmada no ED no RE nº 855.178/SE é diversa daquela assentada no julgamento do RE 657.718/MG, relator ministro para acórdão Roberto Barroso, que versou sobre o debate acerca da obrigação do Estado de fornecer medicamento sem registro na Anvisa. Isso porque no primeiro julgamento ficou definido que, em se tratando de demanda judicial pleiteando tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas, a União deve também compor o polo passivo. Isso irá ocorrer sem o prejuízo dos outros entes federados também integrarem o processo, considerando a responsabilidade solidária. No segundo julgamento, contudo, por se tratar de medicamento sem registro na Anvisa (órgão federal), o STF entendeu que a demanda deve ser ajuizada somente contra a União.

Feitas essas considerações, incumbe aos tribunais e juízes brasileiros observarem as teses firmadas pela Suprema Corte do nosso país no julgamento do ED no RE nº 855.178/SE, relator ministro para acórdão Edson Fachin, haja vista que o artigo 926 do Código de Processo Civil preocupou-se em sistematizar a aplicação dos precedentes, apostando na criação de um ambiente decisório mais isonômico e previsível.

Além disso, em tempos de pandemia, é absolutamente necessário que tribunais e juízes produzam decisões que gerem segurança jurídica, ainda mais em prestações de saúde que lidam com o tema sensível da escassez de recursos.

Se é inquestionável que o direito à saúde é fundamental, por outro lado não se pode desconsiderar que sua concretização é garantida mediante políticas sociais e econômicas, sendo certo que o acesso às ações e serviços é feito de modo igualitário e universal conforme a realidade orçamentária de cada ente federativo.

Conforme Stephen Holmes e Cass Sunstein, “ignorar os custos é deixar certas trocas dolorosas fora do nosso campo de visão” [3].

O custo dos direitos é um tema que não pode ser relegado a segundo plano, haja vista que a concretização dos direitos fundamentais de caráter prestacional deve ser realizada à luz das possibilidades financeiras do Estado, sob pena de se criar seletividade e violação ao princípio da isonomia, favorecendo-se determinadas pessoas, que ingressam com demandas judiciais, em detrimento de toda a coletividade.

A harmonização dos julgados é fundamental para um Estado de Democrático de Direito, pois tratar as mesmas situações fáticas com a mesma solução jurídica resulta na preservação do princípio da isonomia, além do que também gera segurança jurídica, uma vez que evita longos debates sobre a matéria, permitindo, assim, que todos se comportem conforme o Direito.

Não bastasse isso, a uniformização da jurisprudência contribui para melhorar a credibilidade da imagem do Poder Judiciário, pois afasta o modo irracional de administrar a Justiça, sobretudo em um momento crítico como esse que o país está atravessando. Ademais, as ideias de unidade do Direito e de precedentes obrigatórios colaboram para o fortalecimento do Poder Judiciário enquanto instituição [4].

Em tempos de pandemia da Covid-19, caraterizada por uma crise sanitária e econômica de proporção mundial, a judicialização da saúde precisa ser racionalizada, sob pena de colapso do sistema sanitário e ineficácia das decisões judiciais.

 


[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Volume 2. 10ª edição. Salvador: JusPODIVM, 2015.

 é juiz de Direito do TJ-MG, de entrância especial, titular do Juizado Especial Cível, Criminal e da Fazenda Pública de Teófilo Otoni, 2º titular da 1ª Turma Recursal do Grupo Jurisdicional de Teófilo Otoni, professor do curso de Direito da Faculdade Doctum-Teófilo Otoni, mestrando em Direito Processual Constitucional pela Universidad Lomas de Zamora, na Argentina e pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG.

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Barroso confirma decisão que impede expulsão de diplomatas

Durante a epidemia

Ministro Barroso confirma decisão que impede expulsão de diplomatas venezuelanos

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, confirmou liminar concedida no início do maio que autoriza a permanência de diplomatas venezuelanos no Brasil enquanto durar o estado de calamidade pública e emergência sanitária reconhecido pelo Congresso Nacional. O mérito do Habeas Corpus ainda será julgado, sem previsão de data.

Carlos Humberto/SCO/STFBarroso confirma decisão que impede expulsão de diplomatas venezuelanos

No começo de maio, o ministro havia suspendido a expulsão por 10 dias, até que o governo apresentasse informações sobre a urgência da retirada dos venezuelanos. A nova decisão foi tomada após análise das informações apresentadas pelo Ministério das Relações Exteriores, Advocacia-Geral da União e parecer da Procuradoria-Geral da República.

O ministro ressaltou na decisão que é válida a ordem do presidente da República que determinou a expulsão por estar na sua esfera de discricionariedade política. Segundo Barroso, não se discute se o presidente poderia ou não determinar a expulsão porque cabe a ele, presidente, decidir sobre relações internacionais e reconhecimento (acreditação) dos diplomatas que representam os países estrangeiros.

Barroso entendeu, porém, que os efeitos da decisão que ordenou a retirada imediata devem ser suspensos enquanto durar a situação de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional. Isso porque não se trata de providência de urgência ou emergência que justifique romper o isolamento social recomendado pela OMS e todas as entidades médicas, expondo os diplomatas venezuelanos a uma longa viagem por terra, cruzando estados brasileiros em que a curva da doença é ascendente e os hospitais estão lotados.

“Diante do exposto, ratifico a medida liminar deferida para, sem interferir com a validade da decisão político-administrativa do Presidente da República, suspender temporariamente sua eficácia, assegurando que os pacientes permaneçam em território nacional enquanto durar o estado de calamidade pública e emergência sanitária reconhecido pelo Congresso Nacional”, disse. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

HC 184.828

Revista Consultor Jurídico, 17 de maio de 2020, 11h28

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TJ-RJ anula desocupação por ausência de atuação da Defensoria

A Defensoria Pública tem o dever de atuar nos litígios possessórios coletivos, como previsto no artigo 554, § 1º, do Código de Processo Civil. 

Reprodução

Por entender que a exigência legal não foi observada, a 27ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro anulou decisão que determinava desocupação de imóveis. 

A ação civil pública foi ajuizada pelo município de Macaé que pediu a desocupação de famílias das casas do programa Minha Casa Minha Vida. O município alegou que houve invasão das casas e sustentou que isso gera “danos ao meio ambiente, aos consumidores, à ordem urbanística e ao patrimônio público e social”.

Decisão de primeiro grau acolheu o pedido e determinou a desocupação dos imóveis em dez dias, sob pena de compulsória com o uso de força policial.

A Defensoria Pública, representando os moradores, alegou a presença de muitas pessoas hipossuficientes atingidas pela decisão liminar, inclusive crianças e idosos. Por isso, pediu seu ingresso na condição de custos vulnerabilis ou “guardiã dos vulneráveis”. A intervenção nessas demandas busca assegurar os direitos de pessoas ou grupos de necessitados.

Ao analisar o caso, o relator, desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres, considerou os argumentos da Defensoria e afirmou que é motivo de questionamento a própria competência da Justiça comum estadual, já que há possível interesse da União ao se admitir a procedibilidade da ação civil pública.

“Não se pode admitir é que a via da ação civil pública sirva de subterfúgio para exonerar o autor de provar, por exemplo, a data do esbulho possessório, ou de atalho aos meios de defesa previstos em lei”, afirmou.

Para o relator, no caso, o município “sequer se dá o trabalho de apontar qual teria sido a data do esbulho, quanto menos comprová-la ― ônus que assume máxima relevância para apuração do caráter novo ou velho da posse, com severas repercussões sobre a possibilidade de proteção liminar”.

De acordo com o defensor público Maurilio Casas Maia, um dos estudiosos do tema, decisões como esta “devem ser comemoradas pois revelam, ainda que implicitamente, a essencialidade histórica e constitucional do Estado Defensor como custos vulnerabilis ou, simplesmente, emancipador dos vulneráveis”.

Clique aqui para ler a decisão

0068634-82.2019.8.19.0000

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Posse de Barroso na presidência do TSE será virtual

Sem máscaras

Ministro Barroso tomará posse na presidência do TSE em cerimônia virtual

Por 

A cerimônia de posse do ministro Luís Roberto Barroso como presidente do Tribunal Superior Eleitoral será virtual. A posse virtual faz parte das medidas para evitar o contágio pelo novo coronavírus. O evento está marcado para o dia 25 de maio, às 17h, e deverá ser transmitido pelo Youtube.

À frente da Corte eleitoral, Barroso tomará posse em sessão virtual
Roberto Jayme/ Ascom/TSE

À distância, também participarão da solenidade o presidente Jair Bolsonaro e serão convidados os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, respectivamente.

Estão previstos discursos de Barroso, da OAB, da Procuradoria-Geral da República e um ministro do TSE que dará boas vindas ao novo presidente. 

Ano de eleição

Barroso ocupa a vaga de ministro efetivo da corte eleitoral desde 2018, onde ficará por mais um biênio — até 28 de fevereiro de 2022. Agora à frente do colegiado, o ministro comandará o processo eleitoral municipal de 2020. 

Em entrevista à ConJur, o ministro afirmou que a participação do Judiciário no combate às campanhas de desinformação em matéria eleitoral deve ser residual. “Não pode ser papel do Judiciário funcionar como censura privada para dizer o que é verdade e o que não é dentro de um espaço cinzento enorme, em que as opiniões divergentes são razoáveis.”

 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 6 de maio de 2020, 11h25

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Kelly Durazzo:Decisões colocam em risco alienação fiduciária

Com o advento da Lei 9.514/97, foi criado o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) e a alienação fiduciária em garantia de bens imóveis. Essa modalidade de garantia existe quando o devedor, com o escopo de garantia, transfere ao credor a propriedade resolúvel de coisa imóvel. A propriedade resolúvel é aquela condicionada ao pagamento do financiamento imobiliário, ou seja, se o devedor ficar inadimplente a propriedade resolúvel será consolidada em nome do credor fiduciário, após execução extrajudicial do procedimento previsto no artigo 26 e seguintes da Lei 9.514/97.

A alienação fiduciária trouxe celeridade à execução da garantia, eis que todo o procedimento para a recuperação do crédito se resolve por via extrajudicial (registro de imóveis), cabendo ao oficial do Registo de Imóveis a intimação do devedor para a constituição em mora, averbação do leilão realizado e demais atos pertinentes à execução da garantia previstos na citada lei.

Ainda nos termos da lei, a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel passou a ser permitida para financiamentos em geral, não sendo privativo do SFI e do SFH (Sistema Financeiro Habitacional) e instrumentalizado por meio de escritura de compra e venda de bem imóvel, com pacto de alienação fiduciária, firmado por instrumento público ou particular, nos termos do artigo 38 da referida lei. Referida escritura estabelece a relação entre o vendedor do imóvel, o comprador e o agente financeiro que financia o saldo do preço, seja ele privado, do SFI ou do SFH.

A celeridade do procedimento de garantia acima e sua validação pelo Judiciário fizeram com que incorporadoras e loteadoras passassem a utilizar referido instituto, cumulando a função de vendedoras e agentes financeiras, pois financiavam diretamente aos seus clientes, praticamente abandonando a hipoteca como modalidade de garantia, eis que esta se mostrava ineficiente havia muito tempo, principalmente pela morosidade na sua execução.  

Consequência disso é que opera-se a plena transferência da propriedade do imóvel ao comprador com o “registro” da escritura junto ao Cartório de Registro de Imóveis, e, ato subsequente, o devedor transfere a propriedade resolúvel do imóvel em favor do credor fiduciário/agente financeiro, que, no caso em análise, trata-se do loteador.  

O problema é que o Poder Judiciário vem dando tratamento judicial equivocado à estrutura jurídica acima apontada, já que trata as escrituras particulares com efeito de escritura pública (artigo 38 da Lei 9.514/97), indevidamente, como se fossem contratos de compromisso de compra e venda de imóveis, decretando sua rescisão judicial, ignorando que trata-se de ato jurídico perfeito e acabado, passível de nulidade somente se constatado vício jurídico.

Exemplo disso são os julgados abaixo: 

“(…) A mera existência de condição resolutiva em contrato de compra e venda com Alienação Fiduciária em garantia não impede que o adquirente pleiteie a rescisão do contrato com base no artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor (…)”. h.n.. Voto nº 8439. Apelação Cível nº 1010838-30.2017.8.26.0344 Comarca de Marília Apelante: Couto Rosa Empreendimentos Imobiliários SPE Ltda e Outro Apelado: Félix Otávio Bachega.

(…) A aquisição do imóvel mediante contrato com cláusula de alienação fiduciária em garantia não afasta a incidência do Código de Defesa do Consumidor, sendo possível que o comprador rescinda o contrato, desde que antes da consolidação da propriedade em favor da credora fiduciária. (…) Cabe apontar, ainda, que o procedimento previsto nos artigos 26 e 27 da Lei 6.514/97, se restringe à hipótese de iniciativa da credora fiduciária, diante do vencimento e não pagamento da dívida, de consolidar a propriedade do bem para, posteriormente, promover leilão para sua alienação. (…) Portanto, inexiste óbice à pretensão do consumidor, ainda que inadimplente, de rescindir o negócio por iniciativa própria, com a consequente devolução dos valores pagos”. g.n  Apelação Cível nº 1064135-32.2017.8.26.0576 Comarca de São Jose do Rio Preto Apelante: SPE Terni Nature I Rio Preto Empreendimentos Imobiliários Ltda  Apelada: Fernanda Cristina Gaspar Lemes.

Vários problemas decorrem da rescisão judicial da escritura particular com força de escritura pública, cujos formatos são idênticos aqueles dos contratos de financiamento imobiliário da Caixa e de outras instituições financeiras que são contemplados pelo oficial do Registro de Imóveis, por terem plena validade e não conterem quaisquer vícios.

Se o mesmo julgamento equivocado ocorresse para anular os contratos particulares de financiamento da Caixa e dos demais agentes financeiros, ninguém mais conseguiria financiar sua casa, pois as instituições financeiras deixariam de operar por total afronta à Lei 9.514/97, a qual dá base para as operações do mercado de capitais, a seguir descritas.

Do mercado de capitais
Com base nas parcelas do preço do imóvel contratado no financiamento imobiliário celebrado diretamente entre a loteadora (vendedora) e seu cliente, ocorre a originação e emissão de CCI (Cédula de Crédito Imobiliário) e CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários), colocados no mercado de capitais nos termos do artigo 6º e seguintes da Lei 9.514/97.

Trata-se de uma sequência de negócios jurídicos validados com base nos contratos de financiamento firmados para a venda de lotes, por exemplo, refletindo operações que movimentam o mercado de capitais e imobiliário, podendo denominá-las “operações estruturadas”.

O que se alerta neste arrazoado é que o sistema de operações estruturadas está em iminente risco com atuação discricionária e desenfreada do Poder Judiciário, que vem rescindindo tais escrituras, que não são passíveis de rescisão, salvo se apresentasse  algum vício jurídico.

A Lei 9514/97 tem como um dos seus pilares captar recursos financeiros para estimular o crescimento dos negócios imobiliários. Não se mostra aceitável alguns julgadores tratarem instrumentos particulares, que se assemelham aos Contratos de Financiamento do SFH/SFI emitidos pelas instituições financeiras (a lei equipara ambos a escritura pública), como se fossem meros contratos de promessa de compra e venda.

Quando o Poder Judiciário aplica a esses negócios jurídicos a legislação consumerista, ou do próprio Código Civil, afastando a incidência das normas especiais da Lei nº 9.514 e da Lei nº 10.941, decretando rescisão judicial da escritura de venda e compra (do instrumento que tem a mesma força de escritura pública), isso também afeta a garantia acessória ao contrato principal, ou seja, a alienação fiduciária garantia real constituída não só garantidora do pagamento do preço do imóvel, como também da C.C.I emitida.

Ou seja, a intervenção do Poder Judiciário na equação econômico-financeira da operação acima, gera um ‘efeito cascata” devastador, violando a garantia da imutabilidade do ato jurídico perfeito posta no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

Certo é que o Poder Judiciário deveria compreender a cadeia de negócios originados com o financiamento imobiliário garantido por alienação fiduciária, gerando um equilíbrio de sua atuação com a atividade econômica de empreender no Brasil, em respeito à Lei 9.514/97, sem trazer prejuízo e instabilidade ao negócio jurídico aqui tratado.

Concluindo, o mercado de capitais que fomenta o mercado imobiliário com suas operações estruturadas está em risco de ser prejudicado a ponto de afastar investimentos no país, pois o abalo da segurança jurídica desse tipo de transação inibirá a captação de recursos financeiros, inclusive do exterior, o que certamente reverterá em maiores taxas de juros para qualquer tipo de operação lastreada em C.C.I ou similar, o que certamente, de forma indireta, refletirá negativamente no bolso do comprador de imóvel.  

 é advogada especializada em Direito Imobiliário, membro do Conselho Jurídico da Aelo (Associação das Empresas de Loteamento e Desenvolvimento Urbano) e da Comissão de Loteamento da OAB-SP, diretora estadual em São Paulo da CRF (Comissão de Regularização Fundiária) e pós-graduada em Direito Contratual pela PUC-SP e Direito Empresarial Imobiliário.

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Rio e Duque de Caxias devem aumentar leitos para infectados

Colaboração na crise

Rio e Duque de Caxias devem aumentar leitos para infectados por Covid-19

Por 

Devido ao desrespeito de grande parte da população ao isolamento social, à elevada subnotificação dos casos de coronavírus e à insuficiência da rede hospitalar para lidar com a epidemia, a 7ª Vara Cível de Duque de Caxias determinou, nesta segunda-feira (4/5), que o estado do Rio de Janeiro e o município da Baixada Fluminense coloquem em funcionamento 73 leitos até o dia 30 de maio e mais 91 até 15 de junho para atendimento dos infectados com a Covid-19.

Entes federativos devem colaborar para enfrentar coronavírus
Kateryna Kon

Além disso, o estado e o município deverão suprir eventual demanda de leitos hospitalares necessários durante a epidemia, mesmo depois da implantação do hospital de campanha na cidade pelo estado do Rio.

A ação foi movida pelo Ministério Público diante do agravamento da contaminação da população de Duque de Caxias pelo coronavírus. O MP apontou que, em 26 de abril, o município tinha entre 2.780 e 3.336 infectados. Com esse quadro e a perspectiva de crescimento dos casos da Covid-19, o MP alegou que a estrutura hospitalar municipal será insuficiente. Dessa maneira, sustentou, é essencial proteger o sistema público de saúde contra o colapso e fazer com que ele esteja pronto para absorver o aumento de demanda.

Em sua decisão, a juíza Amália Regina Pinto destacou que entes federativos devem colaborar para garantir o direito à saúde da população. “Embora se reconheça a dificuldade que todos os governos vêm passando para o enfrentamento dessa pandemia, há que se exigir dos gestores públicos ações de planejamento, execução e transparência, em relação às medidas necessárias para reduzirem o alto índice de óbitos decorrente da Covid-19 que vem acontecendo no município de Duque de Caxias e a incapacidade dos gestores no provimento de medidas eficazes e transparentes para a resposta à situação emergencial.”

A juíza também deu prazo de cinco dias para que o estado do Rio apresente um relatório das medidas já executadas e um cronograma final para inauguração dos novos leitos, conforme foi previsto no Plano estadual de Resposta de Emergência ao Coronavírus no Estado do Rio.

Clique aqui para ler a decisão

0016635-90.2020.19.8.0021

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 4 de maio de 2020, 20h03

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Gustavo Ramiro: MP reduz impacto no setor de turismo

A pandemia da Covid-19, reconhecida e deflagrada no Brasil em meados do mês de março, vem causando um grande impacto em praticamente todos os setores produtivos. A economia nacional apresenta cenários desafiadores ante a completa paralisação das atividades em diversos segmentos.

Turismo, lazer e cultura, tradicionalmente, são vetores de grande importância na economia global. Segundo dados do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC — World Travel & Tourism Council), o impacto direto, indireto e induzido de viagens e turismo no ano de 2019 foi responsável pela contribuição de US$ 8,9 trilhões para o PIB mundial, representando 10,3% do PIB global, além de gerar 330 milhões de empregos em todo o mundo.

Já no Brasil, também segundo o WTTC, o setor responde por 7,7% do PIB nacional, além de ocupar 7,9% de todos os postos de trabalho no país, demonstrando a importância do segmento no contexto econômico atual.

Por outro lado, a chegada da crise gerada pela pandemia da Covid-19 trouxe imensos prejuízos às empresas e pessoas que prestam serviços no ramo de turismo, lazer e cultura. A impossibilidade de se utilizar o transporte aéreo, a imposição de isolamento social e o fechamento temporário da grande maioria dos estabelecimentos e equipamentos públicos coletivos são as causas mais evidentes dos pedidos de cancelamento e desistência de reservas já realizadas anteriormente pelo público consumidor. O quadro se alastra com a impossibilidade de se realizar conferências, seminários, congressos, feiras e outras atividades corporativas que também influenciam na atividade.

A preocupação do setor vem sendo exposta de maneira reiterada na mídia e em publicações especializadas. A principal meta em busca da preservação da atividade é de manutenção das viagens e programações já contratadas. Incentiva-se, sobretudo, a remarcação para período posterior à crise. Essa parece a única maneira de evitar um colapso generalizado e a falência das operações ligadas ao turismo, lazer e cultura.

De todo modo, malgrado o correto direcionamento das campanhas publicitárias que destacam esta necessidade, é fato que todos os fornecedores de serviços e produtos ligados à atividade em questão estão a receber um número absurdo de pedidos de cancelamento e desistência. Isso gerou, num primeiro momento, a necessidade de ressarcimento, ainda que proporcional, dos valores recebidos.

Obviamente, o fluxo de caixa da grande maioria das empresas não permite uma descapitalização em massa, com a concomitante restituição de valores pagos pelos consumidores, ainda que se refiram a eventos e atividades futuras.

Diante desse cenário e de um iminente rompimento das condições de manutenção das atividades do setor, foi adotada pelo Governo Federal a Medida Provisória nº 948/2020, que especificamente “dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19)”.

A norma em questão, sem dúvidas, representa um importante instrumento para o setor de turismo, lazer e cultura ao relativizar a obrigação de restituição imediata de valores por partes dos prestadores de serviço e fornecedores de produtos, desde que atendidas algumas condições.

Detalhemos essas hipóteses.

A regra geral prevista é a da não obrigatoriedade de reembolso dos valores pagos pelo consumidor, desde que fique assegurada: I) a remarcação dos serviços, das reservas ou dos eventos cancelados; II) a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou III) outro acordo a ser formalizado com o consumidor.

São condições para qualquer das hipóteses da regra geral que não haja custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, caso a solicitação seja efetuada no prazo de 90  dias, bem como que o crédito eventualmente disponibilizado seja utilizado pelo consumidor no prazo de até 12 meses, contados da data de encerramento do estado de calamidade pública.

Já a regra excepcional abriga soluções não desejáveis, mas também consideradas válidas e menos prejudiciais do que a imediata restituição de valores. Abre-se, assim, a possibilidade secundária de restituição a prazo do valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente, no período de até 12 meses. Nesse caso, a devolução pode ser realizada de modo parcelado, desde que respeitado o prazo estipulado, ou em uma única parcela dentro desse mesmo lapso.

Estabelecidas essas formas de solução do problema ligado a reservas e eventos, conforme expressamente contemplado pelo artigo 2º da MP nº 948/2020, também ficou previsto que precisa ser considerada a sazonalidade e o valor dos serviços originalmente contratados, respeitando-se, em qualquer caso, o prazo de 12 meses, este sempre contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 06/2020.

Isso quer dizer que não poderá o consumidor, por exemplo, utilizar uma reserva em período futuro de alta estação ou data comemorativa de maior fluxo de pessoas se ela originalmente foi contratada para um período de baixa estação ou época menos concorrida.

Na hipótese de contratos de shows artísticos, firmados antes da vigência da MP nº 948/2020, o regime segue a mesma lógica.

Nesse caso, a regra geral é de que os artistas que tiverem suas apresentações canceladas não estão obrigados a reembolsar imediatamente os valores dos serviços ou cachês. A condição é que o evento seja remarcado e ocorra no mesmo prazo de 12 (doze) meses. Igual previsão é válida para diversos outros diversos tipos de evento, a exemplo de shows, rodeios, espetáculos musicais e de artes cênicas.

Já a regra excepcional é aplicável em caso de não se chegar a nenhuma das soluções que preservem a relação contratual. Prevê-se, assim, que a não prestação do serviço deverá ser secundada da restituição do valor recebido, devidamente atualizado monetariamente, também no prazo de até 12 meses.

Em conclusão, anota-se que a MP nº 948/2020 prestigia a continuidade da relação contratual e a manutenção da avença pactuada, ainda que admita a postergação da respectiva execução. Adota-se, em sequência, uma solução alternativa, admitindo-se o desfazimento do contrato mediante restituição de valores em prazo razoável, tendo-se em conta os prolongados efeitos da crise decorrente da pandemia da Covid-19. Nessa última solução, não há prejuízo aparente imediato ao consumidor, pois apesar de ser ter que aguardar um prazo de 12 meses, exige-se a atualização dos valores devidos pelo IPCA-E.

Por óbvio, ainda que a norma traga soluções preconcebidas, todas as negociações consensuais poderão ser levadas a cabo livremente pelas partes, ainda que suplantando ou relativizando prazos e condições previstas na MP nº 948/2020. Os acordos bilaterais continuam sendo válidos, para qualquer caso, sendo desejável sua homologação judicial para segurança de ambas as partes. A mediação também pode servir de importante instrumento para apaziguar eventuais conflitos.

Por fim, o artigo 5º da MP nº 948/2020 também adota uma regra que, em nossa avaliação, acaba por prevenir conflitos que poderiam ocorrer em busca de indenizações por dano moral, ao reconhecer que as relações de consumo citadas caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior, não ensejando qualquer dano natureza extrapatrimonial.

As regras propostas pela novel legislação, portanto, orientam situações em que o consenso não é alcançado, proporcionando soluções transitórias e equilibradas, na busca da normalização do mercado de turismo, lazer e cultura, não sem exigir de todos os envolvidos algum desprendimento e sentimento de coletividade.

 é advogado e sócio-fundador do escritório Duarte & Ramiro Advogados Associados.

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TRF-5 determina que Caixa adote medidas para organizar filas

Filas para saque do auxílio emergencial geram risco de contaminação por coronavírus
Marcelo Casal/Agência Brasil

Atendendo a recurso apresentado pela Procuradoria Geral de Pernambuco, o presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, desembargador Vladimir Carvalho, determinou, nesta sexta-feira (1º/5), que Caixa Econômica Federal adote uma série de medidas para organizar o atendimento em suas agências no sentido de evitar aglomeração e colocar em risco a saúde dos que precisam sacar benefícios e auxílios emergenciais.

Filas têm se formado dentro e fora de agências de todo o país, principalmente por quem pretende tocar o auxílio emergencial de R$ 600 concedido pelo governo como forma de enfrentamento à epidemia de Covid-19.

O presidente do TRF-5 determinou que a Caixa amplie o horário de funcionamento das agências e viabilize o seu funcionamento aos sábados e domingos, caso os atendimentos no período de segunda-feira a sexta-feira não se mostrem suficientes.

O banco também deverá organizar as filas, com o apoio do estado de Pernambuco, observando a manutenção de distância mínima de um metro entre os clientes em atendimento, “inclusive entre aqueles que aguardam na parte externa das agências, devendo utilizar, com o apoio do estado, sinalização disciplinadora”. 

A decisão judicial, de caráter liminar, foi dada no âmbito de ação civil pública, que havia sido proposta pelo governo de Pernambuco contra a Caixa. Os pedidos nesse processo foram negados pela primeira instância da Justiça Federal. Mas o tribunal acabou atendendo aos pedidos não só para adoção de providências pela Caixa, mas também pelo próprio governo estadual.

Conforme a decisão, o banco deve também realizar a triagem, de forma a verificar, preliminarmente, se a demanda pode ser solucionada sem ingresso do cliente na agência, além de realizar agendamento antecipado para atendimento presencial.

Clique aqui para ler a decisão

0804533-89.2020.4.05.0000